“A liberdade de escolha é a essência de toda responsabilidade.” (Frederick Douglass)
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Como podem perceber, o lema deste espaço é a Liberdade. Sim, pois para todo aquele cuja imaginação tenha se formado por um passado escravista que, indiretamente, o persegue por sua cor, a Liberdade é um direito radical, inegociável. Mais do que isso: qualquer país que tenha vivido mais da metade de sua história sob um regime que, nas palavras do patriarca José Bonifácio, foi “um cancro” a roer-lhe as entranhas – cerceando as liberdades individuais de uma parcela considerável da população e impedindo que a prosperidade e a justiça se fizessem presentes – deve amar e defender a Liberdade. Para lembrar o dito do reverendo Dr. Martin Luther King Jr.: “roubar a liberdade de um homem é tirar-lhe a essência de sua humanidade. Tirar-lhe a liberdade é roubar-lhe algo da imagem de Deus”.
Dois exemplos podem nos ajudar a compreender a dimensão do que estou falando. O primeiro pertence àquela que, em grande medida, formou a tradição ocidental: a Bíblia.
O Êxodo, segundo livro do chamado Pentateuco, os cinco livros da Lei – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio –, narra a história da libertação do povo de Israel da terra do Egito, onde fora escravizado por 400 anos. O livro aborda também todo o período de 40 anos em que, após a milagrosa libertação das mãos do faraó, mediante as pragas e a abertura do Mar Vermelho, o povo ainda caminhou pelo deserto; tempo no qual Deus transmitiu-lhes suas leis e mandamentos.
Mas é no Deuteronômio – nome grego que significa “segunda lei”, pois trata de uma repetição das leis recebidas num longo discurso de Moisés – que uma passagem, particularmente, nos chama a atenção. Ao reafirmar a transmissão dos mandamentos a Moisés, Deus diz:
Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! Tu as inculcarás aos teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andando em teu caminho, deitado e de pé. (…) Amanhã, quando o teu filho te perguntar: “Que são estes testemunhos e estatutos e normas que Iahweh nosso Deus vos ordenou?”, dirás ao teu filho: “Nós éramos escravos do Faraó no Egito, mas Iahweh nos fez sair do Egito com mão forte. Aos nossos olhos Iahweh realizou sinais e prodígios grandes e terríveis contra o Egito, contra o Faraó e toda a sua casa. Quanto a nós, porém, fez-nos sair de lá para nos introduzir e nos dar a terra que, sob juramento, havia prometido aos nossos pais.” (Deuteronômio 6, 6-7;20-23, tradução da Bíblia de Jerusalém)
A história da libertação do Egito é a grande narrativa do Antigo Testamento, pois trata da aliança de Deus com o povo e, em termos literários e imaginativos, cria o modelo exemplar (nas palavras de Eliade) das histórias de libertação no Ocidente.
Há uma peculiaridade importante em relação ao modo de transmissão dessa narrativa, uma preocupação, digamos, pedagógica: “Tu as inculcarás aos teus filhos”. A palavra “inculcar” significa “incutir”, “infundir no ânimo de”. Mas tal verbo não traduz com precisão a importância do ato. A palavra usada no hebraico significa, literalmente, “afiar”, como a uma lâmina mesmo. A imaginação moral das crianças deveria ser afiada com a história da libertação do cativeiro egípcio. E quando elas perguntassem o que eram todos aqueles “testemunhos, estatutos e normas”, os pais deveriam dizer: “Éramos escravos de faraó, no Egito, mas Iahweh nos fez sair…”. Ou seja, o apelo imaginativo extraordinário dessa passagem – que, aliás, é símbolo do batismo cristão, como diz o apóstolo Paulo aos Coríntios (1 Cor 10,2) – deveria criar a consciência do valor inegociável da liberdade. Esse testemunho guiaria as suas vidas, transformando-se no grande memorial da fidelidade de Deus. Inclusive, por várias vezes, para lembrá-los, Deus reafirma: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito”.
