“Receba, ó monge, a santa verdade sobre essa coisa chamada morte. Saiba que há em cada homem uma vontade profunda, potencialmente comprometida com a liberdade ou a catividade, pronta para consentir à vida, nascida consentindo à morte, virada do avesso, engolida por si mesma, prisioneira de si mesma como Jonas na baleia. Esta é a verdade da morte que, impressa no coração de todo homem, o leva a buscar o sinal do profeta Jonas.” (Thomas Merton, O signo de Jonas)
Numa tarde de março do conturbado ano de 2018, estive no Theatro Municipal de São Paulo para assistir à apresentação da monumental Sinfonia n.º 8, de Gustav Mahler, experiência catártica que descrevi em meu segundo artigo para esta coluna, que, graças ao bom Deus, completou seis anos. Mahler é o compositor sinfônico de que mais gosto, pois, como disse naquela ocasião, ele “foi um compositor visceral, um ʻhomemʼ, nas palavras de Otto Maria Carpeaux [em seu O livro de ouro da história da Música], ʻde energia fanáticaʼ; um ʻintelectual cheio de saudade da certeza religiosa e sacudido por dúvidas martirizantes; oscilando entre furiosa avidez de viver e pessimismo dolorosoʼ”.
Tal característica pode ser percebida em suas obras, mas, a meu ver, mais particular e precisamente na obra-prima de minha predileção absoluta, a Sinfonia n.º 2 – conhecida como Ressurreição –, a que tive a felicidade de assistir no último fim de semana, no mesmo Municipal, executada com maestria pela Orquestra Sinfônica Municipal (OSMDESP), pelo Coro Lírico Municipal, o Coral Paulistano, e as solistas Marly Montoni (soprano) e Carolina Faria (contralto). E a regência, nas mãos do sempre vigoroso e competente Roberto Minczuk. Mais um dia marcante em minha vida, pois conheço essa sinfonia há muitos anos e, apesar de tê-la visto/ouvido incontáveis vezes, nunca tinha assistido a uma apresentação ao vivo.
A sensação de ouvir a Sinfonia n.º 2 de Mahler é de uma jornada, de um conjunto de sensações e experiências que vão se somando, entre altos e baixos, até culminarem numa apoteótica redenção
Composta entre 1888 e 1894, é aquela com a qual Mahler inicia sua aventura heterodoxa na composição de sinfonias. Subvertendo o esquema tradicional de quatro movimentos, ele incluiu um movimento e, iniciando com uma marcha fúnebre (Totenfeier), trabalha, no quarto movimento, excertos textuais de canções folclóricas alemãs (as bucólicas Wunderhorn) cantadas por solistas, e finaliza com um coral estupendo no último (e absolutamente sublime) movimento, utilizando trechos de um poema de Friedrich Klopstock, que ele completou com uma ode triunfante à ressurreição dos mortos. Os movimentos – I. Allegro maestoso; II. Andante moderato; III. “In ruhig fließender Bewegung”; IV. “Urlicht”; e V. “Im Tempo des Scherzos” – trazem, descritivamente, as características da história a ser contada em cada um deles. O “sentido” da composição, Mahler explicou à violista Natalie Bauer-Lechner, sua amiga e confidente, que o imortalizou em sua obra Recollections of Gustav Mahler:
“O primeiro movimento retrata as lutas titânicas de um ser poderoso ainda preso às armadilhas deste mundo, lutando com a vida e com o destino ao qual ele deve sucumbir – sua morte. O segundo e terceiro movimentos, Andante e Scherzo, são episódios da vida do herói caído. O Andante fala de amor. A experiência por trás do Scherzo só posso descrever em termos da seguinte imagem: se, à distância, você observar uma dança através de uma janela, sem poder ouvir a música, então o movimento de giros e torções dos casais parece sem sentido, porque você não está captando o ritmo que é a chave de tudo. Você deve imaginar que, para alguém que perdeu sua identidade e sua felicidade, o mundo parece assim – distorcido e louco, como se refletido em um espelho côncavo. O Scherzo termina com o grito apavorante desta alma torturada. O ʻUrlichtʼ [quarto movimento, que, aqui, ele parece considerar uma espécie de intermezzo] representa a busca da alma e sua atitude questionadora em relação a Deus e à sua própria imortalidade. Enquanto os três primeiros movimentos têm caráter narrativo, no último movimento tudo é experiência interior. Começa com o grito de morte do Scherzo. E agora a resolução do terrível problema da vida – a redenção.”
Para um ouvinte não técnico, como eu, a explicação soa perfeita. A sensação é de uma jornada espiritual, de um conjunto de sensações e experiências que vão se acumulando, entre altos e baixos, até culminarem numa apoteótica redenção. Como cristão, nada mais paradigmático. A vida, cheia de percalços e sofrimentos, clama por uma solução definitiva; nas palavras de J.R.R. Tolkien, por uma eucatástrofe, uma “repentina virada jubilosa”.
Curiosamente, o primeiro movimento foi composto como uma obra única, um poema sinfônico que ele, posteriormente, somou aos demais movimentos – mesmo sem muita convicção de como essa “colagem” seria percebida pelos ouvintes. Tanto é que ele recomendava um intervalo de cinco minutos entre o primeiro e o segundo movimentos, a fim de a plateia poder se recuperar e, também, aguardar a entrada do coro e dos solistas (outra recomendação de Mahler); apesar de essa pausa ser pouco respeitada atualmente, ela ocorreu no Municipal, o que me causou surpresa. De início, Mahler ofereceu programas explicativos de cada movimento, a fim de orientar a audiência; mas, posteriormente, trabalhou para que eles não sobrevivessem ao tempo.
O segundo e o terceiro movimentos são mais parecidos com uma sinfonia convencional. O quarto, Urlicht, é de uma delicadeza emocionante. Utilizando um trecho de Das knaben wunderhorn (A trompa mágica do menino), anuncia, em tom melancólico e meditativo: “Eu vim de Deus e retornarei a Deus! / O amoroso Deus me dará uma luzinha, / Que me iluminará para a abençoada vida eterna!”, antecipando o que virá no quinto movimento – o mais longo, com 37 minutos. A explosão de percussões e trompetes agudíssimos anuncia o Juízo Final, para, após uma longa variação de ritmos, quase silenciar no coro, à capella, recitando os versos de Klopstok, e explodir com um triunfante: “Ressuscitará, sim, / Meu coração ressuscitará em um instante! / Tudo o que sofreste / Te levará a Deus!” É nada menos que estupendo, e a sensação, ao final, é do mais absoluto arrebatamento.
Os críticos, dentre eles Otto Maria Carpeaux, dizem que Mahler, por vezes, soava simplório. Em O canto do violino, coletânea de ensaios sobre música, ele afirma: “Os textos escolhidos por Mahler, homem de vasta cultura, incomum entre os músicos, sempre são da mais sublime qualidade literária; mas os temas musicais de Mahler nem sempre correspondem às suas ambições. Só raramente se impõem. Às vezes, embora elaborados com um máximo de emoção e arte, são de trivialidade desconcertante”. Entretanto, não há como negar a revolução provocada por Mahler com a Ressurreição. O crítico Jens Malte Fischer, em seu livro sobre o compositor, diz:
“É evidente que tal programa [no sentido de como a composição foi organizada, construída] vai muito além de qualquer coisa encontrada na música antes deste período – e permanece um programa mesmo que tenha sido destinado a apenas um público limitado, e mesmo que seja difícil compará-lo com o tipo normal de programa associado à música sinfônica convencional. Até mesmo os recursos instrumentais aos quais a sinfonia recorre ultrapassam tudo o que foi exigido por Wagner e Strauss, especialmente a orquestra fora do palco no movimento final, que consiste em quatro trompetes e trombones adicionais e um conjunto extra de percussão. Mahler também exige três barras de aço, duas solistas femininas (soprano e contralto) para o quarto e quinto movimentos e um coro de vozes mistas – na primeira apresentação, em Berlim, este coro contava com nada menos que 200 cantores. No geral, isso antecipa os recursos ainda mais luxuosos da Oitava Sinfonia.”
Os críticos, dentre eles Otto Maria Carpeaux, dizem que Mahler, por vezes, soava simplório. Entretanto, não há como negar a revolução provocada por Mahler com a Ressurreição
Mahler tinha plena convicção de sua vocação e era por ela levado a uma paixão avassaladora pela perfeição de sua arte. Diz Carpeaux: “Foi o grande romântico E.T.A. Hoffmann que criou o personagem do regente Kreisler, apaixonado da música, afigurando-se louco aos que não lhe compreendem o entusiasmo quase fanático, sofrendo profundamente pelo antagonismo entre a Arte e o mundo da Prosa [...]. Gustav Mahler foi encarnação ou reencarnação desse personagem Kreisler. Ouvi-o reger quando eu era menino: sem compreender-lhe nada da arte, só vi um homem alto de magreza espantosa, gesticulando como um possesso, fazendo as caretas mais burlescas; esse Paganini da batuta parecia ora ator humorístico, ora louco demoníaco. Mas não era ator nem louco. Apenas um servidor fanático de ideais inacessíveis”. E em conversa com Natalie Bauer-Lechner, o próprio Mahler confirma essa obsessão espiritual:
“O início e a criação de uma obra são místicos do começo ao fim; inconscientemente, como se sob o domínio de um comando vindo de fora de si mesmo, é compelido a criar algo cuja origem mal se pode compreender depois. Muitas vezes me sinto como a galinha cega que consegue encontrar um grão de milho! Mas, ainda mais estranhamente do que em um movimento ou obra inteira, esse poder inconsciente e misterioso se manifesta em passagens individuais, e precisamente nas mais difíceis e significativas. Geralmente, são aquelas com as quais não quero lidar, que gostaria de evitar, mas que continuam a me segurar e finalmente forçam seu caminho para a expressão.”
Todo esse poder da música de Mahler não é fácil de traduzir em palavras. Só quem esteve no Municipal, ou mesmo quem já ouviu com atenção a uma das sinfonias deste grande compositor (sobretudo a Segunda, a Terceira e a Oitava), compreende o que tentei, em poucas palavras e testemunhos, evidenciar neste breve texto. A OSMDESP, os coros e as solistas (viva as cantoras líricas brasileiras!) realizaram, sob o comando de Minczuk – um dos maiores maestros em atividade –, um concerto maravilhoso, e conseguiram transmitir, com grande competência e clareza à audiência – sobretudo àqueles que creem, como eu – que Mahler entendeu tudo!
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