Não se pode, no sentido rigoroso da expressão, educar sem instruir; porque a educação compreende a instrução, como o todo compreende a parte; mas, se a instrução, menosprezando a cultura moral – fonte límpida dos costumes onde se avigora e consolida o caráter e se santificam os conhecimentos – visa exclusivamente ao ser intelectual, cerrando ouvidos aos reclamos superiores e imperativos da natureza moral, definha e desfalece em lastimoso e completo desalento, qual planta privada da luz, do ar puro e livre, e do orvalho vivificante, que lhe retempera a seiva que a nutre. (Ernesto Carneiro Ribeiro)
Um tempo atrás, zapeando pelos canais de TV enquanto aguardava algo que queria assistir, deparei-me com um programa sobre educação. Já estava no final e não me recordo sequer do nome, mas falava sobre a Escola Nova, movimento de renovação educacional que ocorreu no mundo e chegou ao Brasil no final dos anos 1920, capitaneado pelo educador Anísio Teixeira – e chancelado por intelectuais como Afrânio Peixoto, Roquette Pinto e a poetisa e professora Cecília Meireles. Através do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, divulgado em 1932, que propunha “uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida”, seus signatários tinham uma intenção bastante nobre – pelo menos do ponto de vista das intenções:
A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-se para formar “a hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios de ação durável com o fim de “dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento”, de acordo com uma certa concepção do mundo.
Tal concepção, crítica à educação elitizada, defendia o ensino universalizado, obrigatório, laico e gratuito. De acordo com Inês Dussel e Marcelo Caruso, em seu livro A invenção da sala de aula (Moderna), a Escola Nova “é uma das expressões da pedagogia mais difíceis de analisar. Por um lado, muitos destes pedagogos criaram inúmeras propostas de reforma escolar e da sala de aula que diferiam profundamente entre si. Por outro lado, apesar das diferenças didáticas, pedagógicas, históricas e até políticas que existiam entre elas, reuniram-se em organizações internacionais pela reforma educacional” – e tinham como principal objetivo centrar o processo educativo no aluno. Criticavam a homogeneização do ensino, dizendo: “se as crianças são tão diferentes entre si, por que o ensino deve ser tão homogêneo?” Desse modo, “os ‘escolanovistas’ queriam que o ensino se adaptasse à natureza da criança”. Mas esse rousseaunismo, como já sabemos, tem seus custos.
Para Alain, 'o mais alto valor intelectual, e até um dos valores morais, é o de poder prestar atenção'
Ao restringir a figura do professor à de um mero facilitador do conhecimento – e não o seu detentor ou mesmo um modelo de conduta moral – a educação foi amputada de uma de suas funções mais primordiais: a de ensinar que o conhecimentos sem virtudes é incompleto – se não nocivo. O professor, como diz a pedagoga sueca Inger Enkvist em seu excelente Educação: guia para perplexos (Kirion), “era alguém que dominava certa matéria, que a tinha analisado para poder ensiná-la e, ao mesmo tempo que ensinava indiretamente as virtudes intelectuais como a honestidade, a responsabilidade, a mente aberta e o costume de refletir”. Ensinar e aprender é um processo relacional imprescindível para que se desenvolva a educação; o aluno deve ter em mente que ele está ali recebendo conhecimento – ainda que seja estimulado, ao mesmo tempo, a desenvolver sua autonomia. Eliminando-se a relação mestre-pupilo, o professor fica à mercê da vontade do aluno, cuja alma se encontra vulnerável a todo tipo de influências e distrações. Enkvist denomina todas as ideias/reformas educacionais ocorridas no século 20 – da qual fazem parte a Escola Nova, o Construtivismo e o Estruturalismo – de Nova Pedagogia, e explica, em entrevista ao jornal El País:
A nova pedagogia é um pensamento que se vê por toda parte no Ocidente. A Suécia a adotou nos anos sessenta. Consiste, por exemplo, na pouca gradação das notas, por isso muitos pensam que não há razão para estudar muito se isso não for se refletir no histórico escolar. Dá-se muita importância à iniciativa do aluno, trabalha-se em equipe e, ao mesmo tempo em que as provas desaparecem, aparecem os projetos e o uso das novas tecnologias. Em geral, parece que se vai à escola para fazer atividades, não para trabalhar e estudar. Dá-se mais ênfase ao social que ao intelectual. Acho que é um erro. Por um lado, os alunos com mais capacidade não desenvolvem todo o seu potencial e, por outro, os que têm uma menor curiosidade natural por aprender não avançam.
De modo mais específico, ela afirma, em Repensar a educação (Bunker Editorial): “A nova pedagogia está caracterizada por muita terminologia que se oculta e que forma uma ‘família terminológica’. A psicopedagogia, o pedagogismo, o construtivismo, a sociologia da educação e o igualitarismo escolar possuem muitas características em comum, mas enfocam a educação a partir de diferentes pontos de partida”.
A Escola Nova, que aqui teve influência direta do pedagogo americano John Dewey, foi um dos movimentos mais influentes da educação mundial na primeira metade do século 20; sua importância ainda é exaltada nos cursos de Pedagogia e sua influência perdura até hoje. No entanto, seus efeitos – bem como das demais novas pedagogias – são – ao contrário do mundo ideal da autonomia e da autoeducação de acordo com a vivência e os “saberes” dos próprios alunos – uma sala de aula onde o processo educativo dificilmente ocorre, pois o professor não passa de um animador de auditório, sua função está praticamente restrita à estimular a convivência e a mediar conflitos. Aos poucos, também, a Pedagogia deixou de se preocupar com a educação em si para enveredar pela Sociologia, e temas como democratização do ensino, acesso universalizado e recusa da hierarquização – tratada como preconceituosa com aqueles que aprendem mais lentamente e com os menos capacitados – tomaram o lugar da transmissão do conhecimento. A sala de aula deixou, portanto, de ser um local de aprendizado para se tornar um local de socialização; por isso a ideia de inclusão é tão valorizada atualmente. No entanto, com diz Enkvist, “é perverso falar em inclusão quando se mantém na escola alunos que a destroem”.
Sobre tal situação, vale um testemunho: meu maior desafio como professor, em sala de aula – e creio que meus colegas de profissão passam pelo mesmo problema –, é conseguir a atenção dos alunos. Não porque eu não saiba como fazê-lo – tal como gostam de culpar os burocratas da educação; mas como as novas pedagogias diminuíram o valor moral do professor, às vezes perdemos cerca de dez minutos (ou mais) só para que os alunos se aquietem e tenhamos condições de iniciar a aula. Fora as constantes interrupções por conta de conversas paralelas durante as explicações e atividades que exigem concentração. Isso diminui sensivelmente a capacidade de absorver informações daqueles que desejam aprender, pois, como já sabemos, há uma grande quantidade de alunos que não só não querem prestar atenção, como não querem estar na escola. Émile Chartier – mais conhecido como Alain –, um remanescente moderno da educação tradicional, tem a atenção como uma das maiores virtudes do processo educativo. Diz ele, em Considerações sobre a educação (É Realizações): “O mais alto valor intelectual, e até um dos valores morais, é o de poder prestar atenção. Assinalemos de imediato que a atenção é voluntária; é a vontade na inteligência. No outro extremo, o sinal mais marcante dos retardados é a desatenção, a impotência em concentrar o pensamento”. Diferencia a desatenção em vários tipos e conclui dizendo que a tarefa do professor é fazer o aluno se interessar por algo que, naturalmente, ele não se interessa. Esse processo foi muito prejudicado pelas novas pedagogias.
Carlos Monarcha, educador citado por Dussel e Caruso, descreve a Escola Nova como um movimento que ocorreu paralelamente com o processo de urbanização/industrialização, arguindo que:
Na sala de aula, isto significava que “durante o processo de aprendizagem, as diferenças entre os alunos e o professor desaparecem gradualmente, alcançando-se um mesmo nível de compreensão da vida. A escola, dizem, deve educar para a vida. A pedagogia da escola nova brasileira é, portanto, uma psicologia, ou melhor, uma psicopedagogia. O professor nunca reprime, e sim cria áreas de consenso, valorizando os interesses individuais, convertidos em centros de aprendizagem. Administra as tensões e os conflitos individuais e coletivos típicos da vida em sociedade”.
Tais observações estão em consonância com as análises de Dom Lourenço de Almeida Prado, o monge educador que dirigiu, por quase cinquenta anos, o Colégio São Bento, no RJ, e é outro grande crítico das novas pedagogias. Ao comentar um livro de Jean-Claude Milner sobre educação, diz que um dos frutos dessa tendência é que “o conhecimento, o aprendizado, dirá o pedagogo atualizado, não tem importância; importante é a integração social, a atmosfera familiar, o bom convívio afetivo. Exigir aquisição de conhecimento é coisa ultrapassada. Reprovação já era. No máximo, recuperação”. E complementa: “Do próprio professor o mais importante é a sua formação pedagógica, a habilidade em funcionar como um animador de uma classe bem ativa. Pode até não conhecer bem a disciplina de que é titular; indispensável é que saiba dinamizar a sala de aula. A aula bem dada é o fim; não há nada a transmitir”. Tal é o “romance pedagógico”.
E veja, caríssimo leitor, sequer estamos falando de doutrinação – assunto que reservarei para a última parte dessa série. Não vejo má intenção na Escola Nova; trata-se de um movimento que visava, sinceramente, a melhoria do processo educativo. No entanto, como ocorre com todos os movimentos de reformas utópicas – revolucionárias, por assim dizer – sem qualquer exemplo concreto na história, seus teóricos não conseguiram se antecipar às indesejáveis consequências de fomentar a autonomia daqueles que mais necessitam aprender o valor das relações moralmente hierárquicas, das virtudes cardeais e das tradições que sustentaram até o momento a civilização ocidental – ou seja, as “coisas permanentes”. Todas as pedagogias centradas no aluno, seja criança ou jovem, partem do princípio propagado por Jean-Jacques Rousseau – e refutado pela realidade – de que somos naturalmente bons. No entanto, como diz Santo Agostinho nas Confissões, “a inocência das crianças reside na fragilidade dos membros, não na alma”. Nesse sentido, a escola entra como auxiliar no processo de educação familiar – sem esquecer, evidentemente, da duríssima realidade atual, das famílias disfuncionais ou desestruturadas, o que aumenta a responsabilidade da escola; e, como diz o grande médico e educador Ernesto Carneiro Ribeiro – sobre o qual tenho uma aula inteira em meu curso O Brasil é um país racista? – na epígrafe deste artigo, a instrução sem moral “definha e desfalece em lastimoso e completo desalento”.
Voltando ao programa sobre a Escola Nova que passava na TV, vi, então, um grupo de professoras aposentadas caminhando nas ruínas de um velho colégio desativado, perguntando-se, saudosas, o que havia ocorrido àquele movimento tão promissor. Respondi a mim mesmo: “a situação é mesmo desesperadora, pois as senhoras são parte do problema e nem percebem”.