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“O rap é uma ferramenta que pode transmitir verbalmente informações de qualquer tipo, sejam histórias, seja a vida nas ruas, maquinações políticas ou qualquer outra coisa atual. O fato de que o mainstream dos EUA o tem como um novo veículo de sucesso e o usa para nos dizer algo relevante, prova isso.” (Chuck D)
“Vejo o hip hop como parte de um movimento ligado a uma educação dançante, um ensino que tanto pode encantar quanto instruir.” (Cornel West)
O leitor que me acompanha nesta coluna sabe de meu apreço pelo hip hop – especialmente pelo rap. Apesar da ignorância e do preconceito de muitos, que o veem como um gênero que exalta a violência e incentiva o crime, já exaltei e defendi, em artigo aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, o poder transformador do rap para jovens da periferia (como eu fui) e, noutra ocasião, ousei chamá-lo de alta cultura. Àqueles que discordam, convido a uma leitura atenta dos textos e a uma reflexão justa. Não que tais desvios não ocorram, mas que, se analisado levando em consideração o testemunho do tempo e a evolução dessa cultura, é possível ver que os benefícios do hip hop superam em muitos suas controvérsias. A série Hip Hop Evolution, disponível no Netflix e já recomendada por mim, é prova cabal.
A definição, já trazida por mim a esta coluna, sobre a cultura hip hop é que se trata de “um meio e um método de expressão que prospera em comentários sociais, críticas políticas, análises econômicas, exegese religiosa e conscientização das ruas, enquanto combate questões de longa data como preconceito racial, perseguição cultural e disparidades sociais, econômicas e políticas”. Tal cultura, expressa pelo rap, pelo grafite e pelo break, tem como característica principal o elemento de autoafirmação e o reconhecimento de que a união em torno da arte é a melhor resposta à violência, à marginalização e ao preconceito vividos pelos negros não só nos Estados Unidos, mas no mundo todo. Tendo nascido da necessidade de pacificação das gangues que, no Bronx, em Nova York, disputavam o domínio da periferia por meio de brutal violência, o hip hop se tornou, ao longo do tempo, uma das mais importantes expressões culturais dos séculos 20/21, movimentando bilhões de dólares por ano, criando tendências e transformando vidas. E é quase impossível negar que se trata de uma cultura rica e versátil, que, atualmente, domina não só a consciência dos jovens, mas o mainstream cultural e midiático, estando presente em praticamente tudo que se produz no universo audiovisual.
Apesar da ignorância e do preconceito de muitos, que veem o rap como um gênero que exalta a violência e incentiva o crime, já exaltei e defendi o poder transformador do rap para jovens da periferia (como eu fui) e, noutra ocasião, ousei chamá-lo de alta cultura
A primeira frase em epígrafe, dita pelo líder do lendário grupo de rap Public Enemy, confirma o que digo e transmite uma informação importante: o rap é pop. No entanto, Cornel West (autor da segunda frase em epígrafe), professor da Universidade de Princeton e um dos mais importantes filósofos e intelectuais públicos da atualidade, vai além e insere uma crítica contundente, dizendo o seguinte: “O mainstream americano é obcecado pelo gênio criativo negro – seja música, o jeito de andar, o estilo –, mas, ao mesmo tempo, coloca baixa prioridade na miséria social negra que é o próprio contexto do qual essa criatividade flui [...]. E é justamente entre os mais vulneráveis entre nós que esse gênio emerge, do Bronx, com Afrika Bambaata, Kool Herc e tudo que você conhece da história”. Ou seja, mesmo sendo mainstream, o hip hop continua sendo um elemento importante de denúncia das injustiças, que persistem, e a expressão mais crua dessa realidade.
Óbvio que tal característica está sempre sendo desafiada pelos processos entrópicos que toda cultura sofre. O sequestro ideológico, a banalização, o carreirismo e a falta de consciência podem – e por vezes o fazem – levar a um total desvirtuamento de uma arte que é, por definição, contestatória e autônoma, não só pela necessidade de sobrevivência, mas pela defesa da liberdade e da justiça, que são suas bandeiras principais.
