“A fortaleza implica vulnerabilidade; sem essa vulnerabilidade, não existe sequer a possibilidade de fortaleza. Um anjo não pode ser forte, porque não é vulnerável. Ser forte significa ter capacidade para receber um ferimento. O homem pode ser forte porque pode ser ferido.” (Josef Pieper, Virtudes Fundamentais)
Preparando uma aula um dia desses, me deparei com um conteúdo, na disciplina de Filosofia da 1.ª série do ensino médio, que me chamou a atenção: inteligência emocional. Esse nome já me soa, ao mesmo tempo, contraditório e redundante, mas OK. O material didático dizia o seguinte: “Inteligência emocional é a capacidade de reconhecer, compreender e gerenciar as próprias emoções, além de reconhecer e compreender as emoções dos outros. Embora não possamos gerenciar diretamente as emoções alheias, é fundamental entender que elas nos afetam, assim como nossas emoções afetam os demais. Ela envolve autoconsciência, autorregulação, motivação, empatia e habilidades sociais”.
Reconhecer e controlar as próprias emoções é algo comum às pessoas adultas e maduras, educadas pela longa experiência
Para começar, a mim parece que a “capacidade de reconhecer, compreender e gerenciar as próprias emoções” chama-se maturidade, que, segundo Nietzsche, “consiste em ter reencontrado a seriedade que, em criança, se colocava nos jogos”. E diz Sêneca, sobre a velhice (fase própria da maturidade): “Portanto, ninguém pode fazer mal ao sábio ou ser-lhe útil, posto que criaturas divinas nem desejam ajuda, nem podem sofrer dano; ora, o sábio está contíguo e próximo aos deuses; exceto pela condição mortal, é semelhante a um deus [...]. Assim, ele resiste a tudo, ao rigor do inverno e às intempéries do clima, a febres e doenças e a outras casualidades, e não forma juízo tão positivo sobre alguém a ponto de achar que tal pessoa tenha feito algo com sabedoria, o que se dá unicamente com o sábio”.
Ou seja, reconhecer e controlar as próprias emoções é algo comum às pessoas adultas e maduras, educadas pela longa experiência. Se deram um novo nome, associado a uma série de clichês psicológicos, a uma virtude própria da vida adulta responsável, tudo bem para mim; só precisamos ter ciência de que não se trata de algo novo. E para as competências/habilidades associadas a ela, vale, novamente, citar o material didático: a autoconsciência é “a habilidade de reconhecer e entender suas próprias emoções”; a autorregulação “é a capacidade de gerenciar suas emoções de maneira saudável”; a motivação “refere-se ao desejo interno de atingir objetivos pessoais e profissionais”; a empatia “é a capacidade de entender e compartilhar os sentimentos dos outros”; e as habilidades sociais “são as competências necessárias para interagir de maneira eficaz com os outros”. Sinceramente, caro leitor, isso me parece uma tentativa de revestir de novidade algo antigo, retirando-lhe toda a profundidade.
De acordo com um texto no LinkedIn, “o termo ʻinteligência emocionalʼ foi cunhado por Daniel Goleman na década de 90 do século passado ao lançar seu livro homônimo (Inteligência Emocional – A teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente), que obteve grande sucesso mundial”. Entretanto, diz o autor do texto, atualmente o conceito se tornou mais genérico, “sendo [a inteligência emocional] entendida atualmente como a capacidade de lidar bem com pessoas no ambiente de trabalho, particularmente com colaboradores e colegas de equipe”. Ou seja, virou conversa de palestra motivacional e dos famigerados coaches. E o site Penser termina sua explanação, dizendo que a inteligência emocional “não se trata apenas de administrar as próprias emoções negativas e positivas, mas também de utilizá-las a seu favor. Além disso, os pilares da inteligência emocional também incluem a compreensão dos sentimentos e emoções do outro, o que, como consequência, vai influenciar na construção de relacionamentos mais saudáveis”.
Na verdade, toda essa parafernália pseudoconceitual poderia ser resumida no famosíssimo aforismo grego conhece-te a ti mesmo, que Platão, através de Sócrates, nos apresenta tão brilhantemente em seu Primeiro Alcibíades. O jovem belo e abastado, cujas aspirações políticas, pretendia ele, deveriam ser prontamente atendidas, pois era de linhagem nobre e isso bastava para ser um bom governante, teve suas expectativas frustradas pelo mestre, que lhe explicou a impossibilidade de governar bem a cidade sem, primeiro, aprender a “cuidar de si”; e que o cuidado de si deveria ser precedido pelo “conhecimento de si”. E arremata, após uma série de ponderações magistrais:
“Sócrates – E com relação à alma, meu caro Alcibíades, se ela quiser conhecer-se a si mesma, não precisará também olhar para a alma e, nesta, a porção em que reside a sua virtude específica, a inteligência, ou para o que lhe for semelhante?
Alcibíades – Parece-me que sim, Sócrates.
Sócrates – Haverá, porventura, na alma alguma parte mais divina do que a que se relaciona com o conhecimento e a reflexão?
Alcibíades – Não há.
Sócrates – É a parte da alma que mais se assemelha ao divino; quem a contemplar e estiver em condições de perceber o que nela há de divino, Deus e o pensamento, com muita probabilidade ficará conhecendo a si mesmo.
Alcibíades – É certo.
Sócrates – Sem dúvida, porque os verdadeiros espelhos são mais claros do que o espelho dos olhos, mais puros e mais brilhantes; do mesmo modo, a divindade da melhor parte de nossa alma é mais pura e mais luminosa.
Alcibíades – É o que parece, Sócrates.
Sócrates – Olhando, portanto, para essa divindade, e usando-a à guisa do melhor espelho das coisas humanas para a conhecimento da virtude da alma, é a maneira mais acertada de nos vermos e reconhecermos a nós mesmos.
Alcibíades – É certo.”
Essas reformulações meramente instrumentais de conceitos tão profundos e antigos não passam de uma espécie de adestramento contemporâneo para espíritos que ignoram completamente as virtudes cardeais
Como diz Lord Digory, personagem de C.S. Lewis em A Última Batalha, que fecha As Crônicas de Nárnia: “está tudo em Platão!”
Ao fim e ao cabo, tenho a impressão de que essas reformulações meramente instrumentais (capacidade de lidar bem com pessoas no ambiente de trabalho, influenciar na construção de relacionamentos mais saudáveis etc.) de conceitos tão profundos e antigos não passam de uma espécie de adestramento contemporâneo para espíritos que ignoram completamente as virtudes cardeais. A prudência, a justiça, a temperança e a fortaleza dão conta, pelo menos de modo primário, de todos esses desafios morais e emocionais que enfrentamos. Mas existe uma necessidade, no mundo atual, de que nossa personalidade, respeitada no contexto antigo, seja amputada em favor da construção de uma sociedade à imagem e semelhança de adestradores medíocres, quando não de ideólogos sedentos por poder.
Como professor, não pude deixar de fazer esse contraponto aos meus alunos – de modo menos contundente, por óbvio; afinal de contas, trato com adolescentes –, depois de apresentar-lhes o conteúdo do material didático, e gerar um interessante debate sobre esse tema. Uma pulguinha atrás da orelha não faz mal a ninguém, não é mesmo?
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