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“Quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as piores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo a legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos, dos considerados ʻhomens de bemʼ.” (Sílvio Almeida, Racismo Estrutural)
Num mundo em que a polarização absoluta é a regra, em que o maniqueísmo político predomina, muitos se veem obrigados a abrir mão da coerência em nome da defesa inflexível de suas posições. Também são forçados a rotular e encaixotar todos aqueles que não se encaixam em suas obtusas perspectivas. O adágio popular – já atribuído a Cícero, Maquiavel e até Getúlio Vargas – “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” se concretiza todas as vezes em que tais pessoas são colocadas diante das normalíssimas contradições humanas. No mundo de um maniqueísta político não há nuances, é um mundo em preto e branco.
O debate social nos últimos anos ganhou tais contornos quando a terminologia estrutural passou a ser aplicada não como uma interpretação da realidade, mas como a realidade em si mesma: as desigualdades e as discriminações não são oriundas das circunstâncias a que fomos e somos submetidos a todo momento, mas por conta das estruturas abstratas – jurídicas, políticas, econômicas e sociais – que não só reproduzem, mas normalizam tais condições mesmo sem a ação direta e consciente dos indivíduos. Problemas reais como machismo, homofobia e racismo, por exemplo, ganharam o adjetivo estrutural, pois seriam problemas que ultrapassam a dimensão individual e institucional. Como diz o advogado e atual ministro de Direitos Humanos, Sílvio Almeida, em seu livro citado em epígrafe:
“As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista. […] Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ʻnormalʼ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre ʻpelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradiçãoʼ.” (grifo meu)
Mesmo que o racismo no Brasil seja crime, racismo estrutural só é classificado desse modo de acordo com a conveniência
Ou seja, o que Almeida está dizendo é que o racismo se processa na sociedade não só por uma ação individual, mas pelo próprio funcionamento normal das estruturas, penetradas pelo racismo de tal forma que é, pelo menos do modo como a sociedade é organizada hoje, impossível escapar dele. Todos reproduzimos, em maior ou menor grau, o racismo de acordo com o padrão da normalidade social vigente.
Óbvio que as implicações de tal perspectiva são, para dizer o mínimo, complicadíssimas, e dois exemplos, já tratados por mim nesta Gazeta do Povo, podem nos ajudar a compreender o que quero enfatizar. O primeiro é o terrível assassinato de João Alberto Freitas ocorrido numa loja da rede Carrefour, em Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020. Ao caso foram atribuídas motivações raciais, mesmo na ausência de verbalizações ou demonstrações explicitamente racistas dos agentes em sua ação criminosa. A delegada do caso enquadrou a motivação do assassinato e o argumento para a prisão preventiva dos acusados como racismo estrutural: “Aqui, ingressamos em um tema muito debatido durante todo esse período, que foi o racismo estrutural, que diz que esses atos estão arraigados na sociedade. Sílvio Almeida refere muito bem isso: a sociedade naturaliza esse tipo de violência contra as pessoas negras”. Em artigo sobre o caso, eu disse:
“João Alberto de Freitas [...], para a imprensa brasileira, perdeu a sua humanidade e foi transformado no homem negro. O Carrefour, diante da impessoalidade das acusações de racismo, se transformou numa empresa racista, mesmo tendo em seu quadro de funcionários, segundo seu vice-presidente de Recursos Humanos, 57% de funcionários negros e mais de um terço de gestores negros, e de ter criado, ainda em 2013, um Comitê de Diversidade, e ter encabeçado, em 2015 – a partir da fundação do Instituto Carrefour e da realização de um fórum de discussão sobre diversidade e inclusão –, a criação da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, com investimento de dezenas de milhões de reais, da qual foi suspensa após o horripilante evento da última quinta.”
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Não há elementos objetivos que permitam enquadrar o caso como tendo motivações racistas, mas a teoria de Sílvio Almeida permite que isso seja feito sem constrangimentos ou mesmo medo de sofrer acusação de falsa imputação de crime, uma vez que o racismo é cometido em abstrato, independente da consciência do indivíduo no ato.