Ao longo de minha vida, meu ecletismo levou-me para longe do hip hop, e a música que mais ouvia na juventude foi sendo substituída por vários outros gêneros que foram se agregando ao meu gosto. Recentemente, com o nascimento do Noir Podcast e o contato com vários rappers da nova e novíssima geração – como Rashid, Coruja BC1, Felipe Flip, Fábio Brazza, Slim Rimografia e Onã – alguns que eu nem sequer conhecia, outros dos quais conhecia somente o nome, meu interesse pelo gênero se renovou e me fez olhar mais atentamente para a cena atual. Mas, por gosto e, se o leitor me permite dizer, por uma certa exigência, não é tudo que me agrada mesmo que eu reconheça o seu valor. Há muita coisa boa e interessante ocorrendo, e nossos convidados são, de fato, a fina-flor do que se está produzindo atualmente.
No dia 21 de janeiro, Slim Rimografia – um dos rappers mais criativos de sua geração – generosamente enviou-me o EP Isso, do SKiT, dupla que forma com outro gigante das rimas, Kamau, recomendando-me a audição. E minha cabeça explodiu. Isso é um vento fresco daquela iconoclastia tão presente no rap de minha geração, somado a rimas riquíssimas, a beats afiados e uma criatividade contemporânea que nos dão a sensação imediata de um trabalho gestado não na pressa de criar hits, mas de quem lapida vagarosamente um diamante. Ao apertar o play, a primeira sequência de rimas de Slim, em O que é Isso? – um lo-fi que nos convida a desacelerar, entrar no campo sagrado da arte para um exercício de contemplação –, nos arrebata: “Água pra hidratar / Prece pra agradecer / Sem pressa só apreço / Não tem preço viver”. De repente, a subversão da famosa frase do poeta da rua: “Gentileza gera gente ilesa”, e a pequena “faixa”, com menos de dois minutos de duração, termina com a jocosa tentativa de Slim pronunciar a palavra pranayama, que são exercícios de respiração da yoga. Antes de iniciar a segunda faixa, Fôlego, concluí que estava diante de uma obra de arte.
Já sem sandálias e diante da sarça ardente, ouço Fôlego insistir na desaceleração e no controle da respiração (pranayama, certo?): “Preciso de arte / Arco com as consequências dessa escolha / Não deu boa quem tentou viver na bolha / É uma guerra lá fora e o inimigo é invisível / Mas pra ele não pensar que é invencível / O jeito é: inspirar, respirar...”, diz Kamau. E Slim complementa, à frente: “Data, século 21 pra esperar pro fim do mundo / Pra mergulhar em mim, respiro fundo / Sem tempo ocioso o mundo sofre ansiedade / Uniformes, gravatas, atletas da cidade”. Ou seja: ouça, respire, descanse.
Já desarmado, de guarda baixa e contemplativo, eis que o choque vem: Nota de Escurecimento, uma paulada sonora composta em meio à revolta pelo assassinato de João Alberto Freitas, num supermercado Carrefour de Porto Alegre, em 19 de novembro de 2020. Em meio às rimas absolutamente cortantes de Kamau e Slim, a insistente repetição de uma melodia nas cordas de uma guitarra parece simular uma sirene, num chamado à guerra. Um grito de chega cujo refrão é: “Minha herança não está no testamento / Nem Velho nem Novo / O jeito é buscar com meu talento / Gentil e hostil / Só retribuindo o tratamento / Esse é o momento: nota de escurecimento”. E eu, já de punhos cerrados, repito com Slim: “Todos odeiam Beto, desafeto / Antigos capitães do mato e os tataraneto / Papo reto: joelhos calejaram / Nós que Luther King, Malcolm X sabem daquilo que eu falo / Não me calo”. É o rap cumprindo seu papel de denúncia intransigente das injustiças e do racismo, e só rappers inteligentes e habilidosos, como a dupla do SKiT, são capazes de unir, na mesma letra, os exageros retóricos da revolta – como a polêmica expressão criada por Djonga, fogo nos racistas – a rimas inventivas como: “Respingo de sangue lembra as telas de Pollock / Ser preto no Brasil, roteiro pra Hitchcock”. Discernir o papel da arte do puro discurso de ódio, nesse caso, exige reflexão e maturidade. Mas esse é o lugar natural do rap, o fio da navalha em que andam os marginalizados.
