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“I've been wonderin’ why / People livin’ in fear / Of my shade / (Or my hi top fade) / I’m not the one that's runnin’ / But they got me one the run / Treat me like I have a gun / All I got is genes and chromosomes / Consider me Black to the bone.” (Public Enemy, Fear of a black planet)
O leitor que me acompanha nas redes sociais deve ter visto a agitação causada por uma postagem minha, por ocasião do Dia da Consciência Negra, em que recomendei, no texto da legenda, que trocássemos o famigerado vídeo do Morgan Freeman que as pessoas “de direita” costumam espalhar pelas redes nessa data por um pequeno vídeo com o trecho de uma entrevista de ninguém menos que Malcolm X – visto por muitos, erroneamente, como um sujeito violento e separatista. Digo isso porque o vídeo de Freeman, sem qualquer contextualização, passa uma ideia de que o racismo pode ser vencido pela inércia, o que é um erro grosseiro – ainda mais num país como o Brasil. Explico rapidamente: o fato de Morgan Freeman dizer que rejeita o Black History Month não significa que ele acredite que o racismo não exista, mas que a desracialização da sociedade é um melhor caminho que sua racialização por meio de datas que reforcem a diferença entre negros e brancos.
Entretanto, a superação do errôneo conceito de raças é um processo que não pode ser vencido enquanto o racismo ainda opera de modo tão profundo na sociedade. Como sempre digo, trata-se de um processo que exige a mudança da imaginação moral dos brasileiros, negros e brancos. E ser negro em países onde a escravidão negra vicejou por tanto tempo é diferente de não sê-lo – pelo menos por enquanto, pois, em termos históricos, é tudo ainda muito recente. Por isso julgo que um dia de reflexão sobre os males do racismo e a busca de caminhos para sua superação ainda é algo importante, embora já tenha escrito um texto, há dez anos, fazendo críticas ao modo como a data é organizada e o tipo de discussão que é promovida. Ainda assim mantenho minhas críticas, mas gravei um vídeo mais recentemente, e escrevi um artigo aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, explicando por que, pelo menos por enquanto, não é possível falar simplesmente em consciência humana. E mais: exaltar, como faço diuturnamente nesta coluna, o legado positivo dos negros para a sociedade ainda é uma necessidade fundamental nesse sentido, pois, por muito tempo, a história do negro, na educação e na cultura, fora relegada à escravidão.
A superação do errôneo conceito de raças é um processo que não pode ser vencido enquanto o racismo ainda opera de modo tão profundo na sociedade. Trata-se de um processo que exige a mudança da imaginação moral dos brasileiros, negros e brancos
Voltando ao vídeo de Malcolm X e à celeuma atual, minha proposta de substituição dos vídeos foi, evidentemente, uma provocação – à esquerda e à direita –, pois trata-se do trecho em que ele acusa os líderes negros de sua época (e ele pensava específica, embora erroneamente, em Martin Luther King Jr.) de serem não só financiados, mas controlados por progressistas brancos, que os faziam de “fantoches”. Malcolm diz: “Você não consegue citar um líder negro que tenha traído os negros sem que tenha sido endossado, aprovado, subsidiado ou apoiado por progressistas brancos”. Na legenda de minha postagem, complementei:
“O radicalismo de Malcolm X deve ser ponderado pelas circunstâncias, mas é curioso que ele enxergasse as coisas dessa forma naquela época, pois faz uma crítica em sentido inverso ao que se costuma criticar hoje: a de que negros que não são de esquerda fazem o que os brancos (racistas, nesse caso) querem. Aqui ele acusa os negros de serem marionetes da esquerda. José Correia Leite, um dos maiores ativistas negros que esse país já teve – ele mesmo de esquerda –, disse algo parecido, que os negros estão dispersos nos partidos dos brancos, lutando a luta do branco e perdendo o espírito de união que os faria avançar em conjunto, como um ʻpovoʼ. Judeus prosperam em união, orientais também. Essa discussão é, portanto, legítima.”
