Emily Watson como Bess, em “Ondas do destino”, de Lars von Trier.| Foto: Divulgação
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“Quando a inocência tem os olhos vazados, um cristão deve perder a fé ou aceitar que lhe furem os olhos. (Albert Camus, em A Peste)

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Em entrevista a seu colega diretor Christian Braad Thomsen, Lars von Trier diz que os valores que ele apresenta no filme do qual trataremos neste breve artigo estavam em total conflito com tudo o que aprendera na infância, como membro de uma família de ateus (embora com algumas convicções quase religiosas) na qual a religião ou mesmo a “fraqueza sentimental” ele fora estimulado a evitar. No entanto, ele afirma que o motivo que o levou a criar uma história em que o milagre é tratado de maneira tão explícita e o sentimento é levado às últimas consequências foi justamente o interesse que sempre teve pela religião como uma forma de controle da realidade que nos cerca.

Ele afirma: “Quando criança, você cria todo tipo de rituais para manter o controle. Eu tinha muito medo da bomba atômica, então, todas as noites, quando ia para a cama tinha de realizar todos esses rituais para salvar o mundo. E, do ponto de vista psicológico, a religião é uma continuação desses rituais infantis que existem para evitar que tudo volte ao caos”. No entanto, complementa de maneira bastante honesta: “Mas é claro que você não pode, conscientemente, apoiar a abordagem da religião dessa forma, porque a religião é algo diferente para você. Considero a religião como faço com os milagres: não acredito neles, mas espero que ocorram”.

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Eis que estamos diante de um dos filmes mais controversos de Lars von Trier: Ondas do Destino (Breaking the Waves), de 1996, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, e que deu início ao turning point conceitual do cineasta, saindo de filmes tecnicamente exigentes como O Elemento do Crime (1984) e Europa (1991), e passando a tratar das heroicas mulheres que compõem sua Gold Heart Trilogy, iniciada com Ondas do Destino e completada por Os Idiotas (1998) – seu filme Dogma 95 – e Dançando no Escuro (2000) – este último, abordado no artigo da semana passada.

“Do ponto de vista psicológico, a religião é uma continuação desses rituais infantis que existem para evitar que tudo volte ao caos.”

Lars von Trier, em entrevista a Christian Braad Thomsen.

[Contém spoilers]

Ondas de Destino é um filme, para dizer o mínimo, desafiador, em que a blasfêmia e a espiritualidade dão as mãos e conduzem a vida de uma mulher, ao mesmo tempo, de uma ingenuidade que beira a estupidez – ou mesmo dá sinais de uma ligeira deficiência mental – e de uma fé, determinação e intrepidez que tocam a santidade. Dividido em capítulos com introduções musicais e paisagens bucólicas, conta a história de Bess McNeill (interpretada sublimemente por Emily Watson), uma recatada jovem escocesa, pertencente a uma comunidade protestante ortodoxa e muito rígida – fundamentalista, por assim dizer –, que se apaixona e decide se casar com o forasteiro (outsider) Jan Nyman (Stellan Skarsgård), que trabalha numa plataforma de extração de petróleo em alto mar.

Óbvio que a comunidade desaprova a união, e o filme já começa com Bess sendo interrogada pelos anciãos, que duvidam de sua capacidade de discernir o que está fazendo: “Sabe ao menos o significado de matrimônio?”, pergunta, autoritário, o ancião; ao que Bess responde: “É quando duas pessoas são unidas em Deus”. Ele insiste: “E você realmente acredita que é capaz de assumir a responsabilidade não apenas por seu próprio matrimônio em Deus, mas também pelo de outra pessoa?”. Ela responde, inflexível: “Eu sei que sou”. E a conversa termina com um ligeiro sarcasmo da interrogada, quando o ancião lhe pergunta por alguma coisa que os forasteiros tenham trazido de valor a eles; ela responde, com um meio-sorriso: “sua música”. E é dispensada da protoinquisição.

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Esse diálogo inicial dá o tom do paradoxal contraste que há entre aquela que é considerada incapaz de tomar decisões racionais e seus censores. Bess é uma jovem não só determinada, mas aparentemente consciente de sua fé e sua comunhão pessoal com Deus – com quem, nas orações, trava “diálogos” em que seus questionamentos são respondidos com ela mesma simulando a voz grave do Criador –, bem como da hipocrisia dos anciãos. Em determinados momentos ousa, inclusive, questionar os dogmas da comunidade: “É estupidez só os homens poderem falar na igreja”, diz a seu avô. Ou seja, temos diante de nós uma figura semelhante à que, posteriormente, Lars von Trier vai repetir em Selma, protagonista de Dançando no Escuro, mulheres cuja força parece se aperfeiçoar em sua fraqueza. Como diz o próprio diretor, “suas mulheres são mais fortes que os homens”, e seus filmes sempre enfrentam “um choque entre um ideal e a realidade”, no qual suas personagens levam o ideal às últimas consequências.

