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A dignidade do indivíduo florescerá quando as decisões que dizem respeito à sua vida estiverem em suas próprias mãos, quando tiver a segurança da estabilidade e a certeza de sua renda, e quando souber que tem os meios para buscar melhorias para si. (Martin Luther King Jr.)
O Brasil foi formado sob a égide de um estatismo brutal e asfixiante. Desde sempre, em maior ou menor grau, convivemos com isso; e temos, há muito, dados que comprovam tal afirmação. Como diz Bruno Garschagen em seu absolutamente inescapável Pare de acreditar no governo: “As ações dos políticos e de seus governos ajudaram a criar um imaginário político e cultural pró-Estado e a formar uma mentalidade intervencionista que varia em intensidade de acordo com o nível de escolaridade, segundo a Pesquisa Social Brasileira. O Brasil tem uma sociedade profundamente dividida pela instrução formal, e é a ausência ou diferença no grau de escolaridade o fator principal para o grau de estatismo. Ou seja, somos todos estatistas, mas alguns de nós são mais do que os outros”. O que isso quer dizer? Que “quem mais deseja a interferência do Estado são os mais pobres, que ‘também são os menos escolarizados’”. Tais dados estão na Pesquisa Social Brasileira que gerou o livro A cabeça do brasileiro, de Alberto Carlos Almeida.
Então uma importante questão se impõe: há, entre os mais pobres, a ideia de que o Estado é que deve trabalhar para solucionar os problemas sociais. Por outro lado, há pesquisas que demonstram um nível bastante significativo de empreendedorismo entre os mais pobres, num evidente enfrentamento à inabilidade do Estado. No livro Um país chamado favela, de Celso Athayde e Renato Meirelles, os autores afirmam, por exemplo, que, dentre os entrevistados:
No total, 76% das pessoas opinaram que vida melhorou no período imediatamente anterior à pesquisa. No entanto, poucas atribuem esse avanço às políticas públicas ou aos empregadores. Para 14%, a família é a principal responsável pela evolução. Deus é citado por 40%. Segundo 42%, a ascensão é resultado do próprio esforço […]. Os jovens, em particular, são filhos e netos daqueles cidadãos abandonados e maltratados pelo Estado. Criados a partir dessa memória familiar recente, não enxergam o governo, qualquer que seja, como provedor de bem-estar. Não raro treinados em modelos espartanos de sobrevivência, convertem-se em homens e mulheres particularmente resilientes que aprendem, enfrentam preconceitos e fazem acontecer.
As iniciativas individuais são uma mola propulsora do progresso e da prosperidade
E aqui temos uma demonstração de como as iniciativas individuais são uma mola propulsora do progresso e da prosperidade. Esse era, inclusive, o lema de André Rebouças, um dos maiores liberais que esse país já teve e principal responsável pelo projeto de ascensão social dos ex-escravos – projeto esse que, infelizmente, se perdeu em meio às disputas políticas do pós-abolição, até desaparecer sob o golpe republicano. Rebouças, numa citação basilar de ninguém menos que Jean-Baptiste Say, um dos pais do liberalismo moderno – que ele conhecia muito bem –, aponta que a escravidão é um “um sistema vicioso de corrupção, que se opõe aos mais belos desenvolvimentos da indústria. O escravo é um ser depravado, o senhor não o é menos; nem um nem outro pode conseguir ser completamente industrioso, depravam até, com o seu exemplo, o homem livre, que não tem escravos. O trabalho não pode ser honrado no mesmo lugar em que ele é considerado infamante. Nos senhores a inatividade da inteligência é a consequência da inatividade do corpo; com o chicote na mão fica o senhor evidentemente dispensado do trabalho de raciocinar”. E Rebouças conclama: “Abri espaço à iniciativa individual e ao espírito de associação: lançai por terra as barreiras que ainda impedem o livre trânsito na estrada do progresso”.
Mas o que é esse tal liberalismo, que, também sob ataques sistemáticos dos coletivistas que tomaram o poder no Brasil republicano – criando, inclusive, um Judas de Sábado de Aleluia que pudessem espancar sem dó, chamado neoliberalismo –, estava até há pouquíssimo tempo soterrado do debate público brasileiro?
De acordo com Lew Rockwell, fundador e presidente do Instituto Ludwig von Mises:
Nos séculos 18 e 19, o termo liberalismo geralmente se referia a uma filosofia de vida pública que afirmava o seguinte princípio: sociedades e todas as suas partes não necessitam de um controle central administrador porque as sociedades normalmente se administram através da interação voluntária de seus membros para seus benefícios mútuos. Hoje não podemos chamar de liberalismo essa filosofia porque esse termo foi apropriado por democratas totalitários. Em uma tentativa de recuperar essa filosofia ainda em nosso tempo, damos a ela um novo nome: liberalismo clássico. Liberalismo clássico significa uma sociedade na qual meu sonho é uma realidade. Não precisamos saber o nome do presidente. O resultado das eleições é altamente irrelevante porque a sociedade é regida por leis e não por homens. Não tememos o governo porque ele não nos tira nada, não nos dá nada, e nos deixa em paz para moldarmos nossas vidas, comunidades e futuros.