Pois bem, atento leitor. Ao lerem isso, algumas pessoas – curiosamente, não negras, se é que me entende –, objetaram, pois julgam perigosa a defesa de uma união dos negros como um povo. Em nome de um suposto antagonismo absoluto entre Malcolm X e Martin Luther King – o que também é um erro grosseiro –, algumas pessoas evocaram o nome do glorioso pastor batista para dizer, por exemplo: “Claro que, infelizmente, ainda existe racismo. Sempre existirá (como todo mal). Temos de combatê-lo. Mas temos de ter a preocupação de não banalizá-lo e não torná-lo um instrumento de ruptura e ódio entre raças. Bem ou mal, MLK, ao pregar a união entre as raças, falava de nos preocuparmos em ver a pessoa independentemente da cor sem violência.” Bem, primeiro que Malcolm X não está banalizando o racismo, muito pelo contrário. Segundo, que MLK não falava em “ver a pessoa independentemente da cor e sem violência”. E apenas sonhava com isso. E ao dizer – no mesmo discurso em que dizia ter um sonho de que brancos e negros fossem unidos –, por exemplo, que “não haverá descanso nem tranquilidade na América até que se conceda ao negro a sua cidadania. As tempestades da revolta continuarão a balançar os alicerces da nossa nação, até que floresça a luminosa manhã da justiça”, ele estava sendo radicalíssimo!
Mas tudo piorou quando outra pessoa disse: “Mas criar um time de negros para benefícios comuns dentro da sociedade, contra os brancos, seria a solução? Esse argumento é até empiricamente errado, pois entre os negros (assim como brancos e orientais) há povos diferentes, com vontades e culturas diferentes, você vai conseguir unir a todos? Não concordo com essa abordagem de lutas de classes, Marx pra mim é um erro. Minha opinião. […] Eu acredito no objetivo comum, no pertencimento. Não é fácil. Pode ser sonho meu. Mas foi o que deu resultados. Vide os EUA”. Vamos lá: óbvio que nas redes sociais temos de contar com o volume gigantesco de opiniões escabrosas que as pessoas dão com um ar de sofisticação intelectual. Mas alguns exageram. Primeiro, porque eu não disse negros contra brancos. Segundo, que não importa se no Brasil temos uma maioria mestiça que muito dificilmente se encaixaria no conceito fenotípico de negro. Terceiro, que não há nisso, absolutamente, nada de luta de classes. Isso é o mais puro liberalismo.
Se o capitalismo é um sistema de trocas voluntárias e o liberalismo é a soma, como dizia o sábio André Rebouças, da inciativa individual e do espírito de associação, unir-me a outras pessoas que enfrentam as mesmas adversidades que eu, numa sociedade que nos subalterniza, é a melhor maneira de buscar a ascensão socioeconômica em conjunto. Para espanto do confuso comentarista, foi exatamente o que os negros americanos fizeram – não sem ajuda de pessoas brancas, sobretudo da comunidade judaica. Não há nada de luta de classes, nada de marxismo, só o bom e liberal espírito de associação. E mais: essa é uma perspectiva de união não excludente nem exclusiva, mas ideal. Um ideal, inclusive, menos econômico que imaginativo. Se há um imaginário que os mais de 300 anos de escravidão e mais de 100 de doutrinas eugenistas – inclusive como política de Estado no Brasil – forjaram, fortalecer um imaginário diverso é uma tarefa de todos.
Mas a coisa ficou ainda mais espantosa quando um dos meus interlocutores – sim, respondi vários comentários com o intuito de ser, digamos, pedagógico – disse: “não seria melhor a gente falar de igualdade social e prosperidade para todos independentemente de raça e cor de pele? Não seria melhor nos unirmos em torno de um ideal comum de igualdade, prosperidade e justiça?”, esquecendo-se de que a igualdade de fato, no Brasil, é uma fantasia. Lembrando novamente Tobias Barreto, citado por mim no artigo da semana passada, a igualdade é uma consequência da liberdade, um produto da liberdade. O Brasil está na posição 133 no índice de liberdade econômica da Heritage Foudation, ou seja, está entre os países menos livres. E, se não existe a possibilidade de espírito de associação, não existe liberdade. Não somos iguais porque não somos livres; não somos livres porque a vida de milhões de pessoas não se encaixa num discurso de igualdade abstrato. E o outro disse: “Minhas experiências e ideias têm o mesmo valor, a princípio, que qualquer uma. Como liberal de direita eu acredito nisso”.