Após o casamento e um breve período de regozijo em que o casal se deleita nos prazeres sexuais – isso será importante à frente –, Jan precisa retornar à plataforma, o que deixa Bess extremamente contrariada (e dando mostras de uma incompreensão infantil da realidade). Ele vai e ela fica contando os dias para que ele volte para os seus braços. Quem tenta, na medida do possível, consolá-la é sua fiel cunhada, Dorothy “Dodo” McNeill (Katrin Cartlidge), viúva de seu irmão, que lhe devota um amor fraterno e cuidadoso. No entanto, ocorre um acidente grave na plataforma e Jan é gravemente ferido na cabeça. É operado, mas a probabilidade de ele ficar paraplégico é altíssima. Em meio aos altos e baixos da recuperação, Jan se desespera e faz uma proposta indecorosa a Bess: pede que ela faça sexo com outros homens e volte para contá-lo como foi, que isso o manterá vivo. Bess nega, dizendo-se incapaz de tal sacrilégio. Jan piora. Então, num de seus “diálogos” com Deus, pede que Ele preserve a vida de seu marido; mas ouve, de sua própria boca: “Prove que o ama e Eu o deixo viver”. Bess, mesmo aterrorizada, sucumbe ao horripilante desafio que a levará à morte e trará Jan à vida.

A repugnância do martírio de Bess – ao qual se lança não com prazer, mas como num salto no escuro da fé semelhante ao de Alexander em O Sacrifício, de Andrei Tarkovski – é, digamos, equilibrada pelas sensíveis melhoras de Jan, o que faz, por um lado, com que ela se obstine em seus propósitos, mas, por outro, que suas desventuras cheguem aos ouvidos da comunidade. Dodo tenta demovê-la dizendo que Jan está delirando por causa de sua delicada situação, e sua mãe a adverte: “Faz ideia do que significa ser expulsa da comunidade? Não terá nada, Bess! Tenho visto homens e mulheres fortes definharem por conta disso; e você não é forte, é uma mulher fraca. Isso a matará, Bess”. No entanto, ela continua e é expulsa pelos anciãos. É tristemente simbólica a cena das crianças, outrora suas amigas, a perseguindo, apedrejando e a xingando de “vadia” em frente à sua casa, enquanto sua mãe ouve tudo, inerte (embora preocupada), do lado de dentro. Ou seja, foi abandonada por todos e só lhe resta o marido, por quem se lança em derradeiro sacrifício.

O milagre final que se apresenta a Jan, já de volta à plataforma, e seus amigos, como disse o mestre Roger Ebert em sua crítica, mostra que o filme “tem o tipo de poder bruto, o tipo de consideração aberta pela força do bem e do mal no mundo da qual queremos fugir”. E acrescenta: “Às vezes é mais fácil envolver-nos em sentimentos e banalidades piedosas e esquecer que Deus criou a natureza ‘ensanguentada com unhas e dentes’”. E, como nota Linda Badley em seu livro sobre Lars von Trier, a intenção do diretor, descrita numa anotação de seu roteiro, foi criar “um filme em que todas as forças motrizes eram ‘boas’; mas porque ‘o bem’ é algo raro, quando encontrado é muitas vezes ‘mal compreendido ou confundido com outra coisa’”.

A atitude de Bess – que ela assume senão como um salto na fé – não difere, em natureza, daquela que teve, por exemplo, Abraão – o Pai da Fé – quando decidiu assassinar o próprio filho a mando de Deus

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A fim e ao cabo, o filme, que é realmente belo e desconcertante, ainda gera muitas discussões entre aqueles que o reputam como um delírio blasfemo de Lars von Trier, e aqueles que consideram Bess uma espécie de figura de Cristo. Agora, é forçoso admitir que somente nosso tabu em relação ao sexo nos impede de assumir, definitivamente, a segunda posição. Afinal de contas, a atitude de Bess – que, como dito, ela assume senão como um salto na fé – não difere, em natureza, daquela que teve, por exemplo, Abraão – o Pai da Fé – quando decidiu assassinar o próprio filho a mando de Deus. Recorro, novamente, a Kierkegaard, em Temor e Tremor:

“Pode, por acaso, falar-se francamente de Abraão sem correr o risco de extraviar aquele que quisesse fazer o que ele fez? Se não possuo a sua coragem, o melhor é não mencionar sequer Abraão e, sobretudo, não o aviltar tornando o seu exemplo armadilha para os fracos. Mas, se fazemos da fé um valor total, se a tomamos pelo que ela é, penso que se pode falar sem perigo dos problemas que somente lhe não são estranhos; pois pela fé alguém se pode assemelhar a Abraão em vez de a um vulgar assassino.

Tal é, segundo Kierkegaard, o cavaleiro da fé, aquele que “converte em resignação infinita a profunda melancolia da vida; conhece a felicidade do infinito; experimentou a dor da total renúncia àquilo que mais ama no mundo – e, no entanto, saboreia o finito com tão pleno prazer como se nada tivesse conhecido de melhor, não mostra indício de sofrer inquietação ou temor, diverte-se com uma tal tranquilidade, que, parece, nada há de mais certo que este mundo finito. E, no entanto, toda essa representação do mundo que ele figura é nova criação do absurdo. Resignou-se infinitamente a tudo para tudo recuperar pelo absurdo”.

Tal é Bess McNeill.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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