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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Liberdade de expressão

Killer Mike e o legado dos negros contra a censura na América

O rapper e ativista Killer Mike. (Foto: Facebook/página oficial Killer Mike GTO)

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“As pessoas negras estão cansadas da abordagem hesitante, vacilante, comprometida que temos utilizado para alcançar nossa liberdade. Queremos liberdade agora, mas não vamos obtê-la dizendo ʻNós vamos vencerʼ [We shall overcome]. Precisamos lutar até que vençamos.” (Malcolm X, The ballot or the bullet)

“O governo não tem o direito de limitar a sua liberdade de expressão, a sua liberdade religiosa, a sua liberdade de reunião.” (Killer Mike)

No artigo da semana passada falei sobre o quão contraditório é o discurso antirracista no Brasil, cuja sanha autoritária, oriunda de sua vinculação à esquerda identitária, não só apoia projetos de censura, mas – e isso nem sequer mencionei, mas vale aqui – passa boa parte do seu tempo tentando cancelar humoristas, proibir palavras e expressões, e, óbvia e vergonhosamente, silenciar negros que pensam de forma independente, como eu. É uma traição ao legado do abolicionismo e de figuras fundamentais como Luiz Gama, André Rebouças, José do Patrocício, José Correia Leite, Arlindo Veiga dos Santos e tantos outros que lutaram por liberdade e independência para os negros brasileiros. Jamais um movimento oriundo de lutas por liberdade poderia flertar com o autoritarismo e a censura – ainda que pense estar fazendo um bem.

Qual não foi a minha surpresa ao receber, de um amigo, dias depois da publicação do artigo, um vídeo do rapper e ativista americano Michael Render, mais conhecido como Killer Mike, dando uma palestra sobre Liberdade de Expressão na Foundation for Individual Rights and Expression (Fire), em abril desse ano.

A sanha autoritária do discurso antirracista no Brasil não só apoia projetos de censura, mas passa boa parte do seu tempo tentando cancelar humoristas, proibir palavras e expressões, e silenciar negros que pensam de forma independente

Killer Mike é um rapper muito conhecido por ser uma figura dialogal – e, para muitos, incoerente, pelo que é criticado também; ele é um ferrenho apoiador do socialista Bernie Sanders, ao mesmo tempo em que diz não ser contra o capitalismo; é um progressista pró-armas que diz “nunca serei contra a Segunda Emenda”; participou de um debate interessantíssimo, em companhia de outro polêmico rapper, T.I., com a ativista conservadora Candace Owens; e criou uma série documental disruptiva (disponível na Netflix), mostrando como mudar a realidade, por vezes cruel, de negros americanos através de ideias inusitadas – como criar empresas de refrigerantes com as famigeradas gangues Bloods e Crips. Killer Mike, que é nascido em Atlanta (Geórgia), filho de um policial e que tem muitos parentes na corporação, também viralizou na internet, em 2020, por fazer um discurso emocionado quando dos violentos protestos pela morte de George Floyd, pedindo para que os moradores de Atlanta parassem de destruir a cidade, que não “queimassem a sua própria casa por ódio aos seus inimigos”. Ou seja, é um livre pensador no melhor sentido do termo, assim como seu amigo Ice Cube.

Voltando à sua excepcional palestra, Killer Mike inicia lembrando a todos do principal fundamento dos Estados Unidos da América: “Uma república iniciada por um povo que não desejava mais viver sob uma monarquia. Uma república que elaborou uma Carta de Direitos e uma Constituição dos Estados Unidos, onde a primeira prioridade era a liberdade de expressão”. Com isso, ele convida sua audiência a uma reflexão não sobre algo estranho a ela, mas algo que é intrínseco à formação do país. A liberdade é o símbolo máximo de tudo o que a América representa (e podem chorar, canceladores de palavras, nesta coluna não falamos “estadunidense” só para agradá-los em seu complexo de vira-latas latino-americanos). Mike diz que aprendeu com o seu avô que a liberdade de expressão lhe dá o direito de conhecer o seu inimigo quando você entra numa sala; e complementa: “E isso me ajudou a trilhar o caminho para entender que não é porque eu não gostava [de ouvir brancos usando o termo ‘nigger’] que isso era motivo para silenciá-los. Não é porque aquilo me deixava desconfortável que eu tinha motivo para calar as pessoas. E usar o governo [para isso] sempre foi errado”.

Para além do seu avô, Mike evoca outras grandes inspirações de sua vida, a começar pela sra. Ellison, sua professora de Educação Cívica no ensino fundamental. A sra. Ellison era uma mulher durona, uma “ditadora”, como ele diz, mas:

“Ela nos ensinou sobre os três níveis de governo. […] Nos ensinou a amar a Declaração de Direitos, a Constituição, e o fez de maneira quase totalitária. Ela nos ajudou a entender que o oposto dessa república era a ditadura, e ela agia de forma bastante despótica. Sua mão firme me fez compreender que mesmo nas entranhas da escravidão, Dred Scott entendia que a liberdade de expressão era uma necessidade. Sua mão firme me ajudou a entender que mesmo nas entranhas da escravidão, a liberdade de expressão de Harriet Tubman, a liberdade de expressão de Sojourner Truth e a liberdade de expressão de Frederick Douglass eram direitos que não nos foram concedidos por um governo. Nos foram dados pelo Criador que nos colocou aqui como seres humanos, e o governo simplesmente reconheceu o que Deus já havia feito.”