Trata-se de uma proposta de liberdade radical, baseada única e exclusivamente na aliança de Deus com o povo, uma aliança fundada na Fé. No entanto, não se tratava de uma liberdade anárquica, uma vez que o povo deveria seguir os preceitos estabelecidos por Deus com absoluta exclusividade; essa era a garantia da liberdade: amar, com amor filial e obediente, aquele por quem foram amados e libertos. Quando os israelitas se esqueceram da fidelidade prometida e pediram um rei, Deus os advertiu, ainda lembrando a libertação do cativeiro egípcio:
Atende [Samuel] a tudo o que te diz o povo, porque não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, porque não querem mais que eu reine sobre eles. Tudo o que têm feito comigo desde o dia em que os fiz subir do Egito até agora — abandonaram-me e seguiram outros deuses — assim fizeram contigo. Portanto, atende ao que eles pleiteiam. Mas, solenemente, lembra-lhes e explica-lhes o direito do rei que reinará sobre eles. (1 Sm 8,7-9, grifo meu)
Em seguida, o texto passa a descrever todas as consequências enfrentadas por quem decide abandonar a liberdade oferecida por Deus para seguir preceitos humanos e termina dizendo: “e vós mesmos vos tornareis seus escravos” (v. 17). Ou seja, trocar a certeza de uma aliança baseada na liberdade e na sabedoria divina pela submissão a um modelo estrangeiro e incerto – “estabelece sobre nós um rei (…) como acontece em todas as nações” (v. 5) – é traição, e seu preço é voltar à escravidão. Trocando em miúdos: abandonar a tradição em nome da novidade é um risco que se deve evitar, sob a pena de sermos escravizados por “deuses estranhos”, como escreveu Eliot.
Veja, caro leitor, minha análise não é teológica; trata-se de uma leitura quase literal de um dos mais importantes aspectos imaginativos que formaram o Ocidente, a Liberdade, e que está contido na Bíblia. Como bem diz Northrop Frye em O Código dos Códigos (p. 18): “A Bíblia certamente é um elemento da maior grandeza em nossa tradição imaginativa, seja lá o que pensemos acreditar a seu respeito”.
Alguns podem objetar: “mas e a escravidão colonial, criada e sustentada por cristãos?”
A imoralidade da escravidão colonial sempre foi vista por seus críticos como um pecado. Apesar das críticas à Igreja Católica por sua leniência – no Brasil, Joaquim Nabuco, por exemplo, falou duramente contra a Igreja em O Abolicionismo –, não foram poucos os padres e papas que se manifestaram frontalmente contra a escravidão. Todavia, querer compreender uma instituição complexa, ainda que desumana, por meio de reducionismos ou arroubos de humanismo moderno não é tão simples. Ainda assim, no imaginário do escravizado moderno, cristianizado, não é incomum a associação com o povo de Israel. E, nesse ponto, os negros americanos são o maior e melhor exemplo.
Mesmo tendo sido escravizados por cristãos (protestantes, nesse caso), tomaram para si a história bíblica do cativeiro egípcio e assumiram o papel de um Novo Israel. A religiosidade do negro americano é caracterizada por uma fé inabalável na libertação vinda de Deus. Sua teologia e seus hinos – os negro spirituals – são marcados por essa metáfora da liberdade. O hino Go Down Moses (“Desça, Moisés”) é um clássico representante dessa ligação. Harriet Tubman, a heroica ex-escrava e abolicionista que libertou centenas de escravos – e que, inclusive, liderou uma expedição militar armada na Guerra de Secessão –, foi apelidada de “Moisés Negra” pelo pastor e abolicionista – branco – William Lloyd Garrison. Dizem até que o hino está associado às suas incursões de salvamento, pois ela avisava de sua aproximação cantando Go Down, Moses.
Outro grande personagem da história americana, o abolicionista e escritor Frederick Douglass, um ex-escravo fugitivo que se tornou um requisitado orador – chegando a aconselhar o presidente Abraham Lincoln durante a Guerra de Secessão – e que é considerado o pai do movimento dos diretos civis, disse, em uma de suas várias autobiografias, que, após ouvir as pregações de William Lloyd Garrison, pensou dele: “Você é o homem, o Moisés ressuscitado por Deus para libertar seu Israel moderno da escravidão”. A metáfora do Êxodo aparece várias vezes nos escritos de Douglass. E é dele que tiro meu segundo exemplo da importância da Liberdade.
