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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Identitarismo

“Axé, Kamala!”, ou: a sabujice da esquerda negra brasileira

A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, discursa em um evento com os times campeões da National Collegiate Athletic Association (NCAA), no gramado sul da Casa Branca, Washington DC, EUA, 22 de julho de 2024.
A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, discursa em um evento com os times campeões da National Collegiate Athletic Association (NCAA), no gramado sul da Casa Branca, em 22 de julho. (Foto: EFE/EPA/Ting Shen)

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“Nosso maior mal, disse, é não termos a consciência positiva do que realmente somos e, muito ao invés disso, darmo-nos a nossos próprios olhos uma superioridade, uma grandeza, um poderio, um progresso, uma cultura, um adiantamento, uns predicados quase sem par por aí além entre as demais nações.” (Sílvio Romero)

Em 2008, diante da euforia em torno da eleição de Barack Obama – e no tempo em que eu ainda arriscava uns versos –, escrevi um poema (que o caro leitor pode ler aqui), que terminava com a seguinte estrofe: “Mas ao mostrar ao mundo uma utopia, / cercar de messianismo um simples homem, / sem ver o mecanismo que isso envolve, / não é o que se deve ter em mente; / e sim por ver na história sobretudo / um afro-americano presidente”.

Sim, a vitória de Obama, para além de todas as críticas e especulações que se criaram em torno dele, foi um marco na história americana, um país que viveu, em vários estados, sob um sistema de segregação racial absolutamente inimaginável até os anos 1960. Eleger um presidente negro, um homem que, embora tenha se graduado em Direito pela prestigiada Universidade Harvard, não tinha pedigree, filho de um queniano negro como azeviche, com uma americana alvíssima, foi realmente algo digno de toda comemoração pelo simbolismo que isso carrega. Mas lembro-me de ter ficado um tanto incomodado com o ufanismo que tomou conta não só do povo americano, mas, curiosamente, de nós, brasileiros. Um amigo, que à época estudava na Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, ligou-me indignado, dizendo: “hoje não tem aula, estão fazendo samba aqui para comemorar a vitória do Obama; e colocaram uma enorme faixa escrita: ʻBarack Obama, tamo junto!ʼ” Por isso, o poema.

Mais do que uma mera empolgação infantiloide em relação à nomeação de Kamala Harris, há uma submissão ideológica e, como sempre, irrefletida, a uma mulher por ser mulher – e radical de esquerda –, como foi com Obama por ser negro

Agora a história se repete – como farsa. A flagrante senilidade de Joe Biden, atual presidente americano – se é que se pode dizer que, nesse estado de decrepitude, ele preside algo – que disputaria a reeleição contra aquele que é considerado o arqui-inimigo da América (pelo menos para os progressistas), finalmente acendeu o alerta no Partido Democrata e em todos aqueles que veem a reeleição de Trump como uma ameaça à ordem institucional americana, sobretudo após o fiasco absoluto no primeiro debate presidencial, em que Biden parecia nem sequer saber o que estava fazendo lá. E, para piorar a situação para os democratas, Trump sofreu um atentado que não só energizou sua clara vantagem sobre Biden, mas produziu uma imagem de, ao mesmo tempo, vítima e indestrutível, que poderia levar a uma vitória acachapante na eleição, em novembro.

Muito se especulou sobre a resistência de Biden para desistir de sua candidatura, bem como, caso desistisse, quem seria seu sucessor. É aí que a vice-presidente Kamala Harris entra na conversa. Escolhida em 2020 muito por causa da onda de protestos após o assassinato de George Floyd, Harris começou a ser cotada para assumir a corrida, mesmo diante da resistência do próprio Biden e do partido, que a veem como fraca para vencer Trump; e também por ser vista por muitos como um tipo de esquerdista woke autoritária e sedenta por poder. Em artigo da National Review publicado nesta Gazeta do Povo, o jornalista Dan McLaughlin diz que há duas Kamala Harris: uma é a “procuradora-geral da Califórnia, senadora e candidata à presidência”, que, segundo ele, “era uma autoritária perigosa com um apetite ilimitado por poder, que demonstrava desprezo pela Constituição e nenhum respeito pelos direitos, dignidade, fé ou reputações de quem quer que estivesse em seu caminho”. A outra é a vice-presidente, que é, “francamente, uma tola”. E pergunta qual das duas veremos na presidência – caso ela vença Trump, obviamente.

