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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Eu odeio amar Lars von Trier (parte 2)

Emily Watson como Bess, em "Ondas do destino", de Lars von Trier.
Emily Watson como Bess, em "Ondas do destino", de Lars von Trier. (Foto: Divulgação)

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“Quando a inocência tem os olhos vazados, um cristão deve perder a fé ou aceitar que lhe furem os olhos. (Albert Camus, em A Peste)

Em entrevista a seu colega diretor Christian Braad Thomsen, Lars von Trier diz que os valores que ele apresenta no filme do qual trataremos neste breve artigo estavam em total conflito com tudo o que aprendera na infância, como membro de uma família de ateus (embora com algumas convicções quase religiosas) na qual a religião ou mesmo a “fraqueza sentimental” ele fora estimulado a evitar. No entanto, ele afirma que o motivo que o levou a criar uma história em que o milagre é tratado de maneira tão explícita e o sentimento é levado às últimas consequências foi justamente o interesse que sempre teve pela religião como uma forma de controle da realidade que nos cerca.

Ele afirma: “Quando criança, você cria todo tipo de rituais para manter o controle. Eu tinha muito medo da bomba atômica, então, todas as noites, quando ia para a cama tinha de realizar todos esses rituais para salvar o mundo. E, do ponto de vista psicológico, a religião é uma continuação desses rituais infantis que existem para evitar que tudo volte ao caos”. No entanto, complementa de maneira bastante honesta: “Mas é claro que você não pode, conscientemente, apoiar a abordagem da religião dessa forma, porque a religião é algo diferente para você. Considero a religião como faço com os milagres: não acredito neles, mas espero que ocorram”.

Eis que estamos diante de um dos filmes mais controversos de Lars von Trier: Ondas do Destino (Breaking the Waves), de 1996, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, e que deu início ao turning point conceitual do cineasta, saindo de filmes tecnicamente exigentes como O Elemento do Crime (1984) e Europa (1991), e passando a tratar das heroicas mulheres que compõem sua Gold Heart Trilogy, iniciada com Ondas do Destino e completada por Os Idiotas (1998) – seu filme Dogma 95 – e Dançando no Escuro (2000) – este último, abordado no artigo da semana passada.

“Do ponto de vista psicológico, a religião é uma continuação desses rituais infantis que existem para evitar que tudo volte ao caos.”

Lars von Trier, em entrevista a Christian Braad Thomsen.

[Contém spoilers]

Ondas de Destino é um filme, para dizer o mínimo, desafiador, em que a blasfêmia e a espiritualidade dão as mãos e conduzem a vida de uma mulher, ao mesmo tempo, de uma ingenuidade que beira a estupidez – ou mesmo dá sinais de uma ligeira deficiência mental – e de uma fé, determinação e intrepidez que tocam a santidade. Dividido em capítulos com introduções musicais e paisagens bucólicas, conta a história de Bess McNeill (interpretada sublimemente por Emily Watson), uma recatada jovem escocesa, pertencente a uma comunidade protestante ortodoxa e muito rígida – fundamentalista, por assim dizer –, que se apaixona e decide se casar com o forasteiro (outsider) Jan Nyman (Stellan Skarsgård), que trabalha numa plataforma de extração de petróleo em alto mar.

Óbvio que a comunidade desaprova a união, e o filme já começa com Bess sendo interrogada pelos anciãos, que duvidam de sua capacidade de discernir o que está fazendo: “Sabe ao menos o significado de matrimônio?”, pergunta, autoritário, o ancião; ao que Bess responde: “É quando duas pessoas são unidas em Deus”. Ele insiste: “E você realmente acredita que é capaz de assumir a responsabilidade não apenas por seu próprio matrimônio em Deus, mas também pelo de outra pessoa?”. Ela responde, inflexível: “Eu sei que sou”. E a conversa termina com um ligeiro sarcasmo da interrogada, quando o ancião lhe pergunta por alguma coisa que os forasteiros tenham trazido de valor a eles; ela responde, com um meio-sorriso: “sua música”. E é dispensada da protoinquisição.

Esse diálogo inicial dá o tom do paradoxal contraste que há entre aquela que é considerada incapaz de tomar decisões racionais e seus censores. Bess é uma jovem não só determinada, mas aparentemente consciente de sua fé e sua comunhão pessoal com Deus – com quem, nas orações, trava “diálogos” em que seus questionamentos são respondidos com ela mesma simulando a voz grave do Criador –, bem como da hipocrisia dos anciãos. Em determinados momentos ousa, inclusive, questionar os dogmas da comunidade: “É estupidez só os homens poderem falar na igreja”, diz a seu avô. Ou seja, temos diante de nós uma figura semelhante à que, posteriormente, Lars von Trier vai repetir em Selma, protagonista de Dançando no Escuro, mulheres cuja força parece se aperfeiçoar em sua fraqueza. Como diz o próprio diretor, “suas mulheres são mais fortes que os homens”, e seus filmes sempre enfrentam “um choque entre um ideal e a realidade”, no qual suas personagens levam o ideal às últimas consequências.

