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Paulo Cruz

Paulo Cruz

Escravidão ideológica à direita

Presidente da República, Jair Bolsonaro durante Abertura da Copa América Brasil 2019, acompanhado de Hélio "Bolsonaro". Foto: Marcos Corrêa/PR (Foto: Marcos Corrêa/PR)

“Uma nação que se recusa a discutir inteligentemente ou a investigar o problema que, historicamente e no presente, é o maior de seus problemas sociais, pode reclamar e fingir que deseja liberdade de expressão, mas se engana”. (W. E. B. Du Bois)

A última semana foi mais uma daquelas de explicações e reexplicações para algo que deveria ser somente um ponto de discordância ou advertência a ser refletido. Sim, porque num país cuja polarização política atingiu o ápice do maniqueísmo, do “nós contra eles”, todo questionamento da ordem (ou desordem) vigente é “procurar pelo em ovo”; pior: todo contraditório é traição. Não há espaço para o debate franco, para a reflexão detida; aqueles que macaqueiam a advertência de não ser possível “servir a dois senhores”, se esquecem da admoestação imediatamente anterior, que diz: “A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes são tais trevas!” (Mt 6,22-23).

Vamos aos fatos: ousei questionar a postura política de Hélio Lopes, o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro nas últimas eleições. Para quem não sabe, o sub-tenente do exército Hélio Fernando Barbosa Lopes era um ilustre desconhecido até 2018. Antes cognominado Hélio Negão, concorreu para vereador, em 2004, por sua cidade Natal, Queimados, e recebeu 277 votos; em 2014 pleiteou a vaga para deputado federal, pelo RJ, mas, ao que parece, sua candidatura foi indeferida; em 2016 concorreu para vereador novamente, dessa vez por Nova Iguaçu, mas recebeu somente 480 votos. Mas eis que, em 2018, surge Hélio Bolsonaro, o “melhor amigo” do então candidato Jair Bolsonaro, que disse ter adotado o amigo de “uns vinte anos”, a fim de elegê-lo para a câmara federal. Com o apadrinhamento da campanha, Hélio passou não só a adotar o sobrenome de seu popularíssimo amigo, mas, também, a divulgar seus tuítes usando uma hashtag nada convencional: #onegãodobolsonaro.

Até aí, tudo bem. Não há o que desconfiar dessa relação de amizade, pautada pelo respeito e, sobretudo, pela conhecida lealdade militar; no entanto, é preciso que sejamos honestos para notar que ela não tinha qualquer relevância até o último período eleitoral. Hélio assumiu o sobrenome Bolsonaro a fim de se eleger, e a moeda de troca parecia estar pronta: “Bolsonaro não é racista, eu sou a prova disso” – ou seja, a aliança serviu também para tentar afastar a imagem de que Bolsonaro era racista. Inclusive, os dois começaram a aparecer juntos em meio ao processo movido, por entidades quilombolas (?), por conta de suas afirmações controversas dadas no Clube Hebraica, no RJ, em 2017, após visitar uma dessas comunidades. A proximidade com Hélio também o ajudou a se afastar daquele tal de Paulo Quilombola, um líder quilombola com cara de sambista, que parecia não convencer ninguém, e cuja liderança foi contestada e repudiada até pelas entidades que representam essas comunidades – seja lá o que elas mesmas signifiquem. A dívida de gratidão de Hélio, expressa em suas tórridas manifestações de carinho pelo presidente, também não estão em questão. Tudo isso é legítimo. Inclusive a constatação de que Hélio Lopes não é um turista no Legislativo. Apresentou um número grande de projetos desde o início do mandato e tem ido às sessões na Câmara – quando não está viajando com Bolsonaro, evidentemente.

O problema é de ordem estética e de moral política. Ter se tornado o “Negão do Bolsonaro” (sempre detestei a palavra negão, diga-se se passagem), ter se prestado a esse expediente para ser eleito, tornou Hélio uma espécie de race card de Jair Bolsonaro, e suas aparições por aí, ao lado do agora presidente, quase sempre e infelizmente transmitem uma postura de subserviência que reforçam um estereótipo do qual os negros estão tentando se livrar há décadas. E ainda que seja involuntário, não deixa de ser real. Esteticamente, na maioria das vezes Hélio parece estar a tiracolo do presidente (1, 2, 3, 4, 5); parece estar sempre na posição de um segurança, na retaguarda. Essa, inclusive, é a impressão de muitos que não o conhecem; não por maldade, mas porque assim as coisas são, ainda, no Brasil. Difícil não associá-lo, por exemplo – guardadas as devidas proporções e posições –, a Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, o “Anjo Negro” (1, 2, 3).

E, veja, caríssimo leitor, não se pode, mesmo, atribuir isso à mera associação maldosa, uma vez que, como eu mesmo já disse muitas vezes (p.e. aqui, aqui e aqui), nossa cultura ainda é muito pautada pela visão do negro como subalterno; e, como também costumo afirmar, é preciso separar essa perspectiva do racismo puro e simples. Por mais de trezentos anos a escravidão foi uma realidade que permeou a sociedade brasileira, nossa imaginação moral acostumou-se a ela e culturalmente ainda sentimos os seus efeitos; por isso, ainda é necessário que essa cultura mude – e isso leva tempo –, a fim de normalizar o olhar de todos para o fato de que, cada vez mais, há negros em todas as posições sociais. É um trabalho de todos nós. Como advertiu Joaquim Nabuco, protagonista da causa abolicionista – em passagem de seu Abolicionismo já citada por mim anteriormente: “enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos”.

Um desses organismos é a autoestima do negro, a visão que ele tem de si próprio, bem como a visão que transmite aos outros. Assumir uma postura de altivez é parte da autoeducação que estimula a superação das dificuldades e serve de exemplo a outros, a fim de que todos se apresentem com independência perante a sociedade, mudando essa impressão que ainda persiste. A questão é delicada? É, mas é preciso enfrentá-la se quisermos livrar a sociedade da garras da vitimização perpetrada pelas teorias identitárias. Ficar repetindo obviedades autoafirmativas como “minha cor é o Brasil” não ajuda, pois os bordões servem à reação emocional, mas não à profunda conscientização.

Fazendo um livre paralelo, lembro-me da absolutamente excepcional entrevista da filósofa Camille Paglia ao programa Roda Viva, na qual ela diz que o feminismo, a revolução sexual dos anos 1960, deu liberdade às mulheres, mas que agora, o que ela chama de “feminismo burguês” está num processo de retrocesso, pedindo por proteção estatal para tudo. Paglia diz que, ao entrar na universidade, havia uma enorme e rigorosa supervisão e monitoramento das mulheres no campus, e elas se rebelaram contra isso. Ela afirma: “Eles nos disseram 'o mundo é perigoso, temos a obrigação de protegê-las de estupros'. E nós dissemos: 'nos deem a liberdade de arriscar', essa é a verdadeira liberdade”. E faz uma das afirmações que mais causam ódio às feministas de hoje – mas que nos serve de um exemplo por associação –, de que “a comunicação sexual é muito mais do que palavras”, que há códigos não verbais que transmitem o interesse em sexo, e um deles é a vestimenta; e diz que a mulher contemporânea não pensou bem “na natureza de seu modo de vestir”: “o modo como ela se veste, a quantidade de pele exposta, contém uma mensagem sexual”, quer ela queira ou não. Se querem expor o corpo – e ela diz que defende a total liberação das mulheres para que façam o que bem entendam –, devem estar preparadas para a autodefesa contra as “bestas primitivas” que ainda circulam por aí. Ou seja, segundo Paglia, as mulheres devem ser completamente livres, mas absolutamente responsáveis pelo modo como se vestem e se comportam, e arcar com as consequências.

O caso de Hélio Lopes é parecido pela mensagem que também transmite, ainda que sua intenção seja somente estar perto do amigo e manifestar a sua gratidão – por exemplo, escrevendo, pateticamente, IRMÃO, em caixa alta, em suas postagens. Se ele não deaeja ficar conhecido, para sempre, como o “negão do Bolsonaro”, se não quer mais (na campanha ele quis) que as pessoas assim o vejam, precisa, agora que está eleito, assumir o seu papel de parlamentar independente, ainda que mantenha, evidentemente, a fidelidade política a Jair Bolsonaro. Precisa mostrar a seus IRMÃOS negros – inclusive àqueles que discordam dele – que tem personalidade e independência para tocar o seu projeto pessoal, atender os anseios de seus eleitores e, pela projeção, ser um exemplo a outros que queiram trilhar o mesmo caminho virtuoso que o dele. Se não quer ter a sua atividade parlamentar questionada por parecer estar, a todo momento, ao lado do presidente, deixando de cumprir seus compromissos na Câmara, deve ser prudente. Esse é o meu desejo para o deputado Hélio Lopes, que reputo ser um homem de inteligência e caráter, além de, certamente, uma pessoa maravilhosa.