Mas o mais curioso foi a empolgação de nós outros, tupinambás, com tal indicação. Pois é, arguto leitor, nós, do país que figura no 104.º lugar no ranking de percepção de corrupção (de 180 países, os EUA estão na posição 24) e que elege políticos do calibre dos nossos (nem preciso citar nomes para não ferir suscetibilidades), estamos muito felizes e esperançosos com a indicação de Kamala Harris para a disputa presidencial americana. Não só porque ela é uma mulher e será, caso eleita, a primeira mulher a ser presidente da maior potência mundial; nós, que elegemos a indefectível Dilma Rousseff, estamos exultantes com a ascensão de uma mulher considerada pródiga em “discursos cheios de clichês vazios e tagarelice sem sentido”, de acordo com  McLaughlin. Mas também porque Harris pertence àquele seleto grupo que os americanos chamam de “people of color” (POC), os mestiços, indígenas e outros americanos não brancos; a mãe de Harris é indiana e o pai, jamaicano. “Black” ou “African-American”, para eles, é o negro americano de pais também negros.

Aqui, país de POCs como Flávio Dino, ACM Neto, Anielle Franco, Marina Silva e o próprio Lula, estamos orgulhosos pelos democratas terem escolhido Kamala Harris. E quando digo “nós”, falo, obviamente, dos progressistas – mais especificamente dos políticos e ativistas de esquerda, sobretudo ligados às discussões sobre racismo e feminismo. A jornalista de extrema esquerda Cynara Meneses iniciou a patetice vexatória com um tuíte absolutamente constrangedor, em que dizia, numa mistura de Haroldo de Campos com Carluxo – e aqui reproduzi-lo-ei esteticamente como estava (ela apagou), para que o efeito seja o mesmo:

OBAMA
KAMALA

Um homem negro.
Uma mulher negra.

tamanha a força da
afro-americanidade... chegando ao
poder novamente nos EUA em pouco
tempo, já imaginaram?
e contra a extrema-direita, então, contra
o escroto do Trump, será melhor ainda.
axé, kamala.

O apoio estúpido a Kamala Harris é só a ponta do iceberg; o problema, mesmo, é o viralatismo e a necessidade sabuja de se dobrar aos pares do primeiro mundo

E a deputada federal Talíria Petrone foi mais longe no delírio, e disse: “Um passo à frente! Derrotar Trump é uma missão mundial e a escolha de Kamala Harris é acertada. Não devemos titubear em eleger a primeira mulher presidente dos EUA”. Não ria, bem-humorado leitor: Talíria, que nasceu em Niterói – cidade com o terceiro maior índice de violência autoprovocada do estado do Rio –, está empenhada em eleger Harris e também está mandando o “axé” para a vice-presidente do país mais protestante do mundo.

Não só Cynara e Talíria – feministas radicais e embebidas da ideia de sororidade – manifestaram seu apoio e sua alegria contagiante pela nomeação de Kamala Harris; eu vi muitos perfis, no Instagram, por exemplo, sobretudo de pessoas ligadas à militância antirracista, festejando a nomeação de Harris, naquele movimento de “solidariedade da raça” – que só serve, obviamente, submetida à concordância ideológica. Jamais essas pessoas comemorariam a ascensão de um negro conservador ao poder. Inclusive, para essas pessoas, não tem qualquer importância a competência da pessoa – no caso de Harris, muito questionada, inclusive; mas só o fato de ser “mulher negra e de esquerda” já a chancela para o cargo.

O que ocorre, então, é mais do que uma mera empolgação infantiloide em relação à nomeação de Kamala Harris, mas uma submissão ideológica e, como sempre, irrefletida, a uma mulher por ser mulher – e radical de esquerda –, como foi com Obama por ser negro. É, mais uma vez, o pensamento colonizado da militância de esquerda brasileira, que ama odiar os EUA, ama denunciar o imperialismo americano, mas não se furta de receber dinheiro da Open Society e da Fundação Ford, de correr para lá, na primeira oportunidade, para aqueles eventos brasileiros em Harvard, de receber bolsas de pesquisa e intercâmbios em universidades americanas de renome, que garantirá a seus ativistas melhores posições acadêmicas aqui, e cujas teorias estapafúrdias de racialização, de pan-africanismo, de feminismo negro, de racismo estrutural etc. ela transpõe, sem o menor constrangimento, para a realidade brasileira à custa da ordem social do país. O apoio estúpido a Kamala Harris é só a ponta do iceberg; o problema, mesmo, é o viralatismo e a necessidade sabuja de se dobrar aos pares do primeiro mundo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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