Antes de iniciar a segunda faixa do EP Isso, do SKiT, já concluí que estava diante de uma obra de arte
Então Vai, a próxima, é a obra-prima da Isso. Slim e Kamau fincam sua autoridade e pioneirismo, com “rimas monstras – Satan Goss, Guioday”, unindo uma série de referências da cultura pop – “habilidade Shaolin / Se eu morrer que seja em cena / igual Brandon Lee” – a uma intrincada teia de ironias e exortações que vai sendo construída – “Espero que façam o que não fizeram por mim / Solto e o verbo sem pudor, tipo Jojo Todinʼ” ou “Nós tamo aqui bem antes de tu ter nascido / Antes de o bebê mimado chorar sem motivo / Não respeita os antigo, vai ficar de castigo / sou Mike Tyson, toma, sobe no ringue comigo... lona”– e, conforme o ritmo alucinante vai avançando, o que ouvimos é uma ode à tradição tendo por base um discurso absolutamente inovador. Kamau é preciso:
Envelhecendo igual vinho
Pior que eu nem bebo, hein?
Raro e caro que nem os discos nas paredes do sebo
De mili, mas não Vanilli
Deslize mas não vacile
Não sirvo pra ser modelo
Não ando bem nos desfiles
Tô sempre fora de moda
Inventando e criando
Pulando a fama nas calçadas que ando.
É o exemplo incontestável de que só é possível conservar – nesse caso, a vitalidade e a relevância do rap – com criatividade e paciência, momentos de rebeldia e de calma, de contundência e serenidade, de palavras de ordem e... pranayama.
O EP começa a aterrizar com 6 (seis), uma crônica onírica da realidade periférica, cheia de esperanças e incertezas, cujas responsabilidades se mesclam aos sonhos e, entre às “6 da tarde e 6 da manhã”, Lay, da banda Tuyo, repete, num refrão etéreo: “Seis hora ainda nem dormi / Seis hora pra despertar / Seis hora já tô de pé / Seis hora pra descansar / Seis hora ainda tô aqui / Seis hora pra chegar lá / Seis hora, questão de fé / Seis hora pra retornar”. Slim vai, Kamau volta, cumprindo compromissos, priorizando e protelando, unidos na tentativa de sobreviver a um cotidiano que, por vezes, é sufocante.
Pausa para a malandragem funk de Daquele Jeito, que, mais uma vez, carrega na ironia para marcar a autoridade dos antigos. Slim inicia – pois é – daquele jeito: “Não diga que é favela só porque tu mora em bloco / E eu não flopo / E a cena rap lembra sorvete de flocos / Branco em cima da mídia / Pretos acima da média / Stand-up em alta, hoje só os comédias vendem / Longe das rédeas não arredo meu pé / Sou arredio / Cês são Nicole, sou Shaquille OʼNeal / Mantendo o brio / Vida é desafio / Por que tanto embalagem se não tem conteúdo pro refil”. Quem não é, senta e espera. Kamau reforça no refrão: “Longe de ser perfeito (eu sei) / Mas é bem-feito / (e vão) Botar defeito / (é que) Nós tá sujeito / Mas anota a receita / (é só) Fazer direito / Cê sabe o jeito / Daquele jeito”. E emenda numa estrofe que beira a perfeição: “Cês quer a pleita, mas a pele cês rejeita / É que esse suingue aqui requer vivência na receita / Então respeita / Chegando cumprimenta quem já tava / Já ajuda a aprender a não ter curva na palavra / Quando o professor falava eu ouvia se tinha a ver / Nem precisei de prova pra ser dez em proceder / Procê ver / Vim pra aula não vim só pelo recreio / Alguns de caderno cheio outros de capa sem recheio”. E vai retomando as ruas e as rimas, devolvendo não a quem pertence, mas a quem merece.
O pouso tranquilo ocorre com Kamau, na curta É isso Mesmo, numa longa sequência de versos que confirma e enlaça a grandiosidade de Isso, que, apesar de ter somente sete músicas e pouco mais de 21 minutos, apresenta uma profundidade conceitual incomum para o que vemos atualmente na música. E aqueles que não o consumirem como um fast food serão agraciados com um tesouro sonoro de valor inestimável.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos