“Levantei de manhã triste porque estava chovendo. (...) O barraco está numa desordem horrivel. E que eu não tenho sabão para lavar as louças. Digo louça por hábito. Mas é as latas. Se tivesse sabão eu ia lavar as roupas. Eu não sou desmazelada. Se ando suja é devido a reviravolta da vida de um favelado. Cheguei a conclusão que quem não tem de ir pro céu, não adianta olhar para cima. E igual a nós que não gostamos da favela, mas somos obrigados a residir na favela.” (Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo)
O que leva uma pessoa negra, pobre, que foi a vida toda massacrada não só pelas circunstâncias, mas por um Estado que parece existir para lhe espoliar até a dignidade, se declarar “de direita”? Sim, pois, quando lemos as notícias e a opinião dos influenciadores, intelectuais, jornalistas e bem-pensantes em geral do nosso país, isso parece não fazer sentido algum. A direita, de acordo com o eminente intelectual Chico Whitaker, em entrevista ao conceituado veículo de comunicação Carta Capital, existe para “manter o privilégio e aumentar a desigualdade”. E, segundo o indefectível periódico Brasil de Fato, num de seus assertivos editoriais, “aumenta a desigualdade no mundo e a direita se aproveita da crise provocada por ela”. Mas o que Chico Whitaker, Carta Capital e Brasil de Fato têm em comum – e que baliza a sua opinião? Fácil: são todos de esquerda.
É praticamente um consenso entre esquerdistas que não existe a possibilidade de uma pessoa, quando consciente dos problemas sociais – e, se for pobre, da opressão que sofre –, se identificar com a direita, pois, segundo José Menezes Gomes, pós-doutor em Ciência Política pela UFPE e professor associado da Ufal, no site da Associação dos Docentes da Universidade Federal de Alagoas (Adufal), o “pobre de direita além de ser um figurante de burguês é terreno fértil para o fascismo [...], que no momento de crise do capitalismo se comporta como um pit bul [sic] da burguesia na defesa de um governo de conteúdo fascista”. Ou seja, só nos resta concordar com outro notório esquerdista: “Narciso acha feio o que não é espelho”.
Ancestralidade, tradição familiar, cultura e liberdade individual são alguns dos valores defendidos e preservados por pessoas pobres em todo o mundo. Mas esquerdistas têm dificuldade em compreender isso
Daí o porquê de o anúncio da cantora Jojo Todynho – sobre quem já escrevi nesta Gazeta do Povo, antevendo, inclusive, sua disposição conservadora antes mesmo que ela a declarasse – ter causado tanto alvoroço – e ódio do bem. Jojo, que já havia declarado seu apoio a João Marcello Branco (médico e marido de sua empresária, Renata Pigliasco, e que é candidato a vereador pelo PL), recentemente compareceu a um evento do partido e postou uma foto com Michelle Bolsonaro, declarando, ainda, apoio a Alexandre Ramagem para a prefeitura do Rio de Janeiro.
A foto gerou uma reação violenta da comunidade LGBT, que a chamou de “aproveitadora” por seu antigo envolvimento com a causa, tendo, inclusive, gravado uma música em defesa desse público. Mas ela se defendeu, nos stories em seu Instagram, dizendo: “Lançamos Arrasou, Viado. E eu, com a bandeira na mão do movimento, pedi respeito, porque todos nós porque merecemos respeito, seja qual for a classe social, seja em qualquer escolha que a gente faz da nossa vida. Ninguém é obrigado a gostar de ninguém, mas respeitar é um dever de todos e é por isso que segunda-feira eu vou pedir suspensão [...]. Em momento algum quis me aproveitar da comunidade, de bandeira, nunca me aproveitei de ninguém, porque se eu me aproveitasse das pessoas eu estava além do que eu estou hoje”. E arrematou: “Se alguém colocou expectativa em mim, isso é problema dela, não meu”.
A deputada Erika Hilton postou um story na mesma rede chamando Jojo de “traidora”, ao que ela também respondeu: “Uma tal de Hilton colocou assim: ʻTraidora. Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressorʼ. Então, a sua educação não foi libertadora. Porque você está querendo me oprimir. Como que você quer me chamar de opressora, se você quer oprimir a minha opinião? [...]. Educação você também não tem, porque educação é quando a gente respeita a opinião dos outros. Educação é quando a gente se coloca no lugar dos outros. Você, como uma mulher trans e negra, não tem respeito? Mas você gosta de cobrar respeito. Porque você é a primeira a fazer o discurso: ʻNão tolerareiʼ. Então, eu tenho que tolerar? Eu também não tolerarei!” E ainda mandou uma mensagem privada para Hilton, indagando: “Te prometi algo? Traidora? Eu sou sua amiga para te trair? Eu ando com você para você me chamar de traidora? Se bota no seu lugar!”
Ela ainda publicou um dos ataques racistas violentíssimos que sofreu, em que alguém dizia: “sua macaca filha da puta você aquela velha maluca da sua vó tem que morreeeeeeeeeeeeeeeer seu [sic] pudesse passar em cima da cabeça de vocês suas desgraças, você não representa o movimento preta feia” (assim mesmo, sem pontuação e com erros grosseiros), e disse que irá processar um por um: “Não venham falar da minha cor, não venham falar da minha avó, porque eu não irei admitir. Sim, irei processar. Isso não é bagunça”.
Em seguida, abriu uma live incendiária, na qual declarou, em alto e bom som: “Hoje eu bato no peito pra dizer: sou uma mulher preta de direita! [...] Eu não fico dentro de bolha, de sistema do caralho a quatro, não; porque quando eu tava me fudendo, comendo angu, não tinha um filha da puta pra perguntar: ʻdona Rita, tá precisando de alguma coisa?ʼ [...]. Sou preta, sim, e sou de direita. Aí, sabe como estou me sentido? Livre! Livre! Não aguentava mais não poder falar, vocês já sabiam”. Que o leitor perdoe os palavrões, incomuns nesta coluna, mas eles dão o tom do desabafo irado de Jojo após tantos ataques e cobranças.
Não preciso aqui falar do motivo pelo qual é absolutamente legítimo um pobre ser de direita, pois já o fiz anteriormente, afirmando que “quando tudo falta, a tradição e as virtudes são fonte de dignidade, e são elas que tornam possíveis a resistência e o progresso. A desordem moral é tão inimiga dos pobres quanto a pobreza material. E [...] qualquer pessoa que tenha passado por privações e as superado tem provas irrefutáveis disso”. Ancestralidade, tradição familiar, cultura e liberdade individual são alguns dos valores defendidos e preservados por pessoas pobres em todo o mundo. Mas esquerdistas têm dificuldade em compreender isso, pois imaginam a direita como mera posição político-partidária, ou mesmo uma ideologia. Quando, na verdade, o conservadorismo, como já dito tantas vezes nos meus textos e vídeos, é uma disposição, na precisão terminológica de Michael Oakeshott.
A posição conservadora é um comportamento prático, ligado às virtudes e à cultura. Por isso é absolutamente compreensível que Jojo Todynho se veja representada por políticos que se aproximam dessa perspectiva
Jojo Todynho é “uma mulher preta de direita” não porque, necessariamente, apoia esse ou aquele candidato, mas porque, como eu disse naquele artigo de 2022, ecoa em sua visão de mundo “a voz da ancestralidade, a voz da sabedoria dos antigos, ainda que seja muito jovem”. E, convenhamos, muitos esquerdistas concordam que é necessário preservar tais valores. Porém, quando o assunto são os problemas sociais, as desigualdades, eles são incapazes de compreender como tais valores podem nos ajudar a mudar a situação, uma vez que, para eles, a posição conservadora é de manter o status quo. Para eles, o progressismo e a mentalidade revolucionária são fruto da sensibilidade social exclusiva da esquerda e a única maneira de fazer justiça. Eles não compreendem, como diz o tantas vezes citado João Camilo de Oliveira Torres, que, “no fundo, o conservador não é um homem que quer voltar ao passado – mas que deseja chegar vivo e em boas condições ao futuro”, e que “somente podemos conservar reformando”.
E, repito, a posição conservadora não é, necessariamente, político-partidária; tampouco eminentemente religiosa – como também já demonstrei. É, antes de tudo, um comportamento prático, ligado às virtudes e à cultura. Por isso é absolutamente compreensível que Jojo Todynho, assim como a maioria das pessoas oriundas das periferias (mas não só), ainda que sem uma consciência clara de suas posições, ainda que não sejam capazes de defendê-las sem recorrerem a simplificações morais (ou moralistas), se vejam representadas por políticos que, de alguma maneira, se aproximam dessa perspectiva. Pois seja bem-vinda, Jojo! Receba todo o meu apoio e que possamos tê-la como uma verdadeira aliada na trincheira daqueles que não pretendem sucumbir à pressão da violência ideológica e ao ódio do bem.
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