Mas pensas, atento leitor, que o título desse artigo faz referência ao Hélio? De modo algum! Diz respeito ao comportamento, por vezes animalesco, da famigerada militância política que apoia o presidente. Por meus comentários no Twitter, fui chamado de esquerdista – por gente que, provavelmente, só descobriu que existe algo chamado “direita” e “esquerda”, na política, há menos de um ano –, de invejoso, vitimista e até de racista. Houve até quem criticasse o fato de eu colaborar com o Instituto Brasil 200, dizendo que estou recebendo “migalhas de milionários brancos”. Outro disse que sou influenciado pela “mentalidade revolucionária”; outro, que não entendo as relações de amizade – mesmo tendo escrito artigos recentes, aqui, nesta Gazeta do Povo, no qual exalto o valor das verdadeiras amizades (esse e esse). Ainda houve quem me questionasse por ter comprado o meu curso. Centenas de comentários, repetindo as mesmas coisas. Tentei explicar melhor, mas não adiantou; e veio daí o desejo de explanar o caso num artigo.

Mas o que mais vi foi gente dizendo que, pelo fato de Bolsonaro e Hélio serem muito amigos, ele tem todo o direito de viajar com o presidente para onde quiser. E que por ele ser, como disse alguém, “um cara muito gente boa, que eu convidaria para um churrasco”, está tudo OK. Ou seja, não se importam que o parlamentar eleito tem compromissos que, a cada viagem, têm de ser adiados; que seu salário é pago com dinheiro público; que fazer parte de comissões não pode ser um passe inquestionável para ele estar sempre acompanhando o presidente. Ou seja, o brasileiro ainda é o brasileiro de sempre, doente do paternalismo estatal; e os políticos continuam autorizados a manter o patrimonialismo de sempre, desde que se digam comprometidos com o que as pessoas acreditam. A imensa maioria das reações foi puramente emocional; de pessoas que acompanham (ou acompanhavam) meu trabalho, mas quando veem um comentário com o qual não concordam, dizem: “eu te admirava, o que aconteceu”?; como se a admiração a uma pessoa não se desse pelo que ela, de fato, é, mas pelo nível de concordância quase simbiótica nos assuntos mais periféricos possíveis. Isso não é admiração, é transferência.

Essa reação irada a qualquer discordância, essa violência absurda ao simples contraditório, Theodore Dalrymple, no seu Podres de mimados (É Realizações), liga ao sentimentalismo tóxico que assola a sociedade contemporânea. Diz ele, por exemplo, analisando a violência nas prisões:

A conexão entre o sentimentalismo e a lei do linchamento é também demonstrada pela violência dos prisioneiros contra seus colegas que são culpados de delitos sexuais (ou que apenas estão cumprindo pena por eles). A lógica para essa violência é que os criminosos sexuais 'mexem com criancinhas' – sempre criancinhas, aliás, e nunca meras crianças. As autoridades têm de proteger os criminosos da ira sentimental de homens que, não infrequentemente, causaram eles mesmos muitos infortúnios a outrem e agiram com brutalidade, e que são grandes procriadores e negligenciadores de crianças. O sentimentalismo é o progenitor, o avô e a parteira da brutalidade (grifo meu).

Mais à frente, assevera, em relação à sinalização de virtudes sentimentais: “O frisson da emoção supostamente virtuosa para exibição e consumo público, ou sentimentalismo, aqui [na indignação suscitada por uma pesquisa sobre encarceramento] é criado pela fuga deliberada da complexidade, e pelo evitamento da reflexão a respeito de realidades desagradáveis”.

Tudo isso é muito triste. Mas não era difícil prever que, ao nos livrarmos do radicalismo petista, seríamos submetidos a um novo radicalismo – que às vezes se mostra ainda mais radical. Desde a campanha eleitoral isso era certo. Porém, minha crítica à escravidão ideológica de gente à esquerda não pode se calar ao mesmo procedimento de gente à direita. Que essa polarização horripilante e irrefletida faça parte do processo de transição pelo qual o país está passando, eu até compreendo, mas não contem comigo. Para mim isso é, nas palavras de Gustave Thibon, mística revolucionária, que ele expõe num de seus melhores aforismos:

Coração gelado! – me dizeis vós, em tom de censura, pelo fato de eu não partilhar no vosso ardor impuro... Coração gelado, não! Eu gosto do calor, tanto ou mais do que vós. Mas detesto a febre.

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