Detalhe de “Alcibíades sendo ensinado por Sócrates”, de François-André Vincent.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
Ouça este conteúdo

“A fortaleza implica vulnerabilidade; sem essa vulnerabilidade, não existe sequer a possibilidade de fortaleza. Um anjo não pode ser forte, porque não é vulnerável. Ser forte significa ter capacidade para receber um ferimento. O homem pode ser forte porque pode ser ferido.” (Josef Pieper, Virtudes Fundamentais)

CARREGANDO :)

Preparando uma aula um dia desses, me deparei com um conteúdo, na disciplina de Filosofia da 1.ª série do ensino médio, que me chamou a atenção: inteligência emocional. Esse nome já me soa, ao mesmo tempo, contraditório e redundante, mas OK. O material didático dizia o seguinte: “Inteligência emocional é a capacidade de reconhecer, compreender e gerenciar as próprias emoções, além de reconhecer e compreender as emoções dos outros. Embora não possamos gerenciar diretamente as emoções alheias, é fundamental entender que elas nos afetam, assim como nossas emoções afetam os demais. Ela envolve autoconsciência, autorregulação, motivação, empatia e habilidades sociais”.

Reconhecer e controlar as próprias emoções é algo comum às pessoas adultas e maduras, educadas pela longa experiência

Publicidade

Para começar, a mim parece que a “capacidade de reconhecer, compreender e gerenciar as próprias emoções” chama-se maturidade, que, segundo Nietzsche, “consiste em ter reencontrado a seriedade que, em criança, se colocava nos jogos”. E diz Sêneca, sobre a velhice (fase própria da maturidade): “Portanto, ninguém pode fazer mal ao sábio ou ser-lhe útil, posto que criaturas divinas nem desejam ajuda, nem podem sofrer dano; ora, o sábio está contíguo e próximo aos deuses; exceto pela condição mortal, é semelhante a um deus [...]. Assim, ele resiste a tudo, ao rigor do inverno e às intempéries do clima, a febres e doenças e a outras casualidades, e não forma juízo tão positivo sobre alguém a ponto de achar que tal pessoa tenha feito algo com sabedoria, o que se dá unicamente com o sábio”.

Ou seja, reconhecer e controlar as próprias emoções é algo comum às pessoas adultas e maduras, educadas pela longa experiência. Se deram um novo nome, associado a uma série de clichês psicológicos, a uma virtude própria da vida adulta responsável, tudo bem para mim; só precisamos ter ciência de que não se trata de algo novo. E para as competências/habilidades associadas a ela, vale, novamente, citar o material didático: a autoconsciência é “a habilidade de reconhecer e entender suas próprias emoções”; a autorregulação “é a capacidade de gerenciar suas emoções de maneira saudável”; a motivação “refere-se ao desejo interno de atingir objetivos pessoais e profissionais”; a empatia “é a capacidade de entender e compartilhar os sentimentos dos outros”; e as habilidades sociais “são as competências necessárias para interagir de maneira eficaz com os outros”. Sinceramente, caro leitor, isso me parece uma tentativa de revestir de novidade algo antigo, retirando-lhe toda a profundidade.

De acordo com um texto no LinkedIn, “o termo ʻinteligência emocionalʼ foi cunhado por Daniel Goleman na década de 90 do século passado ao lançar seu livro homônimo (Inteligência Emocional – A teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente), que obteve grande sucesso mundial”. Entretanto, diz o autor do texto, atualmente o conceito se tornou mais genérico, “sendo [a inteligência emocional] entendida atualmente como a capacidade de lidar bem com pessoas no ambiente de trabalho, particularmente com colaboradores e colegas de equipe”. Ou seja, virou conversa de palestra motivacional e dos famigerados coaches. E o site Penser termina sua explanação, dizendo que a inteligência emocional “não se trata apenas de administrar as próprias emoções negativas e positivas, mas também de utilizá-las a seu favor. Além disso, os pilares da inteligência emocional também incluem a compreensão dos sentimentos e emoções do outro, o que, como consequência, vai influenciar na construção de relacionamentos mais saudáveis”.

Na verdade, toda essa parafernália pseudoconceitual poderia ser resumida no famosíssimo aforismo grego conhece-te a ti mesmo, que Platão, através de Sócrates, nos apresenta tão brilhantemente em seu Primeiro Alcibíades. O jovem belo e abastado, cujas aspirações políticas, pretendia ele, deveriam ser prontamente atendidas, pois era de linhagem nobre e isso bastava para ser um bom governante, teve suas expectativas frustradas pelo mestre, que lhe explicou a impossibilidade de governar bem a cidade sem, primeiro, aprender a “cuidar de si”; e que o cuidado de si deveria ser precedido pelo “conhecimento de si”. E arremata, após uma série de ponderações magistrais:

Sócrates – E com relação à alma, meu caro Alcibíades, se ela quiser conhecer-se a si mesma, não precisará também olhar para a alma e, nesta, a porção em que reside a sua virtude específica, a inteligência, ou para o que lhe for semelhante?
Alcibíades – Parece-me que sim, Sócrates.
Sócrates – Haverá, porventura, na alma alguma parte mais divina do que a que se relaciona com o conhecimento e a reflexão?
Alcibíades – Não há.
Sócrates – É a parte da alma que mais se assemelha ao divino; quem a contemplar e estiver em condições de perceber o que nela há de divino, Deus e o pensamento, com muita probabilidade ficará conhecendo a si mesmo.
Alcibíades – É certo.
Sócrates – Sem dúvida, porque os verdadeiros espelhos são mais claros do que o espelho dos olhos, mais puros e mais brilhantes; do mesmo modo, a divindade da melhor parte de nossa alma é mais pura e mais luminosa.
Alcibíades – É o que parece, Sócrates.
Sócrates – Olhando, portanto, para essa divindade, e usando-a à guisa do melhor espelho das coisas humanas para a conhecimento da virtude da alma, é a maneira mais acertada de nos vermos e reconhecermos a nós mesmos.
Alcibíades – É certo.”

Publicidade

Essas reformulações meramente instrumentais de conceitos tão profundos e antigos não passam de uma espécie de adestramento contemporâneo para espíritos que ignoram completamente as virtudes cardeais

Como diz Lord Digory, personagem de C.S. Lewis em A Última Batalha, que fecha As Crônicas de Nárnia: “está tudo em Platão!”

Ao fim e ao cabo, tenho a impressão de que essas reformulações meramente instrumentais (capacidade de lidar bem com pessoas no ambiente de trabalho, influenciar na construção de relacionamentos mais saudáveis etc.) de conceitos tão profundos e antigos não passam de uma espécie de adestramento contemporâneo para espíritos que ignoram completamente as virtudes cardeais. A prudência, a justiça, a temperança e a fortaleza dão conta, pelo menos de modo primário, de todos esses desafios morais e emocionais que enfrentamos. Mas existe uma necessidade, no mundo atual, de que nossa personalidade, respeitada no contexto antigo, seja amputada em favor da construção de uma sociedade à imagem e semelhança de adestradores medíocres, quando não de ideólogos sedentos por poder.

Como professor, não pude deixar de fazer esse contraponto aos meus alunos – de modo menos contundente, por óbvio; afinal de contas, trato com adolescentes –, depois de apresentar-lhes o conteúdo do material didático, e gerar um interessante debate sobre esse tema. Uma pulguinha atrás da orelha não faz mal a ninguém, não é mesmo?

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
Publicidade