Após o casamento e um breve período de regozijo em que o casal se deleita nos prazeres sexuais – isso será importante à frente –, Jan precisa retornar à plataforma, o que deixa Bess extremamente contrariada (e dando mostras de uma incompreensão infantil da realidade). Ele vai e ela fica contando os dias para que ele volte para os seus braços. Quem tenta, na medida do possível, consolá-la é sua fiel cunhada, Dorothy “Dodo” McNeill (Katrin Cartlidge), viúva de seu irmão, que lhe devota um amor fraterno e cuidadoso. No entanto, ocorre um acidente grave na plataforma e Jan é gravemente ferido na cabeça. É operado, mas a probabilidade de ele ficar paraplégico é altíssima. Em meio aos altos e baixos da recuperação, Jan se desespera e faz uma proposta indecorosa a Bess: pede que ela faça sexo com outros homens e volte para contá-lo como foi, que isso o manterá vivo. Bess nega, dizendo-se incapaz de tal sacrilégio. Jan piora. Então, num de seus “diálogos” com Deus, pede que Ele preserve a vida de seu marido; mas ouve, de sua própria boca: “Prove que o ama e Eu o deixo viver”. Bess, mesmo aterrorizada, sucumbe ao horripilante desafio que a levará à morte e trará Jan à vida.

A repugnância do martírio de Bess – ao qual se lança não com prazer, mas como num salto no escuro da fé semelhante ao de Alexander em O Sacrifício, de Andrei Tarkovski – é, digamos, equilibrada pelas sensíveis melhoras de Jan, o que faz, por um lado, com que ela se obstine em seus propósitos, mas, por outro, que suas desventuras cheguem aos ouvidos da comunidade. Dodo tenta demovê-la dizendo que Jan está delirando por causa de sua delicada situação, e sua mãe a adverte: “Faz ideia do que significa ser expulsa da comunidade? Não terá nada, Bess! Tenho visto homens e mulheres fortes definharem por conta disso; e você não é forte, é uma mulher fraca. Isso a matará, Bess”. No entanto, ela continua e é expulsa pelos anciãos. É tristemente simbólica a cena das crianças, outrora suas amigas, a perseguindo, apedrejando e a xingando de “vadia” em frente à sua casa, enquanto sua mãe ouve tudo, inerte (embora preocupada), do lado de dentro. Ou seja, foi abandonada por todos e só lhe resta o marido, por quem se lança em derradeiro sacrifício.

O milagre final que se apresenta a Jan, já de volta à plataforma, e seus amigos, como disse o mestre Roger Ebert em sua crítica, mostra que o filme “tem o tipo de poder bruto, o tipo de consideração aberta pela força do bem e do mal no mundo da qual queremos fugir”. E acrescenta: “Às vezes é mais fácil envolver-nos em sentimentos e banalidades piedosas e esquecer que Deus criou a natureza ‘ensanguentada com unhas e dentes’”. E, como nota Linda Badley em seu livro sobre Lars von Trier, a intenção do diretor, descrita numa anotação de seu roteiro, foi criar “um filme em que todas as forças motrizes eram ‘boas’; mas porque ‘o bem’ é algo raro, quando encontrado é muitas vezes ‘mal compreendido ou confundido com outra coisa’”.

A atitude de Bess – que ela assume senão como um salto na fé – não difere, em natureza, daquela que teve, por exemplo, Abraão – o Pai da Fé – quando decidiu assassinar o próprio filho a mando de Deus

A fim e ao cabo, o filme, que é realmente belo e desconcertante, ainda gera muitas discussões entre aqueles que o reputam como um delírio blasfemo de Lars von Trier, e aqueles que consideram Bess uma espécie de figura de Cristo. Agora, é forçoso admitir que somente nosso tabu em relação ao sexo nos impede de assumir, definitivamente, a segunda posição. Afinal de contas, a atitude de Bess – que, como dito, ela assume senão como um salto na fé – não difere, em natureza, daquela que teve, por exemplo, Abraão – o Pai da Fé – quando decidiu assassinar o próprio filho a mando de Deus. Recorro, novamente, a Kierkegaard, em Temor e Tremor:

“Pode, por acaso, falar-se francamente de Abraão sem correr o risco de extraviar aquele que quisesse fazer o que ele fez? Se não possuo a sua coragem, o melhor é não mencionar sequer Abraão e, sobretudo, não o aviltar tornando o seu exemplo armadilha para os fracos. Mas, se fazemos da fé um valor total, se a tomamos pelo que ela é, penso que se pode falar sem perigo dos problemas que somente lhe não são estranhos; pois pela fé alguém se pode assemelhar a Abraão em vez de a um vulgar assassino.

Tal é, segundo Kierkegaard, o cavaleiro da fé, aquele que “converte em resignação infinita a profunda melancolia da vida; conhece a felicidade do infinito; experimentou a dor da total renúncia àquilo que mais ama no mundo – e, no entanto, saboreia o finito com tão pleno prazer como se nada tivesse conhecido de melhor, não mostra indício de sofrer inquietação ou temor, diverte-se com uma tal tranquilidade, que, parece, nada há de mais certo que este mundo finito. E, no entanto, toda essa representação do mundo que ele figura é nova criação do absurdo. Resignou-se infinitamente a tudo para tudo recuperar pelo absurdo”.

Tal é Bess McNeill.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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