Rockwell se apressa em dizer que não se trata de um puro comportamento antigoverno, mas de desconfiança para com quem detém o poder. Que as pessoas deveriam ser livres para poderem conduzir suas vidas sem um dirigismo estatal. Tal princípio é totalmente contrário a qualquer tipo de dominação, pois o princípio de liberdade individual e do espírito de associação deve ser pautado na capacidade de cada indivíduo produzir e prosperar de acordo com os princípios da ação humana – para usar o termo de Ludwig von Mises, que é “a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida. Estas paráfrases podem esclarecer a definição dada e prevenir possíveis equívocos”. Tudo isso partindo do princípio que “o meio mais adequado de [o ser humano] melhorar sua condição é a cooperação social e a divisão do trabalho”. Ou seja, de acordo com as diretrizes liberais, até a moralidade está fundamentada no fato de que minha liberdade só pode existir, de fato, quando respeito a liberdade do outro, e juntos, em sociedade, buscamos melhorar nossa condição através de um sistema de trocas voluntárias.
É evidente que tais princípios entram em rota de colisão com a ideia de igualdade pregada por coletivistas, que sonham com uma sociedade artificialmente igualitária – uma vez que somos naturalmente desiguais e a liberdade, essencialmente, acarreta em algum nível desigualdade. No entanto, é necessário pensarmos em termos de princípios, não de experiências passadas nas quais tais princípios não existiam ou foram violados. Ou, ainda, pensarmos em como os proponentes de um sistema liberal viam as situações nas quais os princípios da liberdade foram violados. Jean-Baptiste Say e André Rebouças são dois exemplos já citados, mas há muitos outros.
Frédéric Bastiat, autor importantíssimo do pensamento liberal, eu sua obra máxima, A Lei, publicada em 1850, também se mostra frontalmente contra a escravidão. Bastiat inicia dizendo que a vida é um dom de Deus. E que: “Vida, faculdades, produção – e, em outros termos, individualidade, liberdade, propriedade – eis o homem. E, apesar da sagacidade dos líderes políticos, estes três dons de Deus precedem toda e qualquer legislação humana, e são superiores a ela. A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis”. A lei é a “organização coletiva do direito individual de legítima defesa”. No entanto:
Infelizmente, a lei nem sempre se mantém dentro de seus limites próprios. Às vezes os ultrapassa, com consequências pouco defensáveis e danosas. E o que aconteceu quando a aplicaram para destruir a justiça, que ela deveria salvaguardar. Limitou e destruiu direitos que, por missão, deveria respeitar. Colocou a força coletiva à disposição de inescrupulosos que desejavam, sem risco, explorar a pessoa, a liberdade e a propriedade alheia. Converteu a legítima defesa em crime para punir a legítima defesa. Como se deu esta perversão da lei? Quais foram suas consequências? A lei perverteu-se por influência de duas causas bem diferentes: a ambição estúpida e a falsa filantropia.
A correção de desvios não pode ocorrer por uma tentativa de promover uma igualdade fictícia
Desse modo, de acordo com Bastiat, “a escravidão é uma violação, pela lei, da liberdade”.
No entanto, a correção de tais desvios não pode ocorrer por uma tentativa de promover uma igualdade fictícia. O que devemos procurar é uma liberdade de direitos por meio das leis, e essa igualdade de direitos será suficiente para corrigir as desigualdades produzidas por regimes que violaram a liberdade individual, pois “é sob a lei da justiça, sob o reinado do direito, sob a influência da liberdade, da segurança, da estabilidade e da responsabilidade que cada pessoa haverá de atingir seu pleno valor e a verdadeira dignidade de seu ser. E somente sob a lei da justiça que a humanidade alcançará, lentamente, sem dúvida, mas de modo certo, o progresso, que é o seu destino”. E a palavra de ordem de Bastiat é:
Afastem-se, portanto, curandeiros e organizadores! Afastem seus anéis, suas correntes, suas agulhas e suas tenazes! Afastem seus meios artificiais! Afastem seu atelier social, seu falanstério, seu governamentalismo, sua centralização, suas tarifas, suas universidades, suas religiões de Estado, seus bancos gratuitos ou seus bancos monopolizados, suas compressões, suas restrições, sua moralização e sua legalização por meio do imposto! E, como foram infligidos em vão tantos sistemas ao corpo social, que se termine por onde se deveria ter começado: que rejeitemos os sistemas, que enfim a Liberdade seja posta em prova — a Liberdade, que é um ato de fé em Deus e em sua obra.
Alguns podem – e vão – objetar: mas como a liberdade pode vencer o racismo? Na próxima semana falaremos disso.