“A partir daqui começa minha carreira de poeta e minha despedida do mero criador de textos de ópera [...]. Para me libertar de dentro para fora, isto é, para me dirigir à compreensão de homens com sentimentos semelhantes, fui levado a traçar para mim mesmo, como artista, um caminho que ainda não me fora apontado por nenhuma experiência exterior; e o que leva um homem até aqui é a necessidade, profundamente sentida, que é incognoscível pela razão prática, mas é avassaladora.” (Richard Wagner, sobre a composição de O Holandês Voador)
Minha total predileção pelas óperas – ou dramas musicais – de Richard Wagner é de conhecimento do leitor. O modo como, a partir de O coro dos peregrinos, da ópera Tannhäuser, fui tragado para o universo mítico do compositor alemão é parte fundamental de minha trajetória intelectual. O profundo mergulho na Tetralogia do Anel e em Parsifal, que ouvi incontáveis vezes, fez de mim um devoto da obra de arte total wagneriana, que une poesia e música num todo indissociável. Como diz seu bisneto Gottfried Wagner em Richard Wagner for the New Millennium: “A arte da poesia dentro da ópera, como epítome de todas as artes, só existe se se misturar perfeitamente com a expressão musical, se tornar cantável e puder ser transformada num tema para ópera. A arte da música dentro da ópera, como epítome de todas as artes, só existe se servir para concretizar e expressar o objetivo poético da ópera”.
Poesia e música – e também todo aspecto cênico e de figurino, indissociáveis das aspirações de Wagner – são elevadas à expressão máxima do drama humano através de suas óperas, que procuram recuperar o sentido de catarse das tragédias gregas. Mas essa não era uma operação simples; para ele, nem a sinfonia tradicional nem a poesia descritiva cumpriam esse papel. Tal desenvolvimento só seria possível caso fosse entregue
“nas mãos daquele poeta que está totalmente atento à tendência e à exaustiva faculdade de expressão da música, e, portanto, redige seu poema de modo que possa penetrar nas fibras mais finas do tecido musical e o discurso falado se dissolva inteiramente no sentimento. Obviamente, nenhuma outra forma de poesia pode nos ajudar aqui, exceto aquela em que o poeta não descreve mais, mas traz seu tema para uma representação real e convincente dos sentimentos; e esta única forma é o drama. O drama, no momento de sua representação cênica efetiva, desperta no espectador um interesse tão íntimo e instantâneo por uma ação fielmente emprestada da própria vida – pelo menos em suas possibilidades –, que o sentimento de simpatia do homem é transportado àquele estado de êxtase que suplanta a fatídica pergunta ʻPor quê?ʼ e voluntariamente se entrega, com extrema excitação, à orientação daquelas novas leis pelas quais a música se torna tão maravilhosamente inteligível e – num sentido mais profundo – fornece também a única resposta adequada para esse ʻPor quê?ʼ”. (Richard Wagner, A obra de arte do futuro)
Poesia e música são elevadas à expressão máxima do drama humano através das óperas de Wagner, que procuram recuperar o sentido de catarse das tragédias gregas
E em O Holandês Voador, sua quarta ópera e aquela em que ele dá uma guinada em sua concepção artística – uma “violenta mudança de direção”, como ele mesmo afirma –, essa união visceral entre poesia e música, música e drama, mito e realidade, começa a tomar corpo. Foi composta em meio a reveses e controvérsias de sua vida enquanto estava em Paris, onde fora buscar melhores oportunidades de trabalho e fugir das muitas dívidas contraídas na Alemanha. À época ele tinha tinha 26 anos e estava em Riga, capital da Letônia, com seu passaporte confiscado e sendo perseguido pelas autoridades e pelos credores. Decide, então, fugir para a França, via Londres, pela costa prussiana, numa viagem perigosíssima, que, por causa das terríveis tempestades, durou muito além do tempo normal. Sua primeira esposa, Minna Planer, que estava grávida, perdeu o bebê na viagem.
Wagner afirma, num esboço autobiográfico: “Nunca esquecerei essa viagem enquanto eu viver; durou três semanas e meia e foi pródiga em confusão. Por três vezes suportamos as mais violentas tempestades, e uma vez o capitão viu-se obrigado a embarcar para um porto norueguês. A passagem entre os penhascos da Noruega causou-me uma impressão maravilhosa; as lendas do Holandês Voador, tal como as ouvia da boca dos marinheiros, revestiam-se para mim de uma cor distinta e individual, emprestada das aventuras do oceano por onde eu então passava” (Wagner on music and drama, Albert Goldman e Evert Sprinchorn, orgs.). A lenda do Holandês Voador é antiquíssima e tem várias fontes e versões. A mais conhecida fala sobre o capitão de um navio que, perdido em meio a uma tempestade, desafia o diabo e é por este condenado a naufragar, eternamente, a não ser que encontre uma mulher disposta a lhe ser fiel. O Navio Fantasma (outro nome dado à ópera) tem permissão para atracar de sete em sete anos, para que o condenado procure uma esposa.
