— É verdade que algo nos direciona contra nossa vontade […]
— Quem é que faz essa zombaria com a humanidade? Quem nos arrasta pelo nariz?
— O diabo, provavelmente.
(Robert Bresson, O diabo, provavelmente)
Num artigo sobre educação, publicado nesta Gazeta do Povo, ousei fazer uma crítica a um dos filmes mais cultuados do século 20, Sociedade dos poetas mortos, por considerar a atitude do professor John Keating, vivido por Robin Williams, revolucionária e inconsequente, e que levou um jovem ao suicídio. Jovens precisam de instrução e de limites, não de adultos que os levem a quebrar ditos paradigmas ou mesmo a ordem institucional. Um adulto que faz isso é, no mínimo, um inconsequente; no máximo, um psicopata.
Lembrei-me, recentemente, de outro filme cuja história remete, só que em sentido inverso, à mesma situação: A onda, de Dennis Gansel. Um professor do ensino médio, Reiner Wenger, a fim de falar sobre autocracia, tem a ideia fazer um experimento com seus próprios alunos, durante uma semana, para lhes mostrar como surgem movimentos/governos autocráticos. Sua proposta de fazer “algo novo”, inclui montar uma espécie de comunidade; para isso, escolhem sinais visíveis que os distinguem das pessoas comuns: um uniforme, um símbolo, um cumprimento e lhe dão um nome – “A Onda”. Curiosamente, quando uma aluna diz que uniformes eliminam as diferenças sociais, outra objeta: “sim, mas também eliminam a individualidade”. Desse modo, desde o início é possível perceber que, apesar de ser um grupo relativamente coeso, há aqueles que percebem, inclusive pela empolgação dos colegas – tratar-se de uma iniciativa perigosa; há alunos realmente envolvidos demais – Tim um garoto com sérios problemas de aceitação, inclusive entre seus familiares, está totalmente imerso nos “objetivos” da comunidade. Um grupo de resistência se forma, mas não dá conta de parar "a onda". O professor Wenger – agora Herr Wenger –, demora demais para perceber que a brincadeira saiu do limite, e um movimento violento e autoritário surge.
[contém spoilers]
Reiner Wenger, então, decide terminar tudo com um gran finale catártico: pede aos alunos que escrevam relatórios sobre sua experiência n'A Onda, os leva para um auditório, tranca as portas e lê seus relatos. Dentre eles, coisas do tipo: “A Onda deu sentido à minha existência”. E diz, após um discurso apoteótico, exigindo que seus aprendizes de revolucionários expulsassem um suposto traidor:
Notaram o que aconteceu aqui? Ainda conseguem se lembrar qual a pergunta que foi feita na semana passada? Se algo como uma ditadura ainda seria possível na Alemanha. E o que aconteceu? Isso mesmo: fascismo. Nós achamos que éramos especiais; melhores do que todos. E o que é pior, excluímos os que eram contrários à nossa ideologia. Nós os ferimos. E não quero saber do que mais teríamos sido capazes. Eu quero pedir desculpas a vocês.
Mas era tarde demais. O clima de ódio revolucionário estava instaurado no ambiente e no coração daqueles jovens. Resultado: o frágil Tim – assim como o frágil Neil Perry, de Sociedade dos poetas mortos – comete suicídio na frente dos todos, após ferir um amigo e perceber que, sem A Onda, sua vida não fazia sentido.
Sim, prezado leitor, a vida imita a arte e vice-versa. Gosto de tirar esses exemplos do cinema, que é, provavelmente, a ferramenta moderna de maior impacto sobre a imaginação moral que existe. No entanto, a experiência e as reflexões filosóficas também podem nos ajudar – e muito! – a perceber o quão perigosas podem ser nossas escolhas e destinos, caso sejamos algozes ou vítimas de processos autoritários de poder. E, talvez, ninguém fale tão bem sobre isso quanto os filósofos romenos. E mais: falam a nós como a irmãos mais velhos – como diz meu amigo e tradutor de suas obras para o português, Elpídio Fonseca.
Diz Olavo de Carvalho, na introdução de obra sublime do maior filósofo romeno, Constantin Noica – As seis doenças do espírito contemporâneo (Best Bolso): “Quatro ditaduras num século, duas guerras, inumeráveis revoluções e golpes de Estado: a história romena, um quebra-cabeças que leva o estudioso estrangeiro ao desespero, reflete os movimentos alucinados de um povo que se debate como um peixe fisgado para escapar de um anzol, sabendo que outro anzol o espera mais adiante”. Assim, de certo modo, também é o Brasil. Apesar de não termos sofrido tanto quanto os romenos, sua experiência nos é uma grandiosa advertência, pois, como diz Olavo, “eles têm uma memória terrível, conservam uma recordação deprimentemente exata de cada uma das vergonhas, de cada uma das farsas cruéis que os obrigaram a encenar. Eles perderam tudo, menos essa exatidão que se chama, precisamente, sinceridade consigo próprios, a coragem de dizer a si mesmos verdades terríveis que outros povos, em situação idêntica, ocultariam em proveito da boa auto-imagem nacional. É essa sinceridade, aliada à experiência de um povo muito parecido com o nosso em termos de comportamento político, que pode nos ajudar a não cair nas garras de regimes autocráticos de qualquer natureza.
O filósofo Andrei Pleșu, um dos alunos diletos de Noica, numa conferência sobre o ridículo e a subversão das ideologias, dada em 28 de novembro de 2005 – e publicada no excepcional Da alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental (É Realizações) –, diz que:
As ideologias são construções rápidas de ideias, surgidas de um interesse privado ou de grupo, tendo como escopo a modificação da mentalidade pública, das instituições da vida social […] O ponto de partida delas não é a realidade propriamente dita, mas um interesse de classe ou de categoria social. Em consequência, o ideólogo não quer entender o mundo. Quer modificá-lo, de um modo que coincida com os seus princípios e escopos: é, portanto, uma natureza mais utópica e ególatra. Ele se crê chamado a decidir acerca do modo ótimo de organização do mundo e crê que o seu modo de entender a felicidade aplica-se a toda a humanidade.
Ou seja, um ideólogo e seus asseclas não se preocupam com a pluralidade, com as contradições, com as diferentes cosmovisões, pois pensa que o mundo, à sua maneira, é o melhor dos mundos. Querem impor a todos a sua verdade inegociável – e, na imensa maioria das vezes, inconciliável com a realidade. Pleșu ainda afirma que as ideologias procuram não a verdade em si mesma, mas uma verdade utilizável – a luta de classes, a luta contra o comunismo, a guerra cultural –, tornando-se, assim, uma “tecnologia de deslocamento, de nomadismo, de uma radicalidade arbitrária”, pois “têm a tendência natural de multiplicar-se, e isso porque o desencadeamento delas provoca – por reação – excessos do mesmo tipo. As ideologias fazem nascer contraideologias. Não são combatidas, de regra, pela demolição do seu artifício de princípio, mas por novas ideologias, apressadas em impor construções de sentido oposto, igualmente artificiais”, criando um círculo vicioso.
Essa conferência de Pleșu é, digamos, civilizadora, pois nos aponta o erro das ideologias – tanto à esquerda quanto à direita – e nos indica uma saída honrosa dessa armadilha:
Uma primeira forma de proteção contra a invasão ideológica é o pensamento autônomo, o pensamento por conta própria. Qualquer ideia vinda de fora, qualquer produto pronto para usar, qualquer moda lançada ciclicamente na cena pública tem de ser pesada com uma suspeição saudável. As ideologias são, de regra, pensamento massificado e, segundo a expressão célebre de Czeslaw Milaw Milosz, “mente cativa”. O sujeito deixa de ser o proprietário de seus próprios pensamentos, o que significa que seu pensamento deixa de ser um ato livre. […] Um segundo exercício de proteção é o esforço de pensar as coisas até o fim, para além da evidência de primeira instância, sem atalhos e correrias lógicas ou sentimentais. […] As ideologias são o correspondente – no plano intelectual – ao hábito de comer rápido e de digerir apenas parcialmente o que comes: fastfood e junkfood. Elas parecem “científicas” e “funcionais”, mas, na realidade, reduzem a vida orgânica do espírito a uma monotonia mecânica. As ideologias são pensamento burocratizado, assim como o fastfood é alimentação burocratizada. Em ambos os casos, o equilíbrio vital do conjunto é posto em perigo.
Do mesmo modo Gabriel Liiceanu, para mim o maior filósofo da atualidade (sim, de todos), nos traz reflexões extremamente pertinentes quando o assunto são as ideologias e os movimentos de massa autoritários. Das obras de Liiceanu publicadas em português até o momento, há duas, também traduzidas por Elpídio, absolutamente necessárias para todo aquele que queira compreender o espírito autoritário e revolucionário das ideologias: Da mentira e Do ódio, publicadas pela Vide Editorial.
Da Mentira é a transcrição de uma palestra dada por Liiceanu, em 2004. É uma meditação sobre a mentira como instrumento político. Primeiro, como um recurso utilizado para se atingir o “bem comum” – chamado por ele de “moral de segunda instância”; depois, como instrumento do mal puro. Analisando três obras nas quais a mentira é tratada como forma de atingir o “bem comum” – Filoctetes, de Sófocles; o diálogo Hípias Menor, de Platão; e, por fim, o moderno O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, Liiceanu nos leva a uma profunda reflexão sobre os descaminhos da mentira na política. Uma constatação aterradora de Liiceanu é que, com a queda e morte de Nicolae Ceauşescu, em 1989, após uma onda avassaladora de protestos da população, ocorreu um “momento catártico, o purgante psíquico pelo qual uma comunidade se livra do ódio e os membros dela ficam satisfatti, diz Maquiavel”. Porém, isso não foi suficiente para que a povo romeno se livrasse dos corruptos de outrora: “o desmoronamento de um regime corrupto abre portas, neste caso, para o aparecimento de uma corrupção ainda maior. O regime comunista na variante Ceauşescu chega hoje – coisa alucinante à primeira vista – a ser lastimado exatamente por causa da nova corrupção gerada e redobrada pelos filhotes deixados vivos que saíram, em coorte, do ventre do monstro assassino”.
Atualmente, a Romênia vive diante de um governo tão ou mais corrupto quanto o de Ceauşescu, sob a máscara democrática. E sua luta continua, nas ruas.
Em Do ódio, Liiceanu parte do “ódio espontâneo” entre os irmãos bíblicos Caim e Abel, para desembocar no ódio “culto e cultivado” ideologicamente, que é um passaporte para o crime: “o ódio vazio tem a eficiência de um arco e flecha, de um mosquete que dá um único tiro. Previsto como ideologia, se torna uma arma de repetição. O ódio ideológico, organizado, é um ódio impessoal; não se odeia alguém especificamente, mas uma abstração, uma ideia; ou melhor: “odeia-se uma pessoa como agente de uma categoria. Odeia-se uma hipóstase englobadora, odeia-se um 'como' explicativo-categorial”. Em termos práticos, afirma Liiceanu, “o ódio tornou-se impessoal à medida que nem o que odeia é uma pessoa isolada (mas membro de um grupo, de uma organização, de um partido, de um 'movimento' etc.), nem o que é odiado é isolado, mas pertence a uma categoria (de classe, de raça, de nação, de religião)”.
Tal ódio é perverso porque, ao se organizar como ideologia, ganha aqueles contornos de que fala Andrei Pleșu, vira um esquema de mobilização, um programa de transformação social; “da o passo da natureza para a cultura”. Com isso, se transforma em “ódio canalizado” – evoque aí, caro leitor, um exemplo recente em sua cabeça –, e, de modo paradoxal, ganha uma “equação de felicidade”, de busca por um mundo melhor. Diz Liiceanu: “Uma vez que o escopo do ódio se tornou honrado, a ideologia torna herói o que odeia e mata, e que, em vez de receber um castigo pelo crime, recebe uma recompensa pelo seu 'ato'. O homem enquadrado por uma ideologia pode odiar livremente, e igualmente pode ter orgulho desse ódio”.
Surgiu, nos últimos dias, um mascote entre os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, o honey badger, ou ratel ou texugo-do-mel –, um omnívoro conhecido por ser um dos animais mais destemidos que se tem notícia. Tal mascote não é uma invenção brasileira; na verdade foi importado diretamente dos EUA, mais especificamente do ex-estrategista de campanha de Donald Trump, Steve Bannon, admirado pelo círculo íntimo do presidente brasileiro – o presidente, juntamente com Olavo de Carvalho e outras pessoas influentes em seu governo, jantaram com Bannon em março desse ano –, que adotou como lema de sua postura, digamos, agressiva, o mote “Honey Badger don't give a shit” – algo como “Honey Badger não está nem aí”, aliviando o palavrão.
Joshua Green, autor do livro Devil’s Bargain: Steve Bannon, Donald Trump, and the Storming of the Presidency, entrevistou Bannon para um perfil da site Bloomberg, em 2015, e conta a história de como descobriu esse mascote: Junto com o seu triunfo no CPAC, um projeto secreto que ele concebeu estava se concretizando: seus advogados estavam quase terminando um livro sobre as negociações financeiras sombrias de Bill e Hillary Clinton, que ele tem certeza que irá derrubar a corrida presidencial. 'Cara, vai ser épico', diz ele. Eu saboreio meu “moonshine” […] e me pergunto, como as pessoas costumam fazer, se Bannon é maluco. Na saída, o porteiro me entrega um presente: um frasco de anca prateado com “Breitbart” impresso sobre uma imagem de um texugo de mel, o predador africano despreocupado de sua fama do YouTube, cujo slogan – “texugo de mel, não está nem aí – é o lema do Breitbart.
A explicação brasileira, dada pelo assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Filipe G. Martins, em agosto de 2018 numa rede social, após compartilhar uma frase de Andrew Breitbart – fundador do site que até recentemente era ligado a Bannon, é a seguinte: “O texugo-de-mel tem tudo para se tornar o mascote oficial do conservadorismo brasileiro. Um animal pequeno, aparentemente inofensivo, mas que se mostra imbatível sempre que confia em sua coragem e valentia, the honey badger don't care”.
O animalzinho, atualmente, é um fenômeno nas redes sociais brasileiras quando o assunto é a direita, digamos, bolsonarista. É inofensivo? É. É sugestivo? Também. E, veja bem, estimado leitor, não sou eu que estou sugerindo nada. O bicho é sucesso nos EUA por conta de um vídeo, no YouTube, cuja narração diz repetidas vezes a frase “lema” e, ao viralizar, se tornou um símbolo de coragem por lá. O problema é, conforme tudo o que eu disse acima, quando esses símbolos de identificação sugerem, por si só, dentro de uma cultura distinta, não só a coragem, mas a desfaçatez, o ressentimento e o ódio ideológico. Não sei se é um bom momento para, no Brasil, aqueles que hoje são situação adotarem um símbolo cuja característica principal, a coragem, tem sido confundida com outra característica marcante do texugo-do-mel, sua violência. O Brasil não é a América, o Bolsonaro não é o Trump.
Mas se, de fato, “honey badge don't care”, podem ignorar o que eu disse.