E ao evocar Frederick Douglass (inspiração e tema do primeiro artigo dessa coluna), Mike lembra da frase do grande abolicionista espalhada por sua escola – “sem luta não há progresso” – e emenda: “É preciso que saibamos, aqui, esta noite, que não há uma grande vitória final da liberdade de expressão. Não há um fim da corrida onde todos seguramos troféus. É uma luta constante e prolongada para garantir que o direito de buscarmos uma união mais perfeita seja sempre defendido”. É disso que se trata. E aqui Mike lembra de um dos mais famosos discursos de Douglass – “Um apelo pela liberdade de expressão em Boston” –, de 1860, que é um verdadeiro monumento a esse direito fundamental: “Suprimir a liberdade de expressão”, ele afirma, “é um duplo erro. Isso viola os direitos do ouvinte, assim como os do orador”. Ele é categórico:

“Nenhum direito foi considerado, pelos pais fundadores do governo, mais sagrado do que o direito à expressão. Aos olhos deles, assim como aos olhos de todos os homens ponderados, era o grande renovador moral da sociedade e do governo. Daniel Webster chamou-o de um direito nato, um privilégio doméstico. Liberdade não tem sentido onde o direito de expressar pensamentos e opiniões deixou de existir. Isso, de todos os direitos, é o temor dos tiranos. É o direito que eles, acima de tudo, derrubam primeiro. Eles conhecem o seu poder. Tronos, domínios, principados e poderes, fundamentados na injustiça e no erro, certamente tremerão se aos homens for permitido raciocinar sobre justiça, temperança e um julgamento vindouro em sua presença. A escravidão não pode tolerar a liberdade de expressão.”

Liberdade de expressão é sobre aprender a ouvir – sobretudo, ouvir quem você discorda, quem você acha que está errado

Óbvio que o leitor mais sensível poderá dizer que Douglass não estava falando do direito de ofender; porém, essa é uma questão subjetiva. Um escravo falar na presença de seu senhor, sem ser solicitado, era considerado ofensivo. Mas Mike avança, dizendo que aprendeu que liberdade de expressão é sobre aprender a ouvir – sobretudo, ouvir quem você discorda, quem você acha que está errado. Citou o exemplo do político George Wallace, que fora governador do Alabama, um dos estados mais racistas do sul dos EUA na época das leis Jim Crow, por duas vezes. Wallace manteve uma posição pró-segregação até começar a sofrer em sua própria vida. Foi baleado, ficou paraplégico, teve vários reveses políticos até que, em 1979, voltou ao cristianismo e se arrependeu publicamente de seu racismo de outrora. Enviou cartas a vários líderes do movimento pelos direitos civis, se aproximou do círculo íntimo de Martin Luther King e ouviu pessoas como Andrew Young, Hosea Williams e Joseph Lowery. E, ao ouvi-los, tornou-se uma pessoa melhor. Mike diz: “Ele não ouviu até sofrer, assim como Paulo, da Bíblia, que já foi Saulo, que era um assassino de cristãos, não entendeu nada até que ouviu Cristo e se tornou alguém melhor”. Por fim, Wallace “acabou contratando e nomeando mais de 160 negros, tendo mais negros em seu gabinete e nomeações do que qualquer outro governador do Alabama antes ou depois ele”.

Em contraste, cita o exemplo do rapper e escritor Luther Campbell (Uncle Luke) e seu grupo 2 Live Crew, conhecido por suas letras carregadas de conotações sexuais explícitas, e que foi processado por isso. Uncle Luke lutou bravamente pelo direito de dizer o que quisesse em suas músicas, e venceu. Mike assevera: “Quando leis são promulgadas a fim de usar o governo como uma força política para silenciar aqueles dos quais discordamos, muitas vezes as primeiras e maiores afetadas são as pessoas negras”. E complementa: “Neste exato momento, neste país, o livro Rap on Trial mostra, explicitamente, pelo julgamento de Thugger e outros, que a liberdade de expressão está em risco por causa das vozes negras; 500 delas, desde os anos 90, foram trazidas à tona, algumas foram processadas. Muitos foram para a prisão. Eles simplesmente escreveram postagens idiotas no Facebook. Essas postagens no Facebook foram usadas contra eles no tribunal. Suas letras, seus vídeos foram usados contra eles no tribunal”. Por isso, alerta seus amigos ativistas:

“Quero falar com os mocinhos por um segundo, você sabe, os mocinhos... Sou um ativista negro. Trabalho em prol das mulheres, faço isso igualmente pelos imigrantes, pelos gays e lésbicas. Muitas vezes nos aliamos, muitas vezes nos ajudamos. Muitas vezes lutamos contra os mesmos mestres por direitos básicos. Mas estejam avisados de que, uma vez no poder, usar o governo como um instrumento de opressão é ser tão malévolo quanto os Senhores [Masters] que os antecederam […]. E digo aos estudantes na plateia e aos intelectuais: não deixem que seus campi universitários se tornem tão unilaterais a ponto de vocês se tornarem os Senhores que desprezam”.

E finaliza de modo arrebatador: “Devemos começar a enxergar uma irmandade entre nós. Há milhares de pessoas atualmente presas por coisas que disseram. Cabe a nós sairmos desta sala e advogarmos por elas. Há milhares e milhões de pessoas das quais vocês discordam, mas por cujos direitos devemos advogar. E se não estivermos fazendo isso, então não estamos cumprindo nosso papel como americanos. Se não estamos lutando veementemente pelos que discordam de nós, então, definitivamente, não acreditamos na Primeira Emenda dos Estados Unidos da América”.

Minha tristeza, caro leitor, é saber que um discurso como esse, no País da Liberdade, soa como música aos ouvidos dos sensatos; mas, num país como o nosso, de cultura patrimonialista e autoritária, soará a muitos como uma afronta ao direito de existir. Uma pena.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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