É o primeiro trabalho em que as características wagnerianas mais conhecidas começam a aflorar – os leitmotivs, o amparo nas lendas e mitos, e a redenção através do amor são alguns deles. Martin Geck, em Richard Wagner: A life in music, amparado pelo próprio compositor, diz:
“A indústria musical de hoje apropria-se e absorve tudo o que quer, tornando difícil imaginar o que significou para um compositor sair da ordem das coisas com uma obra como Der Fliegende Holländer e nadar, por assim dizer, contra a maré. Cada época tem o seu ritmo específico, e a grande ópera fazia parte do ritmo subjacente dos anos entre 1830 e 1850 na França, quando um espírito de inquietação e cores heterogêneas caracterizava a sociedade francesa. Com Der Fliegende Holländer Wagner abandonou completamente este projeto complexo. Como ele explicaria mais tarde em seu ensaio ʻMúsica do Futuroʼ, ʻo glamour do ideal de Parisʼ estava agora ʻdesaparecendoʼ diante de seus olhos, ʻe comecei a extrair as leis da forma de uma fonte diferente do mar que se espalhava por toda parte diante de mim, para uso público em geralʼ […]. O Wagner de Der Fliegende Holländer [...] não só desprezava a suntuosidade da grande ópera, como também se recusava a partilhar a sua tendência geral de enfeitar os seus libretos com detalhes históricos. Em vez disso, ele buscou a verdade nas profundezas oceânicas da lenda, onde foi atraído pelo destino do marinheiro que, devido à sua existência ímpia, é obrigado a navegar os sete mares até o Dia do Juízo Final.”
Wagner utilizou como base a versão do poeta Heinrich Heine da lenda, From the Memoirs of Herr von Schnabelewopski, e imaginou elementos correspondentes de outras fontes. Ele diz:
“A figura do Holandês Voador é uma criação mítica do povo: um traço primordial da natureza humana fala dela com uma força comovente. Essa característica, em seu significado mais universal, é a saudade do descanso em meio às tempestades da vida. No alegre mundo da Grécia, encontramos isso nas andanças de Ulisses e em seu anseio pelo seu lar, por sua casa, seu coração e sua esposa: a recompensa alcançável, e finalmente alcançada, do filho amado da antiga Hélade. O cristão, sem lar na terra, incorporou essa característica na figura do Judeu Errante: para aquele andarilho, condenado para sempre a uma vida há muito perdida, sem objetivo, sem alegria, não floresceu nenhum resgate terreno; a morte era o único objetivo remanescente de todos os seus esforços; sua única esperança, a entrega do ser.”
E complementa:
“Como Assuero, ele anseia que seus sofrimentos acabem com a morte; o holandês, porém, poderá obter esta redenção, negada ao judeu imortal, pelas mãos de uma mulher que, por muito amor, se sacrificará por ele. A ânsia da morte impele-o assim a procurar esta mulher; mas ela não é mais a Penélope de Ulisses, que cuida da casa, como era cortejada antigamente, mas a quintessência da mulher; e, no entanto, a mulher ainda imanifesta, a almejada, a sonhada, a mulher infinitamente feminina - deixe-me dizer isso em uma frase: a mulher do futuro.”
A ópera, de três atos (geralmente apresentados sem intervalo, como Wagner a imaginou), é uma espécie conto de horror fantástico – à la E.T.A. Hoffmann e Edgar Allan Poe – e se inicia com um poderoso motivo, conduzido pelas trompas, e um tremular das cordas que se assemelham à agitação do mar. O mar, aliás, é o fundamento mítico-metafísico dessa obra; é ele quem comunica as variações emocionais da história. Como diz Thomas Robert May, em Decoding Wagner: “Adicione a agitação do mar que Wagner sugere em suas figurações maníacas de cordas, e uma representação musical memorável do esforço incansável do holandês torna-se fixada na mente [...]. À medida que os mares se agitam na partitura, Wagner já demonstra uma capacidade precoce e notável de controlar a flexibilidade emocional da expressão de uma forma que sugere algo além da própria música. Ele manipula a agitação e a calma passageira como indicadores da busca frustrada do holandês pela paz”. O drama se passa na costa da Noruega, numa aldeia de pescadores que são surpreendidos com a chegada do funéreo navio do Holandês Errante.
O Holandês Voador é o primeiro trabalho em que as características wagnerianas mais conhecidas começam a aflorar – os leitmotivs, o amparo nas lendas e mitos, e a redenção através do amor são alguns deles
O primeiro ato, todo masculino, trata da chegada do navio fantasma na aldeia em meio a uma tempestade. O timoneiro, que ficara de guarda à noite, é o primeiro a avistar a sombria embarcação. Em seguida, Daland, o capitão e pai de Senta (lê-se “Zenta”), a heroína da história, encontra o Holandês – não nomeado por Wagner, mas que, na tradição, tem o nome de Vanderdecken – que, num monólogo, explica sua sina e oferece a Daland grande riqueza por sua hospitalidade. Ao saber que o capitão tem uma filha, propõe que ela seja sua esposa a fim de libertá-lo da maldição.
O segundo ato, predominantemente feminino, se inicia com o belíssimo coro das fiandeiras e com Senta, olhando um quadro que representa o Holandês Voador, contando sua história numa visceral ária e manifestando o desejo em ajudá-lo. Erik, caçador e homem para qual, inicialmente, Senta fora prometida, aparece e adverte a amada sobre a temeridade de sua intenção. O ato termina com Daland chegando em sua casa com o Holandês, apresentando-o à sua filha e pedindo que ela se case com ele. O ato termina com um dueto dos dois pretendentes, o eufórico Holandês e Senta, obediente e, ao mesmo tempo, titubeante, mas determinada a obedecer ao pai.
O terceiro ato se inicia, festivamente, com um dueto de coros, dos marinheiros e das tecelãs, que cantam efusivamente, comendo, bebendo e convidando a tripulação do navio fantasma para a festa em grande exaltação. O navio holandês contrasta sombriamente a alegria reinante com um silêncio sepulcral. De repente uma tempestade irrompe e a tripulação fantasmagórica do navio holandês se manifesta, aterrorizando a todos. Na segunda e derradeira cena, Erik tenta demover Senta de sua decisão de acompanhar o Holandês, que vê a discussão entre os dois, se desespera e embarca em seu navio, triste por sua sina. A ópera termina com Senta reafirmando sua decisão de acompanhar o Holandês e atirando-se ao mar. O navio fantasma afunda e, ao fundo, Senta e o Holandês aparecem, transfigurados, num abraço de cumplicidade.
Diz Martin Geck: “Ernst Bloch viu nas personagens de Wagner ʻnavios atirados, de um lado a outro, pelas ondas, que cumprem sem resistência o sofrimento, a luta, o amor e o anseio de redenção do seu oceano interior e sobre o qual, em cada momento decisivo, em vez do encontro de um com o outro e com a profundidade de um destino individual, submetem-se apenas à onda universal do Destino schopenhauerianoʼ. Isso é certamente verdade para o Holandês, que não luta; e isso também vale para Senta, que obedece aos ditames de seu destino como se estivesse em transe”. Essa ópera não soa, ainda, como uma ópera romântica no sentido estrito (e wagneriano) do termo; não há grandes arroubos emocionais e o final, ainda que evocando a redenção através do amor, o faz não de maneira arrebatadora, mas como a obediência estoica a um destino inexorável. Senta não está apaixonada pelo Holandês; ela é só uma jovem sonhadora insatisfeita com a monotonia de seus dias. O Holandês tampouco é movido pelo sentimento, só deseja se ver livre da maldição satânica. O único apaixonado – e paradoxalmente são – é Erik, que é abandonado sem qualquer cerimônia por uma aventura fantasmagórica.
Particularmente gosto muito do coro dos marinheiros, no início do primeiro ato; do coro das fiandeiras, no segundo ato; e da Balada do Holandês, a ária cantada por Senta. Há momentos sublimes, mas também longas árias e duetos que, a meu ver, fazem a trama perder um pouco de fôlego. Mas é uma ópera wagneriana, e, como tal, tem o toque do gênio que não nos deixa indiferentes. Muito pelo contrário: na abertura Wagner já despeja sobre nossos sentidos toda a fantasmagoria e toda a tensão da trama, os leitmotivs, as variações de temas e, sobretudo, o monumento musical sempre arrebatador de suas composições.
Falemos rapidamente da montagem a que fui assistir, no último fim de semana, no Theatro Municipal de São Paulo. Primeiramente, como gato escaldado de algumas discutíveis (para dizer o mínimo) montagens brasileiras – como o equivocadíssimo Crepúsculo dos deuses, de 2012, e a recente discurseria identitária de O Guarani –, não costumo ter expectativas em relação ao que verei. A excelência da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e dos Coro Lírico Municipal, bem como o trabalho excepcional do maestro Roberto Minczuk, são suficientes para me animarem a encarar as possíveis esquisitices das propostas contemporâneas na encenação de obras clássicas.
