“O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘Para onde foi Deus?’, exclamou, ‘é o que lhes vou dizer. Matamo-lo... vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios?’” (Friedrich Nietzsche)
Creio que posso dizer, amigo leitor, sem medo de errar, que poucos cineastas causam-me tamanha ojeriza como o dinamarquês Lars von Trier. Mas também posso dizer, com absoluta certeza, que poucos me fascinam tanto quanto ele. É uma relação de amor e ódio; uma admiração infeliz, de respeito temerário e quase blasfemo. Às vezes o levo a sério demais, em outras o vejo só um provocador meio infantil. Mas jamais passei incólume, ele nunca me deixou indiferente. Seus filmes são um mergulho nos recônditos mais sombrios da alma humana, mais precisamente daquilo que seu conterrâneo, Søren Kierkegaard, chamou de desespero humano, que é, paradoxalmente, “a ‘doença mortal’, esse suplício contraditório, essa enfermidade do eu: eternamente morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte. Porque morrer significa que tudo está acabado, mas morrer a morte significa viver a morte; e vivê-la um só instante é vivê-la eternamente”.
Lars Trier – que inseriu a partícula nobiliárquica “von” de zoeira, quando ainda estudava Teoria do Cinema na Universidade de Copenhague (também estudou Direção na Escola Nacional de Cinema da Dinamarca), nasceu em 30 de abril de 1956, filho de Inger Høst e Fritz Michael Hartmann – entretanto, adotou o sobrenome Trier do marido de sua mãe, que ele pensou ser o seu pai biológico até 1989, quando sua mãe lhe revelou, em seu leito de morte, quem era seu verdadeiro pai. Sua vida pessoal é cercada de controvérsias (como a que causou no lançamento de Melancolia, no Festival de Cannes, em 2011), revelações sobre depressão e fobias variadas. Tais males psicológicos são impressos em seus filmes de maneira indelével, levando-nos a experiências psicológicas intensas, profundas e, por vezes, desconcertantes.
Os filmes de Lars von Trier são um mergulho nos recônditos mais sombrios da alma humana, mais precisamente daquilo que Søren Kierkegaard chamou de desespero humano
Em geral, seus filmes estão sempre à deriva, a olhar no horizonte sem encontrar terra firme. No entanto olham, procuram, esperam – e desesperam. Suas personagens femininas parecem ter saído de uma tragédia de Eurípedes – aliás, Von Trier filmou um roteiro de Medeia de ninguém menos que Carl Th. Dreyer (mestre do qual já tratei aqui, nesta Gazeta do Povo), sua maior referência em cinema – e são martirizadas diante de nossos olhos, sem piedade, o que leva às acusações de misoginia que costuma receber. Em sua defesa, disse que suas personagens femininas “não são mulheres, mas autorretratos”. Pois o primeiro “autorretrato” que vi de Von Trier foi sua indescritível Selma, protagonista daquele que é considerado, por muitos, o filme mais triste da história do cinema, Dançando no Escuro, de 2000 – vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes –, cuja catarse provocada em mim se repete até hoje, mesmo já o tendo visto inúmeras vezes.
[Contém spoilers]
O filme, que se passa nos anos 1960, conta a história de Selma Jeskova, interpretada espetacularmente pela performática cantora islandesa Björk – que, segundo conta-se, teve entreveros tão intensos com Von Trier no set a ponto de prometer nunca mais atuar num filme, mas, ainda assim, recebeu o prêmio de Melhor Atriz em Cannes –, uma imigrante tcheca nos Estados Unidos, mãe solteira, que está perdendo a visão por causa de uma doença congênita e trabalha incansavelmente para juntar dinheiro a fim de pagar a cirurgia para seu filho de 12 anos, que poderá realizá-la quando completar 13. Ela trabalha numa metalúrgica, dobra os turnos, faz bicos em casa e recebe ajuda dos vizinhos e amigos – dentre elas, Cathy, interpretada pela lendária Catherine Deneuve.