Douglass nasceu escravo, em 1818, e viveu como tal até 1838, quando fugiu para Nova York. Aos 8 anos foi enviado para trabalhar para uma família em Baltimore, e lá se daria uma grande virada em sua vida. Na casa da família Auld, sua atividade era cuidar do filho do casal, Thomas. Sua nova senhora, de início, era bastante terna e atenciosa para com ele; e ao vê-la e ouvi-la lendo a Bíblia, o pequeno Douglass foi tomado pela “curiosidade a respeito do mistério da leitura” e teve vontade de aprender a ler. Perguntou se ela poderia ensiná-lo, e esta aceitou.
Impressionada com o rápido progresso de seu pupilo, a senhora Auld, que era uma boa cristã, contou ao marido, entusiasmada, sua intenção de perseverar em ensiná-lo a ler pelo menos a Bíblia. Mas Hugh Auld não recebeu a notícia com o mesmo entusiasmo da esposa; na verdade, como diz Douglass, foi como se uma nuvem descesse sobre Baltimore naquele instante, cobrindo suas perspectivas. O sr. Auld, então, “revelou a ela a verdadeira filosofia da escravidão, e as regras peculiares que haviam de ser observadas, por senhores e senhoras, na gestão de seus bens humanos”. Disse ele: “Se você ensinar esse negro a ler a Bíblia, não haverá como mantê-lo sob seu domínio (…) Se ensiná-lo a ler, ele quererá saber como escrever; e, aprendendo, fugirá”.
Ao ouvir aquelas palavras, que nem tinham sido dirigidas a ele, algo ocorreu no interior de Frederick Douglass: “O efeito de suas palavras em mim não foi leve nem transitório; suas frases de ferro – frias e ásperas – mergulharam profundamente em meu coração e despertaram não só meus sentimentos para uma espécie de rebelião, mas um trem adormecido de pensamento vital. ‘Muito bem’ – pensei – ‘o conhecimento torna uma criança inapta para a escravidão’. Instintivamente, assenti à proposição; e, a partir desse momento, entendi o caminho direto da escravidão para a liberdade”.
A Liberdade pelo conhecimento. Aprender a ler foi, para Frederick Douglass, a libertação da escravidão. Ou seja, uma mente turbinada pela inteligência, pelo conhecimento, ainda que tenha o corpo cativo, é livre. Então, apesar de sua senhora mudar completamente com ele e passar a vigiá-lo o tempo todo, para que não se aproximasse de nenhum livro, o garoto Douglass foi buscando oportunidades para aprender a ler – em geral, com garotos brancos pobres que conhecia. E, aprendendo, tomou contato com os textos abolicionistas do livro de ensaios The Columbian Orator – que ele comprava com os trocados que ganhava engraxando sapatos. Nele, informou-se sobre os movimentos abolicionistas, ouviu falar dos Estados Livres e leu, pela primeira vez, a palavra “abolição”. A libertação do corpo foi só uma questão de tempo e oportunidade.
Frederick Douglass – que, vale dizer, era conservador e filiado a Partido Republicano – foi um agente da liberdade. Para ele, a ignorância é uma “virtude” que mantém o homem escravizado. Por outro lado, o conhecimento não deve ser um ente abstrato, meramente livresco, mas um compromisso com a própria história e com a realidade, pois, como diz a epígrafe deste artigo, “a liberdade de escolha é a essência de toda responsabilidade”. E só há responsabilidade diante de demandas reais e da prudência e da coragem para enfrentá-las.
Diante desses dois exemplos, reafirmo: a Liberdade é um bem inestimável, um direito radical que deve ser preservado – em pensamento e ações – não importando as circunstâncias. E a melhor maneira de garantir essa liberdade é o respeito àquilo que T. S. Eliot chamou de Coisas Permanentes, consagradas pelo uso – ou seja, a Tradição. Nem mesmo a justiça pode ser confundida com a vingança; pois, enquanto esta é emotiva e inconsequente, aquela é realizada com prudência e sabedoria. Por isso, não repitamos os erros do passado, entregando nossa liberdade a ideologias utópicas, muito menos ao deus máximo da modernidade, o Estado.
Sigamos, pois, livres!
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