E qual não foi minha surpresa ao me deparar com uma montagem nada menos que extraordinária, comandada pelo talentosíssimo diretor cênico argentino Pablo Maritano. Numa união entre o universo sombrio da lenda e o clima monocromático das graphic novels, a abertura é animada pela projeção, em altíssima definição, numa tela transparente (em tule) que cobre todo o palco – e será utilizada como parte do cenário, criando uma composição 3D espetacular entre o projetado e o encenado –, de imagens de um livro antigo com ilustrações de Gustave Doré para o poema The Rime of the Ancient Mariner, de Coleridge, introduzindo-nos na ambientação fortemente expressionista da montagem. Ou seja, o clássico e o moderno em diálogo riquíssimo – como deve ser.
A montagem do Municipal mostra que não é preciso mutilar a concepção original de uma obra clássica, tão ligada a um contexto mítico específico, para incluir elementos e até discursos modernos
O cenário, de Desirée Bastos, contou com palcos moveis, içados por elevadores e cabos de aço (algumas vezes barulhentos demais), que aumentaram o dinamismo e as rápidas alterações de ambiente durante as cenas. A iluminação muito competente de Aline Santini foi fundamental para criar o contraste entre a atmosfera do real e do fantasmagórico, igualmente presente nos figurinos (também assinados por Bastos) dos habitantes do vilarejo e dos etéreos tripulantes do navio fantasma. As projeções ficaram ao encargo do também argentino Matías Otálora. Um conjunto muito competente e tecnicamente magistral, que coube muito bem à lenda pelas lentes wagnerianas. Como diz Maritano no texto introdutório que compõe o belo libretto bilíngue vendido pelo Municipal:
“O desejo de Wagner por um novo tipo de espetáculo foi muito além das possibilidades técnicas de sua época. Esse desejo de capturar esse mundo fantástico só é alcançável através das nossas possibilidades técnicas contemporâneas. Poderíamos citar, apenas como exemplo, a metamorfose que ocupa os últimos minutos da obra, e que não contém texto, é apenas poesia visual e musicada. Esse mundo impossível, que muda a cada instante, levou-nos a investigar a flexibilidade do vídeo e da narrativa da novela gráfica (em que a fantasia e o terror são frequentes) e também a levar essa identidade visual ao abismo wagneriano: permitimo-nos sair do presente e viajar para o subjetivo de cada personagem, e depois retornar à vontade e percorrer a história com a ajuda de seu autor.”
E o sempre competente Roberto Minczuk, maestro titular do Municipal e diretor musical da montagem, complementa: “Toda essa atmosfera está presente na música de O Navio Fantasma com muita força, uma potência que vemos claramente nos filmes de hoje. Se nós não tivéssemos Wagner como pioneiro descrevendo essas cenas, essas histórias, certamente não teríamos filmes de aventura no cinema, nada como O Senhor dos Anéis e tantos outros que remetem ao sobrenatural, ao épico e ao heroico. A música de Wagner, justamente com O Navio Fantasma, é o berço de trilhas sonoras de Hollywood. Ele foi capaz de criar o que ninguém tinha ouvido ainda. Ele introduz elementos na ópera que a gente se pergunta: como ele consegue musicalmente, com violinos, trompetes e trompas, criar uma sonoridade arrebatadora que nos empolga e inspira? Por trabalhar todos esses elementos que Wagner é diferenciado”.
A montagem contou com dois elencos. No dia em que estive, Hernán Iturralde interpretou com profundidade o Holandês; Carla Filipcic foi simplesmente arrebatadora com sua Senta; e Kristian Benedikt interpretou Erik com bastante brilho. Ainda tivemos os não menos competentes: Luiz-Ottavio Faria, baixo brasileiro, como Daland; Giovanni Tristacci no papel do Timoneiro; e Regina Mesquita interpretando Mary. A Orquestra e o Coro Lírico foram perfeitos.
Portanto, só me resta dar os parabéns ao Theatro Municipal de São Paulo e a todos os envolvidos nessa montagem maravilhosa, e me certificar, mais uma vez, de que não é preciso mutilar a concepção original de uma obra clássica, tão ligada a um contexto mítico específico, para incluir elementos e até discursos modernos.
P.S.: A título de curiosidade, indico ao nobre leitor a moderníssima montagem, de 2021, do lendário Bayreuth Festspielhaus – o teatro concebido por Wagner especialmente para suas óperas. Ela é outro exemplo de como fazer uma montagem contemporânea, com alteração, inclusive, da ambientação (se passa num contexto urbano, e não litorâneo), sem, contudo, deixar de dialogar com a montagem clássica. Simplesmente sensacional! Veja aqui.
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