“A morte é nauseante, é a única obsessão que não pode se tornar voluptuosa; mesmo quando queremos morrer, queremos morrer com um remorso implícito no nosso desejo. Quero morrer, mas lamento querer morrer: essa é a sensação de todos os que se abandonam ao Nada.” (Emil Cioran, Nos cumes do desespero)
Estimado leitor, imagine um fim do mundo sem redenção; ou, nas palavras do professor Christopher Peterson, “um apocalipse sem apocalipse”? Pois é, a palavra apocalypsis, do grego, significa revelação. Ou seja, segundo a doutrina cristã, na consumação dos séculos o mistério da vida nos será apresentado pelo próprio Deus e tudo nos será revelado – a não ser que não haja nada para revelar.
Pois é exatamente isso que nos propõe Lars von Trier em Melancolia, de 2011, o último filme que apresentarei – mesmo porque é o último filme dele de que realmente gostei – nessa sequência de análises bastante pessoais do diretor que odeio amar. O filme, de difícil classificação, é uma das experiências cinematográficas mais intensas que tive na vida; vi pessoas saindo zonzas das sessões de cinema (fui duas vezes), e ainda essa semana, ao revê-lo, senti o mesmo frio na espinha com o final catastrófico no qual Lars von Trier atingiu o nível mais pungente de seu niilismo.
Quando a mais sagrada instituição humana, a família, perde o sentido, nada mais faz sentido e só nos resta o fim do mundo. Não sei se foi isso que Lars von Trier quis dizer, mas é isso o que eu digo
O argumento do filme é que um planeta dez vezes maior do que a Terra, nomeado pelos astrônomos de Melancolia, se aproximaria de nós perigosamente e, após um flyby por detrás do Sol, se apresentaria a nós numa “visão espetacular” e se afastaria para nunca mais voltar. Pelo menos é o que garante John (Kiefer Sutherland), astrônomo – ao que tudo indica, diletante – e dono de uma linda mansão na qual ocorre a festa de casamento de sua cunhada, Justine (Kirsten Dunst), organizado por sua irmã, Claire (Charlotte Gainsbourg). O filme, aliás, se inicia com a festa de casamento; ou melhor, com o fiasco da festa, desde a imensa limusine, que enrosca na estreita rua que leva à mansão – obrigando os noivos a chegarem atrasados e a pé à própria festa –, até a mãe, que diz, no meio dos discursos comemorativos, “não acredito em casamentos”; e o pai, que chama todas as mulheres da festa de “Betty”, num completo desprezo pelas relações pessoais. Os dois, aliás, são divorciados. Ou seja, quando a mais sagrada instituição humana, a família, perde o sentido, nada mais faz sentido e só nos resta o fim do mundo. Não sei se foi isso que Lars von Trier quis dizer, mas é isso o que eu digo.
De repente, no meio da festa, Justine vai caindo num estado depressivo profundo, conhecido pela família, que fica alarmada, mas nada pode fazer. O casamento se desfaz antes mesmo de iniciar. Justine mergulha tão profundamente na depressão – provavelmente um quadro de depressão endógena, sobre a qual já falei num artigo sobre a série 13 Reasons Why – que sequer é capaz de andar, tomar banho ou comer. Sua irmã Claire se esforça por ajudá-la enquanto teme pela aproximação de Melancolia. Dunst – no papel que havia, inicialmente, sido escrito para Penelope Cruz – está absolutamente soberba no papel de Justine, tanto que ganhou o prêmio de Melhor Atriz na edição de 2011 do Festival de Cannes – do qual Von Trier foi banido após comentários, no mínimo, controversos a respeito de Hitler.
O filme é dividido em três partes, com um prólogo belíssimo – em que Von Trier repete o efeito de câmera superlenta de seu filme anterior, Anticristo, com imagens do filme, cenas espaciais e a maravilhosa e grandiloquente abertura da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner – e dois capítulos, com os nomes das irmãs. Em Justine ocorre a malfadada festa de casamento e o início da descida aos infernos da jovem em depressão. Em Claire, o esforço desta para ajudar a irmã vai se misturando à apreensão cada vez maior pela aproximação do planeta gigantesco. John está otimista, diz que o planeta não colidirá com a Terra “de jeito nenhum”, o que não a tranquiliza – inclusive a faz comprar medicamentos controlados, caso necessite adiantar as coisas (se é que o leitor me entende). Curiosa e subitamente, Justine melhora à medida que Claire vai piorando. Até que ocorre o que todos já imaginavam, a colisão é inevitável. De repente, Claire afunda em desespero, enquanto Justine é tomada de uma entranha calma.