O outro caso é o do jornalista Rodrigo Bocardi, da Rede Globo, ao perguntar a um jovem negro com a camisa do Clube Pinheiros – tradicional clube de São Paulo, frequentado pela elite –, que estava sendo entrevistado por Tiago Scheuer na plataforma de uma estação de trem, se ele era “catador de bolinhas” no clube. O rapaz respondeu: “Não, não. Eu sou atleta lá do Pinheiros, jogo polo aquático”. Bocardi também foi acusado de racista com base na mesma teoria, mesmo tendo se defendido, dizendo: “frequento [o clube] todos os dias e jogo e rebato bola com todos aqueles garotos que usam a camiseta daquela forma e por isso achei que era [gandula]”. Não foi perdoado. Há outros casos e é cada vez mais comum que pessoas sejam não só acusadas de racismo, mas que se assumam racistas – como a chef de cozinha Paola Carosella, em caso também abordado por mim; o humorista Fábio Porchat e outras celebridades – sem, com isso, serem denunciadas por seus supostos crimes. Ou seja, mesmo que o racismo no Brasil seja crime, racismo estrutural só é classificado desse modo de acordo com a conveniência.
Agora vamos ao caso de nosso atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que em recente visita a Cabo Verde (África), disse: “Quero recuperar a relação com o continente africano porque nós, brasileiros, somos formados pelo povo africano. Nossa cultura, cor e tamanho é resultado da miscigenação entre índios, negros e europeus. Temos profunda gratidão ao continente africano por tudo que foi produzido durante 350 anos de escravidão em nosso país” (grifo meu). Muitas pessoas, nas redes sociais, classificaram a afirmação de Lula como racista (não se agradece por algo que foi construído debaixo de tanto sofrimento), mas, como apontou esta Gazeta do Povo, entidades do movimento negro, políticos e ministros silenciaram sobre o caso. Com exceção de – pasme, caro leitor! – Sílvio Almeida, que saiu em defesa de Lula por meio de uma interpretação descabida do que disse o presidente. Almeida afirmou:
“O que o presidente Lula disse foi: ‘o Brasil tem uma dívida com a África e ela tem que ser paga’. E por isso, o presidente tem insistido – e já falei com ele sobre isso – é que a agenda de direitos humanos com a África envolve o chamado direito ao desenvolvimento.”
Se tivermos de desculpar Lula, teremos também de desculpar todos aqueles que foram enquadrados na categoria de racistas estruturais, pois o racismo estrutural simplesmente não existe. Uma estrutura não desaparece ao gosto de seu intérprete
Agora, pense comigo, caro leitor: Almeida faria essa interpretação se a frase tivesse sido dita por um de seus desafetos políticos? Acredito que não. Não há qualquer menção de Lula à dívida histórica para com a África. Há agradecimento, há gratidão pelo que foi produzido durante a escravidão. Vejamos: os açoites foram produzidos pela escravidão; o sequestro, o tráfico e a morte de milhões de africanos foram produzidos pela escravidão; o racismo foi reproduzido pela escravidão; a exploração e evasão de bens naturais foram produzidos pela escravidão. Lula está agradecendo a isso também?
O ato falho de Lula é também é fruto do racismo estrutural? De acordo com os argumentos do próprio ministro de Direitos Humanos, sim, pois “o racismo é parte de um processo social que ocorre ʻpelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradiçãoʼ”. Mas, se tivermos de desculpar Lula, teremos também de desculpar todos aqueles que foram enquadrados na categoria de racistas estruturais, pois o racismo estrutural simplesmente não existe. Uma estrutura não desaparece ao gosto de seu intérprete. Se aqueles que se deixaram contaminar pela paixão política perderam totalmente a coerência e a honestidade (e a lógica), eu não perdi.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos