“– Minha amiga, passei a vida inteira mentindo. Até quando falava a verdade. Nunca falei pela verdade, mas apenas por mim mesmo, disso eu já sabia antes, mas só agora vejo [...]. O essencial é que eu mesmo acredito em mim quando minto. O mais difícil na vida é viver e não mentir e... não acreditar na própria mentira, sim, sim, é isso mesmo! Mas espere, tudo isso fica para depois... Estamos juntos, estamos juntos! – Acrescentou com entusiasmo.” (Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski, personagem de Dostoiévski em Os Demônios)
Na recente pesquisa “Questionário da Verdade”, produzida pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ficou constatado que o Brasil ocupa a última posição, dentre 21 países, na capacidade de identificar conteúdos falsos na internet (as chamadas fake news). Enquanto 85% da população brasileira se informa pelas redes sociais, apenas 30% da população do Japão, da Alemanha, do Reino Unido e da Finlândia buscam informações nesse meio. Na pesquisa, apenas 54% dos brasileiros conseguiram identificar uma notícia verdadeira. Uma tragédia. Agora, imaginem essa informação em perspectiva com dois ou três exemplos recentes.
O primeiro é a famigerada abertura dos Jogos Olímpicos e sua, digamos, performance artística, já debatida à exaustão – inclusive aqui, brilhantemente, por meu editor, nesta Gazeta do Povo –, o que dispensará minhas observações específicas. A única coisa que gostaria de chamar à sua atenção, caro leitor, é não só para a mentira óbvia, inventada depois de toda a repercussão, de que os organizadores se inspiraram, para fazer aquilo, não na Última Ceia, mas num quadro do pouquíssimo conhecido pintor holandês Jan van Bijlert. Claro que os brasileiros – aqueles, incapazes de identificar fake news – abraçaram esse descarado post hoc puxado por esquerdistas.
Estamos diante de um avanço autoritário de uma “nova cultura”, que tem por objetivo rejeitar tudo o que é, por ela, considerado obra de opressores inescrupulosos – coisas perigosíssimas como o cristianismo, a família nuclear, a arte... enfim, o Ocidente
Mas penso que a mentira mais nociva de todas foi a de que a performance visava a, segundo seu diretor artístico, transmitir uma mensagem de inclusão e diversidade, quando é óbvio que a intenção não era essa. Estamos diante de um avanço autoritário de uma “nova cultura”, que tem por objetivo rejeitar tudo o que é, por ela, considerado obra de opressores inescrupulosos – coisas perigosíssimas como o cristianismo, a família nuclear, a arte... enfim, o Ocidente. Não se trata de incluir, mas de contestar e, ao fim e ao cabo, substituir. Mover a Janela de Overton no sentido de normalizar ideias e comportamentos sociais até então rejeitados. Uma Ceia-Bacanal protagonizada por pessoas, digamos, plus size, na abertura de uma competição esportiva de alta performance, é, no mínimo, injustificável. Ou seja, as palavras inclusão e diversidade aqui são só um truque retórico.
Outro exemplo diz respeito às eleições na Venezuela. A incontestável fraude perpetrada por Nicolás Maduro está sendo tratada pelo governo brasileiro, segundo o presidente da República, como algo “normal”. Em entrevista à TV Centro América, afiliada da TV Globo no Mato Grosso, Lula disse que “é normal que tenha uma briga. Como se resolve essa briga? Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a situação, a oposição entra com um recurso e vai esperar na Justiça o processo. E vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar”, como se estivesse falando de eleições, sei lá, na Suíça.
Entretanto, esse não é propriamente o exemplo que quero mostrar, mas sim a desfaçatez com a qual alguns veículos de imprensa estão tratando a ditadura chavista. Uma tal Associação Brasileira de Juízes pela Democracia, que tratava Lula como “prisioneiro político”, enviou representantes à Venezuela, que acompanharam “atentamente em clima de liberdade o processo eleitoral” e disseram que foi atestada a “expressão da vontade soberana do povo”, como diz matéria do veículo esquerdista (de nome curioso) Brasil de Fato. No canal Fórum, o jornalista Renato Rovai defendeu Maduro, disse que os canais de esquerda que estão criticando o ditador venezuelano estão tentando “parecer limpinhos” e que, apesar de a Venezuela ter pouca cultura democrática, é preciso olhar o contexto, que é a luta contra o imperialismo.
Na GloboNews, o jornalista Valdo Cruz afirmou que o regime venezuelano não é de esquerda – ou, pelo menos, não é de uma esquerda legítima, pois é “conservador, contra o aborto, contra o casamento gay, militarista, aliado de evangélicos”. E arremata dizendo que se trata de “um governo de esquerda de fachada, que não respeita a democracia”. Seu colega Guga Chacra foi na mesma linha, afirmando que o regime de Maduro “nem é de esquerda”, mas uma “cleptocracia ditatorial de viés militar” – bem, qualquer semelhança com a URSS e com a Coreia do Norte é mera coincidência. Vale lembrar que o ex-senador Aloysio Nunes, que nos tempos de ditadura foi motorista e segurança de Marighella, afirmou, complementando a diatribe de Valdo Cruz, que “esquerda é democracia”. Por fim, em nota, o Partido dos Trabalhadores (PT) afirmou que as eleições venezuelanas foram uma “jornada pacífica, democrática e soberana”.
Em grandes canais, jornalistas chegam ao ponto de dizer que Nicolás Maduro não é de esquerda – e a audiência acredita
Já tratei em artigo sobre essa malandragem de tratar as próprias convicções políticas, sejam elas as mais estapafúrdias possíveis, com o nome de democracia. Por ser um regime político que carrega uma aura de legitimidade popular, todos os golpistas, autoritários, demagogos e ditadores sanguinários utilizam o termo para defender suas posições – não raro, indefensáveis. Thomas Sowell, no seu Os intelectuais e a sociedade, afirma, com precisão:
“Uma manipulação prévia e meramente individual, falseando o que deve ser passado ao público, pode gerar uma completa distorção da realidade como se, de fato, houvesse uma coordenação consciente, ditada por zelosos agentes de censura ou por intermédio de uma agência de propaganda. Isso pode acontecer sempre que jornalistas e editores responsáveis, os quais manipulam os dados, compartilham da mesma visão geral sobre como as coisas são e como devem ser. O que parece plausível para os que compartilham dessa visão acaba se transformando no critério de credibilidade e validade da notícia. Plausibilidade é, todavia, de todos os critérios, o mais perigoso, pois o que pode parecer plausível em cada caso depende do que já é aceito em geral. Não é necessário que indivíduos particulares ou quadrilhas inteiras concebam planos de falsificação deliberada a fim de produzir um retrato distorcido da realidade que se encaixe na visão do intelectual ungido e descarte a realidade do mundo. É necessário somente que aqueles que têm o poder de filtrar as informações, seja no papel de jornalistas, editores, professores, acadêmicos ou produtores e diretores de filmes, decidam que há certos aspectos da realidade que as massas ʻnão compreenderiam corretamenteʼ e que um senso de responsabilidade social clama, por parte dos que detêm o poder de filtragem, pela supressão de alguns dados.”
Essa é a maneira com a qual nossa classe falante mente e desinforma a fim de propagar a sua visão de mundo e seus projetos de poder. Agora, como escapar disso se lideramos o ranking de povos menos capazes de reconhecer mentiras?
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