Padres ortodoxos realizam procissão em Lalibela, na Etiópia.| Foto: Anne Saurat/Unesco/Wikimedia Commons
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“Eu me defino como um cristão africano. Não porque um europeu me disse isso. De fato, minha exposição à Europa tornou-me um ateu, e fui tornar-me cristão 33 anos depois, na França, sozinho, sob o chuveiro, nas férias de verão no câmpus da Universidade de Bordeaux. E descobri que estava me tornando africano novamente, que recuperava meu senso de espiritualidade da vida. Estava recuperando o meu senso de proximidade com o Deus vivo, meu senso africano da totalidade da vida. Acho que, ao me tornar cristão, tornei-me mais africano do que pensava que era. Tornei-me quem eu sou!” (Dr. Kwame Bediako, teólogo e pastor ganense)

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Não só a ignorância é fonte de grandes e perigosos equívocos; as distorções deliberadas, as sujeições voluntárias e a fraqueza de alma são terrenos férteis para a produção de discursos e ações totalmente desconectadas da realidade que, muitas vezes, têm consequências nefastas. Manter-se fiel aos fatos, reconhecer as próprias limitações e resistir à sedução das narrativas e soluções fáceis são bons antídotos contra aquilo que venho chamando, há quase dez anos, de escravidão ideológica.

Em relação ao cristianismo que professo, jamais me passou pela cabeça que se tratasse de uma religião europeia ou mesmo que fosse, indelevelmente, contaminado de uma perspectiva eurocêntrica que demonizava tudo que é africano. Óbvio que, sendo negro – e um negro, desde muito jovem, bastante consciente de minha negritude –, sempre busquei as conexões entre a África e a Bíblia, bem como a participação de africanos (e negros em geral) no desenvolvimento do cristianismo. Na Bíblia temos, por exemplo: a descendência africana de Cuxe; a esposa africana de Moisés (Números 12,1); a Rainha de Sabá (Etiópia), que seduziu Salomão; Simão de Cirene (Líbia), que carregou a cruz de Cristo; o eunuco de Candace, rainha dos etíopes (Atos 8,27).

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Jamais me passou pela cabeça que o cristianismo que professo fosse uma religião europeia ou mesmo que fosse, indelevelmente, contaminado de uma perspectiva eurocêntrica que demonizava tudo aquilo o que era africano

Sem contar que o cristianismo se estabeleceu no continente africano ainda nos primeiros séculos. A tradição diz que chegou à Etiópia ainda no século 1.º, justamente por intermédio do eunuco de Atos 8. No século 4.º, o cristianismo já era a religião oficial do reino de Axum; e as absolutamente surpreendentes igrejas de Lalibela, escavadas nas rochas etíopes, datam do século 12. Sem contar o fundamental desenvolvimento do cristianismo ocorrido na África por meio de teólogos como Tertuliano de Cartago (Tunísia), um dos maiores apologistas do segundo século; Atanásio, nascido em Alexandria e chamado pela tradição de “Anão Negro”, que defendeu filosoficamente e estabeleceu a doutrina da divindade de Cristo; e ninguém menos que Agostinho de Tagaste (Argélia), um dos maiores teólogos e filósofos cristãos de todos os tempos. Como diz o teólogo Thomas C. Oden, autor do inescapável Quão africano é o cristianismo?:

“O Cristianismo africano não é menos ecumênico por ter crescido em um continente específico. Ele surgiu de uma distinta experiência africana no solo africano. Aqueles que mais sofreram em nome de uma profundidade e de uma continuidade genuína são africanos de nascimento e têm enfrentado lutas em culturas africanas nutridas por inúmeras gerações de experiência africana nativa. Eles não foram importados de fora. Eles sentiram o suor e conheceram a sede dos desertos e montanhas africanas. A mente global cristã tem sido formada a partir de uma história específica, não de ideias teóricas vagas. Muito dessa história ocorreu na África. Tire a África da Bíblia e da memória cristã, e você tirará muitas cenas importantes da história da salvação. A história dos filhos de Abraão na África; José na África; Moisés na África; Maria, José e Jesus na África; e, pouco depois, Marcos, Perpétua, Atanásio e Agostinho na África.”

Mas, sejamos justos, tenho ciência de que tal constatação não é trivial – por isso o livro de Oden é fundamental; a europeização do cristianismo não foi somente um processo missionário, mas ideológico. A partir do declínio dos reinos africanos da Antiguidade, do surgimento e expansão do Islã, da ascensão europeia e do colonialismo, a África foi se tornando cada vez mais um símbolo do atraso, e mais: foi vítima do racismo “científico” que, surgido na Europa a partir do século 18, foi amplamente utilizado durante a expansão colonial para subjugar o povo africano e tornar a ignomínia da escravidão e do tráfico de seres humanos não só aceitáveis como necessários para salvar os “selvagens”. Tudo isso serviu para minar o ânimo daqueles menos determinados a buscar por respostas que pareciam óbvias dentro do contexto geográfico e cultural onde se originou o cristianismo. Crer num Jesus branco só faz sentido esquecendo sua origem; e mesmo a representação artística de um Jesus branco – que nunca deveria ter substituído a imaginação de um Jesus semita – poderia também, facilmente, ficar circunscrita à sua origem europeia – ocidental, no caso, uma vez que as representações orientais diferem muito em fisionomia, cor de pele, cabelo etc.