Como uma pessoa que se diz “liberal de direita” consegue satisfazer-se com sua liberdade num país eivado de miseráveis?
A esse respeito, caríssimo leitor, gostaria de abrir um flanco de discussão aqui que pretendo aprofundar em outra ocasião. Como uma pessoa que se diz “liberal de direita” consegue satisfazer-se com sua liberdade num país eivado de miseráveis? Creio que eu saiba a resposta. Meu interlocutor baseia seu conceito de liberdade dos livros que leu e sente que, para sua vida confortável, aquilo soa como música. O liberalismo brasileiro do século 21 é basicamente formado por ricos que leram os autores da Escola Austríaca e querem pagar menos impostos. Por isso, para eles, não importa que o país tenha uma quantidade absurda de pessoas cuja pobreza e mesmo o Estado não lhes permita a iniciativa individual e o espírito de associação. São pessoas que vivem na Áustria de Mises mesmo estando num país em que mais de 17 milhões de pessoas moram em favelas e onde a miséria está sempre à porta.
Na verdade, o liberalismo brasileiro não deveria ter como fundamento uma transferência exata dos conceitos desenvolvidos na Europa do século 20 (ou 18, no caso de Adam Smith), mas uma adaptação à nossa realidade. Foi o que fez aquele que deveria ser o nosso modelo de pensamento liberal, o movimento abolicionista. O abolicionismo brasileiro foi um movimento liberal, fomentado e teorizado por liberais que leram os autores europeus e fizeram a interpretação necessária para um contexto de pobreza e escravidão. Para um liberal de direita como Joaquim Nabuco, sua liberdade individual não bastava: o país precisava ser livre e, mais do que isso, deveria trabalhar para superar o legado da escravidão. Disse ele, em O Abolicionismo:
“Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regime só daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos.”
O liberal de direita José Bonifácio de Andrada e Silva, em sua Representação à Assembleia Geral Constituinte e legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, de 1825, dirá: “Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume e a voz da cobiça que veem homens correr lágrimas de outros homens sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e de ternura. Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade”. Ou, em outra ocasião: “Que valem títulos, dignidade e honras dados sem justiça, e como paga da escravidão e dos vícios?”
E o liberal de direita José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, dirá, em seu Da liberdade do trabalho: “É portanto essencial à riqueza do Estado que se deixe a cada um pleno arbítrio, não só na escolha da sua profissão, e modo de vida, dirigido unicamente pela ordinária prudência, e afeto dos pais, senão também na mudança de umas para outras ocupações, que tiverem entre si afinidade e analogia, segundo as circunstâncias; removendo-se por este modo a obstrução do trabalho e indústria, que retém em muitos países grande número de indivíduos na miséria, com desonrada humanidade, e imensa diminuição da pública opulência, e felicidade social”. Ou, ainda, o maior dos liberais brasileiros, o já citado Rebouças, que, no seu projeto para o pós-abolição defendia a realização de uma – pasme, caro liberal – reforma agrária e, dentre outras coisa, que se promovesse, por exemplo, “a descentralização governamental, reduzindo o governo imperial aos indispensáveis serviços públicos de justiça, segurança interna e externa, dívida nacional e relações internacionais; e a liberdade de comércio e a abolição de todos os direitos protecionistas à liberdade de indústria, à liberdade bancária, à liberdade de trabalho mental”. Tudo isso com os grandes latifundiários arrendando parte de suas terras aos ex-escravos para a consolidação de uma produção em escala. Tudo isso fundamentado em autores clássicos do liberalismo como Adam Smith, Frédéric Bastiat e Jean-Baptiste Say.
Por isso defendo que o modelo de liberalismo brasileiro seja baseado não diretamente nos autores europeus, mas na grande tradição liberal brasileira do séc. 19, atentando para nossa realidade e para os nossos problemas, que são enormes – tão enormes quanto nosso país. Escapar e combater o discurso revolucionário exige que finquemos os pés na realidade e saibamos adaptar os conceitos às nuances que a situação concreta exige. Lembremos que Adam Smith escreveu primeiro a Teoria dos sentimentos morais – na qual afirma, logo de início, que “por mais egoísta que se supõe o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo” –, para só depois escrever A riqueza das nações. Compreendendo isso, sairemos da lógica nefasta do liberdade para mim, miséria para você.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos