“Nossa adesão à arte não se torna, portanto, uma mera aceitação ociosa da ʻarte pela arteʼ, ou o cultivo das últimas decadências dos supercivilizados, mas sim uma compreensão profunda do propósito fundamental da arte e de sua função como uma raiz vigorosa de vida florescente.” (Alain Locke, The New Negro Aesthetic)
Recentemente houve o crescimento de um certo patrulhamento em relação à arte, por causa de seu caráter excessivamente militante. Grande parte dos artistas contemporâneos pensa que a função da arte é, fundamentalmente, passar uma mensagem, fazer crítica social e transformar a sociedade por sua influência; e muitos reagem dizendo que a arte virou militância política. A arte como “anseio pelo ideal”, como nos diz Tarkovski – citado por mim em artigo sobre o tema nesta Gazeta do Povo –, foi quase completamente substituída pela arte como transgressão e escândalo.
O cinema também vive muito desse novo espírito (também tratei disso algumas vezes nesta coluna, como aqui) e tem produzido muita coisa de caráter artístico bastante duvidoso em nome de militância barata. Entretanto, fiquei feliz ao ver o ano de 2023 nos presentear com uma quantidade considerável de excelentes filmes, vários deles indicados ao Oscar. Filmes com histórias marcantes, com direções excepcionais e fotografias impecáveis; com atores e atrizes representando personagens inesquecíveis; trilhas sonoras marcantes e, sobretudo, colocando a arte do cinematógrafo acima de tudo. Assisti a quase todos os indicados ao Oscar, e alguns – como Oppenheimer, sobre o qual escrevi – são, de fato, muito acima da média atual. E outros tantos, que ficaram de fora, merecem menção. Por isso, gostaria de falar brevemente dos que vi a fim de encorajar o amigo leitor a assisti-los – se já não o fez. Alguns estão nos cinemas, outros nas plataformas de streaming; outros... bem, por aí.
Fiquei feliz ao ver o ano de 2023 nos presentear com uma quantidade considerável de excelentes filmes, com histórias marcantes e colocando a arte do cinematógrafo acima de tudo
Contém (alguns poucos) spoilers
Vou começar com as menções honrosas a filmes que não foram indicados ao Oscar, mas que são ótimos, para compensar os indicados que não vi. O primeiro é um terror que me surpreendeu muito: O Mal Que Nos Habita (When Evil Lurks), do argentino Demián Rugna. Dois irmãos descobrem um homem possuído por um lendário demônio que está prestes a “nascer” para assumir uma forma física. Eles decidem se livrar do possesso, mas acabam por espalhar ainda mais o fenômeno maligno. Filme violentíssimo, tenso e que me deixou surpreso por uma característica que vi em outros dois excelentes filmes de anos anteriores – o tailandês A Médium e o sueco Speak No Evil: o mal vence; não há redenção. Sou fã de terror desde a adolescência e fazia muito tempo que não via um filme tão aterrorizante.
Outro muito bonito a que assisti foi How to Have Sex, da estreante Molly Manning Walker. É um coming of age – filme de amadurecimento, que retrata a transição de um momento da vida para outro – muito sensível sobre três amigas que, às portas da vida adulta, vão a uma viagem de formatura do ensino médio daquelas onde acontece tudo aquilo que sói acontecer em viagens festivas só com jovens. Tudo muito animado e festivo, mas uma delas não está bem; está em crise e vulnerável. Um filme simples, com uma história que nos é familiar, mas com um tratamento muito peculiar da jovem diretora. Venceu o prêmio Um Certo Olhar, dado a estreantes no Festival de Cannes.
Já o estupendo Folhas de Outono (Kuolleet Lehdet ou Fallen Leaves), do genial finlandês Aki Kaurismäki (de quem já estou caçando todos os filmes), é uma comédia dramática que diz tudo sem dizer quase nada. Um casal de pobretões (o “proletariado” é uma obsessão de Kaurismäki) se conhece fortuitamente e tenta, sem muito jeito, aos encontros e desencontros, iniciar um relacionamento. O minimalismo e a delicadeza com que o diretor trata seus atores e seu filme me lembraram o inigualável Robert Bresson – referência homenageada no filme. O humor de Kaurismäki é seco e sutil, se não estivermos atentos, sequer rimos; e toda a carga dramática é retratada com uma sutileza que nos arrebenta de modo inesperado. Foi vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes.
Por fim, o devastador Monster (Kaibutsu), de Hirokazu Kore-eda, vencedor de Melhor Roteiro em Cannes, me lembrou outro filme de fazer chorar uma estátua de mármore: Close, de Lukas Dhont – sobre o qual também já escrevi. Monster conta a história de Minato e Yori, dois pré-adolescentes que estão vivendo todas as contradições de sua idade, somadas aos problemas dos adultos com quem convivem: Saori Mugino, a mãe viúva de Minato; Kiyotaka, o pai abusivo de Yori; Hori, o controverso professor dos meninos; e a diretora da escola, a senhora Makiko. Uma história contada de maneira não linear, sob vários ângulos que vão acrescentando complexidade à trama cheia de mistérios e dramas que envolve bullying, alcoolismo, luto, mentiras, traumas e sentimentos que nos farão refletir sobre nossas próprias experiências. A trilha sonora, composta pelo lendário Ryuichi Sakamoto – que morreu dois meses antes da estreia do filme –, é de uma beleza arrebatadora.
Feitas essas considerações de filmes que não estão no Oscar, vamos aos indicados que assisti. Os indicados a Melhor Filme são Anatomia de Uma Queda, Barbie, Os Rejeitados, Assassinos da Lua das Flores, Maestro, Oppenheimer, Vidas Passadas, Pobres Criaturas, American Fiction e Zona de Interesse. De todos, ainda não vi os últimos três. Os demais, filmes muito diferentes entre si, mas que têm seus méritos (e deméritos) particulares bem definidos. Falarei de trás para frente, ou seja, dos que gostei menos para os que gostei mais.
Maestro é a cinebiografia do grande maestro e compositor Leonard Bernstein, dirigido e estrelado por Bradley Cooper. Para mim, Cooper fez um filme muito aquém da grandiosidade de Bernstein e, assim como Ridley Scott em Napoleão (que ficou fora da disputa por Melhor Filme), aposta na vida amorosa (e extraconjugal) do compositor de West Side Story, numa atuação afetada e caricata. Quem salva o filme é Carey Mulligan como Felicia Montealegre, atriz e esposa de Bernstein. Mas não é um filme ruim na totalidade; a cena em que Bernstein rege a Segunda Sinfonia de Mahler, apesar de afetação de Cooper, é bem bonita.
Oppenheimer é, sem dúvida, o filme do ano e deve vencer o Oscar
Se eu disser que não me diverti com o filme mais militante da temporada, Barbie, de Greta Gerwig, estarei mentindo. O filme é bobo, cheio de exaltados discursos feministas e críticas sociais que enchem as paciências, mas é divertido, com momentos emocionantes e tem a linda canção What Was I Made For?, de Billie Eilish, na trilha sonora. Dá para dizer que se trata de um filme feito especial e diretamente para mulheres. Está concorrendo a Melhor Filme porque a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não tem vergonha na cara, pois foi completamente descartado pelas premiações preliminares e só venceu um prêmio de consolação (Maior Bilheteria) criado só para isso no Globo de Ouro.
Os Rejeitados (The Holdovers), de Alexander Payne, é uma Sessão da Tarde turbinada pelo extraordinário Paul Giamatti. Num internato (boarding school), um professor conservador e rabugento é obrigado a passar o período de recesso com um aluno-problema e a cozinheira da escola, representada pela excelente DaʼVine Joy Randolph. A convivência entre os três irá ensiná-los muito sobre seus próprios dramas. Com humor sofisticado, Payne trabalha de modo cuidadoso com cada personagem, dando a eles a oportunidade de olharem para si e para o outro e serem transformados por essa relação. Filme muito bonito, para ver com a família.
Celine Song, cineasta sul-coreana residente nos Estados Unidos, também estreou na direção com o belíssimo e muito comovente Vidas Passadas (Past Lives). Na Young e Hae Sung são dois amigos de infância sul-coreanos, apaixonados um pelo outro, cuja profissão dos pais separou – Na Young foi para os EUA e lá virou Nora. Nunca esqueceram um do outro e, 12 anos depois, se reencontraram via Facebook e passaram a conversar por vídeo com uma frequência que só vai aumentando. Nora, ao perceber que uma paixão de infância começava a desabrochar e que isso estava tirando sua concentração e atrapalhando suas pretensões de se tornar uma grande escritora, decide se afastar de Hae Sung. Ficaram mais 12 anos sem se falar. Nesse meio tempo, Nora acabou se casando com um americano e Hae Sung tem uma namorada na Coreia. Mas mesmo assim eles retomam o contato. Hae Sung, já separado da namorada, decide visitar Nora (e seu marido). Essa visita irá fazê-los passar por um turbilhão de sentimentos baseados numa crença tradicional sobre “vidas passadas” (pessoas que se amaram em outras vidas e cujo amor resiste à morte e às reencarnações). Singelo e lindo, lindo.
Assassino da Lua das Flores é Martin Scorsese, Robert De Niro e Leonardo Di Caprio juntos, e isso dispensa qualquer explicação. Filme épico, longo (mais de três horas), de fotografia deslumbrante e com atuações antológicas de De Niro, Di Caprio e Lily Gladstone. O povo Osage foi expulso de suas terras e colocado numa reserva, onde descobre petróleo. Eles se tornam milionários e passam a esbanjar sua riqueza diante de uma sociedade branca e, não raro, racista. Misturam-se aos brancos, que propõem casamentos a suas filhas por mero interesse financeiro. De repente, uma série de assassinatos misteriosos começa a acontecer e, no centro dessa confusão, estão William “Bill” King Hale (De Niro), fazendeiro, vice-xerife da reserva e tido como um grande benfeitor; Ernest Burkhart (Di Caprio), sobrinho de Bill que volta da Primeira Guerra para tentar a vida trabalhando com o tio; e Mollie Burkhart (Gladstone), indígena de uma rica família que está sendo dizimada pelos assassinatos. Molly e Ernest se casam, apaixonados de verdade, e têm de lidar com os escusos interesses de Bill e evitar que Molly seja a próxima vítima. Filmaço.
O primeiro filme a que assisti com a espetacular atriz alemã Sandra Hüller foi Requiem, de 2006, que conta a história de Michaela Klingler – inspirada em Anneliese Michel (a Emily Rose do terror). Filme muito bom. Agora, em Anatomia de uma queda, dirigido por Justine Triet e vencedor da Palma de Ouro em Cannes, Hüller faz o papel de uma escritora, Sandra Voyter, que vive no sossego de um pequeno vilarejo isolado nos Alpes franceses com seu marido Samuel e seu filho Daniel, que tem uma deficiência visual. Numa manhã, após atormentar Sandra com uma música altíssima durante uma entrevista que ela dava a uma jovem estudante, Samuel é encontrado morto na neve, do lado de fora do chalé. Quem o encontra é o filho com seu cão-guia. A mãe é indiciada como a principal suspeita do suposto assassinato e sua vida é revirada do avesso a fim de incriminá-la. É um filme de tribunal que vai muito, muito além de uma história de tribunal. Um thriller tenso e profundo, com destaque óbvio para a atuação de Hüller.
Oppenheimer é, sem dúvida, o filme do ano e deve vencer o Oscar. Como eu disse em artigo recente, o filme é uma catarse, um épico deslumbrante em que “toda a tensão que perpassa a trama até que as bombas [atômicas] sejam finalmente lançadas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, em vez de diminuir, aumenta com o tortuoso julgamento ʻinformalʼ instaurado a fim de investigar as supostas atividades subversivas de Oppenheimer, por vingança de Lewis Strauss, presidente da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos”. A trilha sonora de Ludwig Göransson – que também compôs e foi premiado pela trilha de Pantera Negra, e foi parceiro de Childish Gambino em This is America –, é uma coisa de outro mundo e já arrematou as premiações preliminares, como o Critics Choice e o Globo de Ouro; deve levar o Oscar também.
Espero ainda ver os três que faltam, mas posso cravar que a arte vive, que as boas histórias continuam tendo lugar no mainstream e que os dramas humanos – matéria-prima de todos os indicados – são ainda a melhor inspiração para obras de arte inesquecíveis. Se o leitor ainda não viu algum desses filmes, pois veja. Veja todos!
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