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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Ice Cube contra a escravidão ideológica

Entrevista de Ice Cube a Chris Cuomo, da CNN
Ice Cube teve de rebater Chris Cuomo ao vivo após jornalista da CNN distorcer a postura do rapper. (Foto: Reprodução)

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Um povo que havia sido liberto escolheu voluntariamente se submeter novamente à escravidão; não no sentido físico de correntes e cativeiro, mas no sentido ainda mais poderoso de ser mentalmente capturado. Essa escravidão mental, como uma espécie de Síndrome de Estocolmo distorcida, exige sua solução viciante a cada quatro anos, quando nossos senhores de escravos vêm sacudindo nossas prisões, nos encurralando para que prometamos nosso sacrifício permanente: vote em nós e sua vida será fácil; aceite sua condição de vítima. (Candace Owens, Blackout)

A submissão política dos negros americanos ao Partido Democrata já foi tema de vídeos e artigos meus; inclusive, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, escrevi sobre o movimento criado pela jovem ativista Candace Owens – o Blexit, de “Black Exit” –, conclamando os negros americanos a deixarem a plantation democrata. E é sempre bom lembrar a advertência que ninguém menos que Malcolm X deu à sua audiência em 1964, dizendo:

Os democratas só estão em Washington, D.C., por causa do voto negro. [...] Vocês os colocaram em primeiro lugar e eles os colocaram por último, porque vocês são estúpidos. Politicamente estúpidos. Sempre que vocês jogam seu peso político por detrás de um partido que controla 2/3 do governo, e este partido não mantém as promessas que lhes fez durante a época de eleição, e vocês ainda são idiotas o suficiente para continuarem a se identificar com esse partido, vocês não são apenas estúpidos, são traidores de sua raça.

O New Deal, programa de recuperação econômica promovido pelo presidente Franklin Delano Roosevelt (democrata) entre 1933 e 1937, incluía uma série de projetos direcionados às populações mais pobres, após a Grande Depressão; inclusive, a grande educadora Mary McLeod Bethune, sobre quem também já escrevi, trabalhou diretamente em projetos voltados à população negra (que, à época, sofria com um desemprego de mais de 40%), formando um gabinete especificamente para esse fim, o Black Cabinet. Tal empenho foi um dos principais motivos para que os negros iniciassem sua transferência de votos do partido com o qual, historicamente, se identificavam desde a Guerra de Secessão – pelos motivos óbvios que podem ser conferidos no excelente documentário de Dinesh D’Souza Hillary's America – e a assinatura da abolição pelo republicano Abraham Lincoln. Inclusive, os primeiros congressistas negros americanos – Hiram R. Revels, Benjamin S. Turner, Robert DeLarge, Josiah Walls, Jefferson Long, Joseph Rainey e Robert B. Elliott – eram todos republicanos.

Com o atual crescimento de um movimento negro conservador nos EUA, a discussão sobre a submissão canina da comunidade negra ao Partido Democrata vem ganhando cada vez mais força

Mas essa transferência não foi toda realizada nessa ocasião. Nos anos 1960, com o fim das leis de segregação pela assinatura do Civil Rights Act, em 1964, pelo presidente Lyndon Johnson (democrata) – sobre o qual paira a dúvida se teria dito mesmo que, com a assinatura da lei, eles teriam “esses crioulos (niggers) votando nos democratas pelos próximos 100 anos” –, o restante da base negra do Partido Republicano migrou, definitivamente, para o Partido Democrata, passando então a dar, sem pestanejar, mais de 90% dos votos ao partido dos famigerados Dixiecrats. Só para registrar: Obama teve 95% dos votos da população negra em 2008 e 93% em 2012. Trump diminuiu essa margem, conseguindo impressionantes 8% dos votos negros em 2016 – a maior quantidade de votos da população negra a um republicano em 40 anos.

Com o atual crescimento de um movimento negro conservador nos EUA (encabeçado por figuras insuspeitas como Carol M. Swain, Thomas Sowell e Walter E. Williams, na academia; Larry Elder e Jesse Lee Peterson, na mídia; Benjamin Carson, Mia Love, Allen West e o saudoso Herman Cain, na política; e, na nova geração, a já citada Candace Owens, Brandon Tatum e o meterórico Coleman Hughes), cada vez mais, mesmo com todas as pesadíssimas ofensas que essas pessoas sofrem por não estarem alinhadas ao progressismo democrata – o que pode ser visto e lamentado no excelente documentário Uncle Tom, produzido por Larry Elder –, a discussão sobre essa submissão canina vem ganhando cada vez mais força. Até figuras do hip hop, que sempre tiveram uma postura disruptiva, mas também, via de regra, sustentam essa submissão, vêm se posicionando de forma crítica em relação a ela, retomando a tradição de independência de Malcolm X.

Recentemente, Kanye West – cuja postura vem sendo atribuída, de maneira absolutamente canalha, a um transtorno bipolar – se aproximou de Candace Owens e das ideias conservadoras, postando, inclusive, textos de Thomas Sowell em suas redes sociais. Ainda ameaçou sair como candidato à presidência. E nessa semana mesmo o rapper 50 Cent, ao ver o projeto econômico de Joe Biden, disse “VOTE FOR TRUMP ... don’t care Trump doesn’t like black people” (“votem no Trump... não importa se Trump não gosta dos negros”). Óbvio que, se os milionários têm de pagar mais impostos em um estado, eles simplesmente não investem ou mudam de estado. Consequência: menos investimentos, menos empregos... os mais pobres são os mais prejudicados.

Mas a bola de vez é o lendário rapper e ator Ice Cube, do igualmente lendário grupo NWA. Após a morte de George Floyd e durante esse período insano de pandemia, Cube preparou um documento, em conjunto com um professor de esquerda radical, Darrick Hamilton, chamado A Contract with Black America, que visa a, principalmente, promover, por meio de políticas públicas, o crescimento econômico da população negra americana. Não quero aqui analisar o contrato em si, pois há muito a ser criticado – por exemplo: em que retirar estátuas de heróis confederados (item 11) ajudará a população negra? E, na verdade, o documento parece mais um contrato com o Estado americano do que com a América negra, pois é somente no item 13, o último – Black Responsability –, que fala diretamente aos americanos negros, e o faz, é forçoso admitir, com consciência e assertividade impressionantes:

A pobreza crônica cria uma atmosfera cheia de negatividade, frustração, desesperança, depressão, alcoolismo, abuso de drogas, crime e violência. Estas são algumas das condições que assolam a Comunidade Negra, que está lidando com a extrema pobreza de geração em geração. À medida que começarmos a adquirir igualdade social e econômica, é nosso dever limpar a nós mesmos e à nossa comunidade. Este contrato é uma via de mão dupla. À medida que ganharmos igualdade social e econômica, devemos começar a dissolver qualquer amargura em nossos corações pelos erros do passado. Devemos nos tornar melhores cidadãos e mais produtivos em todos os níveis da sociedade americana. Nós realmente devemos dar um passo à frente depois de aprovarmos o Contrato com a América Negra, sem mais desculpas para a imaturidade. Nossos artistas devem ser persuadidos a oferecer conteúdo mais positivo, que leve nossos jovens a fazerem melhores escolhas na vida. Um novo orgulho deve se desenvolver com essas novas oportunidades, e devemos lutar contra a negatividade, a frustração, a desesperança, a depressão, o alcoolismo, o uso de drogas, o crime e a violência.

Apesar de notarmos certa hipocrisia nas palavras do Contrato – se pensarmos que o próprio Cube espalhou muita, digamos, controvérsia com seu gangsta rap (de que eu gosto demais, confesso) –, a iniciativa não deixa de ser muito louvável. Sem contar que não é um primor de liberdade econômica, obviamente. Mas não penso que ele não esteja aberto para conversar.

O calor do autoritarismo progressista americano, com sua máquina de triturar o contraditório e a independência, coloca negros contra negros, numa notória escravização ideológica

No entanto, Cube vem sendo bombardeado de maneira sistemática pela Plantation democrata, com seus senhores de engenho ideológico e seus cativos. Tudo isso simplesmente por se dizer disposto a conversar com as duas campanhas presidenciais, tanto do republicano Donald Trump quanto do democrata Joe Biden. Cube argumenta que fatalmente alguém irá vencer, e é necessário conversar, seja lá a qual partido pertença o vencedor; não é possível esperar mais quatro anos caso o candidato esperado não vença.

As duas campanhas o procuraram e ele disse que conversará com quem quiser conversar com ele. O problema é que, enquanto a campanha de Biden disse “vamos conversar após as eleições”, a campanha de Trump disse “vamos conversar já e, se possível, inserir o que for possível no Platinum Plan de Trump”. Isso causou furor na senzala ideológica dos democratas, que estão – pasme, fiel leitor! – acusando Cube de estar sendo usado politicamente pelos republicanos; como se não soubessem quem é O’Shea Jackson, vulgo Ice Cube! Ele tem insistido, diante da acusação de ter mudado de lado e estar apoiando a candidatura de Trump, que seu manifesto chama-se Contrato com a América Negra e não com governo A ou B. E que conhece as artimanhas políticas, mas não se importa, o que ele quer ver é, na prática, o que vai acontecer.

Mas o cúmulo da desfaçatez foi a entrevista que ele deu ao jornalista Chris Cuomo, da CNN – uma sucursal do Partido Democrata. O irmão do governador de NY, Andrew Cuomo, democrata da velha guarda, inicia a entrevista visivelmente incomodado, dizendo que Cube mudou de lado; mas foi prontamente corrigido:

Sua introdução é um pouco enganosa. O Plano Platinum não é meu plano. Eu criei o Contrato com a América Negra [CWBA]. Não corri para trabalhar com nenhuma campanha. Ambas as campanhas me contataram. Ambas as campanhas queriam falar comigo sobre o Contrato com a América Negra... Eu não fui ao encontro de ninguém, então suas palavras foram realmente enganosas para mim. Você disse que corri para a equipe Trump em vez da equipe Biden, e isso não é verdade. Estou disposto a trabalhar com ambas as equipes. Estou apenas trabalhando com quem estiver disposto a trabalhar comigo.

E depois corrigiu novamente Cuomo: “Eu não confio em nenhum deles. Eu estou apenas agindo; isso é tudo que estou fazendo. Não estou atrás de palavras, retórica, manipulação midiática – eu não estou nem aí para isso. Eu não estou no time de ninguém. Eu não estou no time azul, não estou no time vermelho. Sou uma pessoa independente e creio que é o que os negros precisam fazer, se tornarem independentes, e precisamos conseguir algo pelo nosso voto... Estou trabalhando com quem está no poder. Quem quer que ganhe irá me ouvir”.

Ice Cube não é republicano e não disse nada em favor do partido, mas só a possibilidade de sentar para uma conversa com Trump, para essa turba de fanáticos democratas, é o fim do mundo

Essa é só uma parte dos ataques aos quais Cube vem respondendo por ter ousado ser independente. Após a entrevista, Cuomo se juntou a Don Lemon, âncora negro da CNN, que criticou a postura de Cube – que lhe respondeu, numa rede social, de forma nada amistosa. Ou seja, a lenda do hip hop está sentindo o calor do autoritarismo progressista americano, com sua máquina de triturar o contraditório e a independência, colocando, inclusive, negros contra negros, numa notória escravização ideológica. Cube não é republicano e não disse nada em favor do partido, mas só a possibilidade de sentar para uma conversa, para essa turba de fanáticos, é o fim do mundo. Enquanto isso, conservadores negros estão tentando redpillar Cube; é do jogo.

Alguém que, recentemente, escreveu uma música pedindo para que prendessem o presidente – se referindo claramente a Trump – e depois tem coragem de dar um passo atrás e assumir que é impossível conseguir algo, pela via política, sem considerar que Trump pode, de fato, ser reeleito, mostra que está verdadeiramente preocupado com seu povo e não com as ideologias dos famigerados white liberals (liberal, no sentido americano, é “progressista”), tão criticados por Malcolm X.

Ps.: Agradeço amigo Edson Cadette, do site ladobny.com, que me chamou a atenção para a entrevista.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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