Selma alivia o drama de sua condição participando – ou, pelo menos, tentando participar – de uma montagem amadora de seu musical favorito, A noviça rebelde. Mas Selma vai além: ela se imagina nos musicais, e aqui a maestria de Lars von Trier atinge o sublime, pois trata-se de um musical, com canções compostas por Björk, Von Trier e um poeta islandês chamado Sjón. As músicas quebram a via crucis de Selma e dão ao filme um caráter quase onírico, com uma direção de fotografia (de Robby Müller) belíssima, cujas cores saturadas dos clipes – realizados utilizando mais de cem câmeras fixas – contrastam com o restante do filme, de um tom opaco beirando ao sépia.
Selma mora num trailer alugado de um policial, Bill Houston (David Morse), que mente para sua esposa que recebeu uma herança, mas, na verdade, está a ponto de perder a casa por falta de pagamento. Selma também mente sobre o motivo de seu excesso de trabalho – diz que envia o dinheiro para o pai, na Tchecoslováquia – a fim de preservar a situação emocional de seu filho, que não sabe da doença e cujo estresse pode agravá-la. Ela, no entanto, acaba por contar a Bill seu segredo em troca da revelação que ele lhe faz de sua situação financeira. É óbvio que ela não lhe oferece o dinheiro, mas era o único segredo que tinha em solidariedade a ele. Entretanto, o mal penetra o coração de Bill. Ele rouba o dinheiro de Selma e mente para a esposa, dizendo que ela o roubou e tentou seduzi-lo. Na discussão para recuperar suas economias, Bill cai em si e, num instante de arrependimento, força Selma a matá-lo. Ela é presa e condenada à morte. Mas muita coisa acontece enquanto ela aguarda o cumprimento da sentença.
A tensão do filme ocorre num crescendo que vai ficando cada vez mais sufocante. Selma é a vítima sacrificial da terra das oportunidades (aqui transparece a crítica social de Von Trier aos EUA, que se repetirá em outros filmes). Deus, empurrado solenemente para fora da história, parece olhar distante. Só a música salva. Como diz o crítico de cinema Gavin Smith, em sua entrevista com Von Trier registrada no livro organizado por Jan Lumholdt, Lars von Trier: Interviews:
“As canções e danças existem estritamente na mente de Selma, e esta é sua maneira de lidar com uma realidade insuportável, que ela converte em uma forma imaginativamente empática. Em essência, os números musicais são uma forma de refúgio para Selma e permitem que ela continue como um indivíduo funcional. Von Trier impregna a própria imaginação com propriedades divinas. No fundo, o projeto em curso do realizador é espiritual: a redução da experiência humana e da sua representação através do cinema à sua essência.”
Em geral, os filmes de Von Trier estão sempre à deriva, a olhar no horizonte sem encontrar terra firme. No entanto olham, procuram, esperam – e desesperam
A inspiração de Lars von Trier nos musicais que via na infância é evidente e revelada na mesma entrevista. Mas sua maior influência é mesmo Dreyer, gênio de Gertrud e Ordet, de quem copiou a redução dos roteiros ao estritamente essencial. Diz do mestre: “Ele trabalhou por anos e anos em seus roteiros, que começavam com 500 páginas e acabavam com 20. Então, para mim, essa busca pela essência é encontrada no trabalho próximo aos atores. Quando você improvisa, você tem de saber exatamente o que está fazendo – não pode ser de qualquer jeito –, você tem de saber aonde quer chegar; então você começa com uma configuração muito simples. Essa é a parte do processo que acho interessante. A linha da história é quase reduzida à matemática, e então meu trabalho é colocar minha essência nela”. E isso ocorre realmente nas pouco mais de duas horas de Dançando no Escuro, é uma experiência, ao mesmo tempo, de descida aos infernos e de elevação espiritual, efeito, podemos dizer, igualmente produzido pela tragédia grega, que Nietzsche expõe de forma magistral em O nascimento da tragédia:
“O efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza. O consolo metafísico – com que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira tragédia nos deixa – de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por trás de toda civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da história dos povos, permanecem perenemente os mesmos.”
Por isso é que, como cristão, odeio sentir-me um pagão amando Lars von Trier e sua espiritualidade sem Deus. Não obstante, se olharmos atentamente, percebemos que há, lá no fundo, uma carência de infinito (como diz Kierkegaard) que é fruto desse desespero que insiste em nos sobressaltar.
Mas e quando o elemento religioso é trazido à discussão em seus filmes? Isso veremos no artigo da próxima semana.
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