No entanto, no desespero de contrapor o discurso que se estabeleceu por tantos anos, muitos foram buscar respostas em teorias que colocam em xeque nossa fé e nossa espiritualidade tão arraigadas no continente africano. Oden defende que o cristianismo africano é uma verdadeira religião tradicional, fundamentada há mais de 2 mil anos. Nem mesmo o pensamento cristão europeu teria se desenvolvido se não fossem os argutos pensadores africanos, pois sua “liderança intelectual caminhou por terra desde o Vale do Nilo até os desertos do Neguev, as colinas da Judeia, e ao norte através da Síria e Capadócia, e por mar para todos os pontos do norte. As ideias centrais dos movimentos monásticos se espalharam pelo deserto de Nítria e desde o Vale do Nilo Central de fala faraônica ao norte, passando pelas comunidades lauras e comunidades monásticas do Jordão, indo até o Rio Tigres e o Hális durante o quarto e quinto século. Todos esses centros de mentes e espíritos brilhantes de Gaza até Nazianzo (Ásia Menor) eram constantemente alimentados pelas ideias que fluíam da África no terceiro e no início do quarto século”.

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Por isso, para mim é estranho, mas não surpreendente, ver cristãos negros tão experientes quanto o músico e pastor Kleber Lucas se renderem ao discurso fácil do progressismo branco para tentar recuperar, através de uma famigerada “teologia negra” – que é, na verdade, fruto do pós-estruturalismo francês –, um senso de identidade artificial para sua fé. Em participação recente num podcast da Mídia Ninja, entrevistado por Caetano Veloso (com quem gravou uma música de sua autoria recentemente), Lucas levantou uma polêmica – que não é nova, mas continua estúpida – a respeito do belíssimo hino da Harpa Cristã Alvo mais que a neve, de Henry Southwick Perkins e Eden Reeder Latta, adaptado para o português por Henry Maxwell Wright. Disse Lucas:

“Tem um hino que fala o seguinte: ʻalvo mais que a neveʼ, se você aceitar Jesus, você vai ficar branco como a neve. Isso é cantado por homens brancos e negros com lágrimas, porque tem uma melodia lindíssima; porque o discurso às vezes nefasto, um discurso de dominação, ele tá embalado, ele tem uma entrega muito boa, de uma melodia linda, de uma memória familiar, de uma memória comunitária, todo mundo cantando, de olhinhos fechados e mãos levantadas ou ajoelhados, ou num coro cantando ʻbranco como a neve, branco como a neveʼ, porque o sangue de Jesus me torna branco. As ideias de embranquecimento estão lá no hino. Então, há um distanciamento, há um caminho a ser percorrido... Porque essa teologia, uma teologia preta, está chegando no Brasil agora; você vai ter James Cone, você vai ter grandes nomes que vão propor, a partir da década de [19]60, uma teologia preta, que só chega no Brasil agora porque os seminários abominavam esses livros, esses conteúdos de uma teologia preta, de pensar o sagrado não numa perspectiva eurocentrada. Então, por que é que as igrejas têm... você bota o nome de colonizadores, de dominadores, de homens da história que tinham escravos? Porque o que chegou aqui, a referência, era isso. O que está havendo hoje são encontros, são fóruns, são encontros como esse, que eu tenho certeza que os negros de igreja, muitos deles que vão assistir essa matéria e vão falar: ʻcara, eu não sabia dissoʼ”.

Isaías está fazendo uma contraposição, por analogia, entre escarlate e carmesim, duas cores de tonalidade vermelha, cujos corantes eram usados para tingir tecidos, com a brancura de um tecido sem manchas. E só

O problema é que esse hino é biblicamente fundamentado no livro do profeta Isaías, capítulo 1, versículo 18, que diz: “Vinde, então, e argui-me, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a branca lã” (grifo meu). Oras, o profeta está fazendo uma contraposição, por analogia, entre escarlate e carmesim, duas cores de tonalidade vermelha, cujos corantes eram usados para tingir tecidos, com a brancura de um tecido sem manchas. E só.

Se, posteriormente ou mesmo na origem, algum tipo de inconsciente racista foi utilizado para exaltar a cor branca e demonizar a cor preta, é impossível saber. Tais inferências são um completo absurdo, uma vez que são a projeção de mentes entupidas de ideologias do ressentimento em épocas e circunstâncias completamente diferentes das suas. Isso nada mais é do que a mentalidade revolucionária pós-moderna em ação, que quer mudar a ordem das coisas por meio de processos disruptivos que atingem desde a linguagem até a moralidade mais elementar. Mas o que brancos de esquerda e seus satélites negros precisam entender é que esse tipo de abordagem nunca ajudou os negros. O resultado é sempre mais miséria, mais escravidão, mais racismo, pois o racismo real ignora tais futilidades linguísticas ou mesmo tentativas de reorientar ideologicamente a sociedade; ainda mais um racismo sofisticado como o brasileiro, escondido debaixo desse reacionarismo atávico.

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Por isso, aos negros cristãos fica o aviso: aderir a uma agenda revolucionária – produzida por pensadores mais alvos que a neve –, muitas vezes carregada de materialismo e que tem seus próprios objetivos, é se esquecer que, historicamente, a resistência e o progresso do negro sempre foram amparados em tradições espirituais sólidas e numa mentalidade de superação própria, oriunda de suas próprias lutas e na sua própria busca por conhecimento, e o cristianismo sempre foi um aliado nessa luta, ainda que, muitas vezes, tenha sido usado como arma de opressão. A subserviência estética e tola a projetos e anseios alheios, em vez de nos ajudar, pode nos destruir. Pensem nisso.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]