Lars von Trier, que diz ter escrito esse filme por causa de sua própria depressão (“acho que Justine é muito eu. Ela está baseada muito em mim e nas minhas experiências com profecias do fim do mundo e depressão”), explica numa entrevista dada em 2011: “Meu analista me disse que os melancólicos geralmente são mais equilibrados do que as pessoas comuns em situações desastrosas, em parte porque podem dizer: ʻO que foi que eu te disse?ʼ […] Mas também porque não têm nada a perder. E esse é o germe de Melancolia”. Já Sigmund Freud diz, em Luto e Melancolia, que “a melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição”. Pois Justine passa desse estado àquele com a aproximação da catástrofe. Em conversa com sua irmã, diz, com uma tranquilidade e um niilismo assustadores: “A Terra é má”. E o diálogo segue:
Justine: Não precisamos sentir pena dela.
Claire: O quê?
J: Ninguém sentirá falta dela.
C: Mas onde Leo [filho de Claire] crescerá?
J: Tudo o que sei é: a vida na Terra é má.
C: Então talvez haja vida em outro lugar.
J: Mas não há.
C: Como sabe?
J: Porque eu sei das coisas.
C: Não estaria imaginando?
J: Eu sei que estamos sozinhos.
A partir desse momento, é Justine que tranquiliza Claire e seu filho (que, inexplicavelmente, chama a tia de Steelbreaker, quebra-aço). John, covardemente, desaparece. A saída honrosa, imaginativa, é oferecida por Justine a seu sobrinho: uma caverna mágica que os protegerá do fim do mundo. Foi Thomas Vinterberg que disse, segundo Von Trier – jocosamente, óbvio –, a coisa mais sensível a respeito do final: “Como você fará um filme depois disso?”
A experiência de fim do mundo que o filme nos proporciona parece, a mim, um bom alerta aos niilistas de nosso tempo, pois, garanto, não é boa
O fato é que Melancolia é um filme perturbador, mas contraditoriamente belo. Von Trier manifestou alguma contrariedade com esse fato, pois essa não era, propriamente, a sua intenção. No entanto, a atmosfera “polida”, segundo ele disse, ajudou o filme a ficar, de fato, muito bonito. Mesmo na iminência do fim do mundo, a Beleza de algumas cenas é verdadeiramente arrebatadora, sobretudo por conta do cenário – o maravilhoso castelo suéco Tjolöholm, que serve de casa à família de Claire, com um campo de golfe, riachos e o Mar do Norte ao fundo. O planeta Melancolia, quando aparece, também revela algo como a beleza sublime de que nos fala Aristóteles.
A experiência de fim do mundo que o filme nos proporciona parece, a mim, um bom alerta aos niilistas de nosso tempo, pois, garanto, não é boa. A tela preta, o silêncio absoluto, representa bem, principalmente no cinema, o nihil. É um baque e tanto. Mas pode ser terapêutico. Como sabiamente diz Viktor Frankl – em O sofrimento de uma vida sem sentido – a respeito da literatura, mas que pode ser muito bem transportado para o cinema:
“A literatura, porém, tem uma escolha. Não precisa continuar sendo um sintoma da atual neurose de massa, mas pode muito bem contribuir para o seu tratamento. Com efeito, os homens que passaram pelo inferno do desespero, através da aparente falta de sentido da existência, são precisamente aqueles que podem oferecer aos outros homens, como um sacrifício, seus sofrimentos. É justamente a autoexpressão de seu desespero que pode ajudar o leitor – igualmente atingido pelo sofrimento de uma vida sem sentido – a superá-lo, mesmo que seja para mostrar-lhe que não se encontra só. Em outras palavras, ajudá-lo a transformar o sentimento de absurdidade em sentimento de solidariedade. Nesse caso, a alternativa não é mais ‘sintoma ou terapia’, senão que o sintoma é uma terapia! Sem dúvida, se a literatura deve exercer essa função terapêutica – ou seja, realizar seu potencial terapêutico –, deve renunciar a entregar-se, numa prática sadomasoquista, ao niilismo e ao cinismo. Ainda que o escritor possa provocar no leitor – ao comunicar e compartilhar com ele seu sentimento de ausência de sentido – uma reação catártica, não deixa, contudo, de agir irresponsavelmente quando lhe prega tão somente o absurdo da existência. Se o escritor não for capaz de imunizar o leitor contra o desespero, deveria ao menos evitar infectá-lo com seu próprio niilismo.
Por essa razão considero Melancolia um filme belíssimo e genial; por essa razão eu, definitivamente, odeio amar Lars von Trier.
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