“Imaginemos, então, que a maior de todas as lutas nos fosse proposta, e que seria preciso preparar-nos com todo o cuidado que somos capazes de ter: ocuparmo-nos da leitura dos poetas, dos oradores, de todos os escritores que podem nos servir para aperfeiçoar nossa alma. Se quisermos imprimir em nós a ideia de beleza com força suficiente para que seja indelével, devemos nos iniciar nas letras profanas, antes de se empenhar no estudo das coisas sagradas.” (Basílio de Cesareia, Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã)
Recentemente um amigo foi a Buenos Aires e me falou sobre a quantidade de livrarias espalhadas pela cidade. Disse ele que mais impressionante ainda é vê-las todas movimentadas, com pessoas lendo e comprando livros – os mais variados livros. A fama de grandes leitores que os argentinos carregam é conhecida por todos, e pode ser confirmada pela afirmação da curadora da Feira de Livros de Buenos Aires, Carla Quevedo, que disse ao site português Renascença: “Há uma espécie de alegria estrutural, de viver, talvez por não saber o dia de amanhã, vivem intensamente o dia. O dia de amanhã já vai trazer outras novidades, isto aqui é muito rápido. Compram os livros, vão ler, porque amanhã, se calhar, o dinheiro vai valer muito menos ou mesmo metade”.
Tal afirmação se torna ainda mais impressionante quando contrastada com a situação do Brasil, na qual, segundo pesquisa recente, a Panorama do Consumo de Livros, 84% dos brasileiros não compraram nem um livro sequer em 2023. Óbvio que afirmar que as pessoas não compram livros não significa dizer que elas não leem; mas sabemos que o número de leitores no país é baixíssimo – em torno de 16%, segundo a mesma pesquisa. Somos, por inúmeras razões, um país que não lê. Semana passada eu mesmo estive na – funcional, mas um tanto “fria”, sem expressão – Biblioteca de São Paulo, e é nítido que as pessoas não frequentam aquele espaço para consumir literatura; elas vão para acessar a internet e para se entreter com outros objetos e atividades que lá ocorrem.
Somos, por inúmeras razões, um país que não lê
Mas não foi nem a conversa com meu amigo turista, nem minha recente visita à biblioteca o que me motivou a escrever esse artigo. Na verdade, foi a releitura de um sermão sobre educação, escrito em 1530 pelo reformador Martinho Lutero (ao leitor católico peço que, por um momento, suspenda o seu juízo a respeito o pai da Reforma Protestante). Lutero expõe nesse sermão dois problemas advindos de seu rompimento com o clero católico romano e da inauguração de uma nova vertente do cristianismo: o primeiro é que, com a ascensão do protestantismo, as escolas, antes frequentadas basicamente por aspirantes ao sacerdócio, começam a esvaziar e o interesse pela educação formal começa a diminuir. O segundo é que, com o acesso ao texto bíblico em sua língua (aliás, unificada pela tradução de Lutero), o cidadão comum não só poderia ler a Bíblia, mas, fatalmente, se arriscaria a interpretá-la – problema gigantesco que, infelizmente, nós, protestantes, enfrentamos desde então.
Tais problemas levaram Lutero a escrever dois sermões, “Aos Conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas cristãs”, de 1524; e o já mencionado “Uma prédica para que se mandem os filhos à escola”, de 1530. E nesses textos encontramos verdadeiras pérolas em defesa não só da educação, mas da arte, da literatura, da espiritualidade saudável e da teologia séria e comprometida com os valores fundamentais do Evangelho. Os dois são importantíssimos, mas concentrar-me-ei apenas no segundo, pois julgo que nele é que estão as questões que mais nos interessam quando falamos sobre a nossa falta de leitores e os efeitos nefastos dessa situação.
Ele inicia indo direto ao ponto: “Vejo que as pessoas simples estão alheias à manutenção das escolas e que mantêm seus filhos totalmente afastados do estudo, dedicando-se exclusivamente à alimentação e ao cuidado com o estômago. Ademais, não querem ou não podem avaliar que coisa horrível e acristã estão cometendo com isso e que grande prejuízo assassino provocam no mundo inteiro a favor do diabo”. Para ele, a educação era fundamental não só para preservar uma sociedade educada, mas para manter o texto bíblico vivo através de uma interpretação correta. Ele adverte diretamente aos pais que não querem enviar os filhos à escola, dizendo que “Deus não deu os filhos e seu sustento somente para teu prazer ou para educá-los para a pompa do mundo. Exige-se de ti seriamente que os eduques para o serviço de Deus, ou então serás erradicado com filhos e tudo, de modo que seja condenável tudo o que investes neles, como diz o primeiro mandamento: ‘Visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam” [Êx 20,5]”.
A preservação do Evangelho e da boa interpretação do texto bíblico se daria, de acordo com Lutero, por meio do “ministério da pregação”, que deveria ser exercido por jovens educados e instruídos para esse fim. Ele afirma:
“Esses meninos capazes deveriam ser encaminhados ao estudo, especialmente os filhos da gente pobre, pois para essa finalidade foram instituídas as prebendas e tributos de todas as fundações e conventos. Naturalmente também os outros meninos deveriam aprender ao menos a entender o latim, a escrever e ler, mesmo que não fossem tão capazes; pois não precisamos somente de eruditos doutores e mestres na Escritura; também precisamos de pastores comuns, que preguem o Evangelho e o catecismo ao povo jovem e rústico, que batizem e administrem o Sacramento etc. Não importa que não se prestem para a luta contra os hereges. Para uma boa edificação não se necessitam somente silhares, mas também pedras de enchimento. Assim também se precisa de sacristãos e outras pessoas que apoiem o ministério da pregação da palavra de Deus.”
Esse é só um exemplo da preocupação do reformador com a preservação da boa hermenêutica bíblica. E mais: na prédica anterior, ele já havia afirmado que “não conseguiremos preservar o Evangelho corretamente sem as línguas [...]. E, como o mostra o próprio Evangelho, são os balaios nos quais se guardam esses pães e essas sobras. Sim, se o desprezarmos – Deus nos guarde disso! – a ponto de esquecermos as línguas, não perderemos apenas o Evangelho, mas chegaremos ao ponto de não mais falarmos ou escrevermos direito nem o latim nem o alemão”. Ou seja, a educação não serviria somente para a manutenção da fé, mas para a preservação da cultura.
Em seguida, Lutero diz, que se o “o ministério da pregação (onde ele existe como Deus o ordenou) acarreta e proporciona justiça eterna, paz eterna e vida eterna”, “o regime secular [...] mantém paz, justiça e vida temporal e passageira”. E arremata: “Se [o regime secular] não existisse, ninguém poderia subsistir diante do outro. As pessoas se devorariam entre si como fazem os animais irracionais. Por isso, assim como é função e honra do ministério da pregação transformar pecadores em verdadeiros santos, mortos em vivos, condenados em bem-aventurados, servidores do diabo em filhos de Deus, do mesmo modo é obra e honra do regime secular fazer de animais selvagens seres humanos e preservá-los como seres humanos, para que não se tornem animais selvagens”. Eis a função social e cidadã da educação.
O esforço de Lutero não é somente com as questões propriamente teológicas que a educação poderia resolver, mas com a preservação da cultura e da própria sociedade pelo enaltecimento de sua arte e de sua literatura
Lutero ainda fala do conhecimento do Direito para a preservação das leis, pois assim como “no reino de Cristo, um teólogo piedoso e um pregador honesto é chamado de anjo de Deus, salvador, profeta, sacerdote, servidor e mestre [...], também se pode, no reino secular do imperador, perfeitamente chamar um jurista piedoso e um erudito honesto de profeta, sacerdote, anjo e salvador”, e insiste para que todas as profissões sejam honradas e respeitadas.
Após uma advertência a respeito de profissionais que se consideram mais importantes que outros – os “juristas e escrivãezinhos que se enaltecem tanto que chegam a desprezar e ridicularizar outras profissões, como se fossem as únicas pessoas capazes no mundo” –, afirma que “devemos enaltecer todas as categorias e obras de Deus ao máximo, e jamais desprezar uma delas por causa da outra, pois está escrito: ʻConfessio et magnificentia opus eiusʼ – ʻO que Deus faz é belo e bem-feitoʼ [Sl 111,3]”, e pede que pregadores e professores ensinem as pessoas a não desprezarem nenhuma profissão, que “honrem todos os ofícios e os admirem. Isso agrada a Deus e serve à paz e à unidade. Pois Deus é um grande senhor e mantém toda sorte de serviçais”. E, em seguida, nos surpreende ao dizer:
“No entanto, existem certos fanfarrões que consideram o nome de ‘escritor’ quase indigno de ser pronunciado ou ouvido. Não te importes com isso. Pensa assim: esses bons companheiros também precisam de algo com que se divertir e alegrar. Deixa que se divirtam. Tu, porém, continues sendo um escritor perante Deus e o mundo. Por mais que cavaqueiem, podes observar que, não obstante, estimam a pena ao extremo; colocam-na em seus chapéus e elmos, como se assim quisessem reconhecer concretamente que a pena é o máximo do mundo, sem a qual não estariam armados para a luta, nem a viver em tempos de paz; muito menos fanfarronar com tanta segurança. Pois também eles se valem da paz que os pregadores e mestres (os juristas) do imperador ensinam e mantém. Vês, portanto, que colocam nosso instrumento de trabalho, a amada pena, no lugar de maior destaque (como convém), enquanto cingem o instrumento de seu próprio ofício na cintura; ali ele fica no lugar devido e apropriado para seu ofício. Ele não ficaria bem na cabeça; lá tem que flutuar a pena. Se pecaram contra ti, pois bem, esta é tua penitência; deves perdoar-lhes.”
Diz que o ofício de escritor é não só “obra divina”, mas “necessário e útil para o mundo”, e complementa sua defesa enfaticamente, dizendo:
“Há os que pensam que o ofício de escritor é simples e fácil. Mas montar armado, suportar calor, frio, pó, sede e outros incômodos, isso, sim, seria um trabalho de verdade. Pois é. Esta é a velha e conhecida cantilena diária: ninguém vê onde aperta o sapato do outro. Cada qual sente apenas seu próprio infortúnio e cobiça a fortuna do outro. Sem dúvida, eu teria dificuldades se tivesse que montar armado. Por outro lado, gostaria de ver o cavaleiro capaz de ficar sentado quieto o dia inteiro com os olhos fixos num livro, mesmo que não precisasse preocupar-se com nada, nem imaginar, pensar ou ler qualquer coisa. Pergunta a um secretário de chancelaria, a um pregador ou orador o quanto é trabalhoso escrever e discursar; pergunta a um professor o quanto é penoso ensinar e educar meninos. É verdade, a pena é leve, e não há instrumento de trabalho, em nenhuma atividade, mais fácil de ser confeccionada do que a do escritor, pois ele só precisa da pena de ganso. E elas existem em abundância e de graça. No entanto, neste caso, quem apanha e mais tem que trabalhar são as melhores partes do corpo humano: a cabeça, o membro mais nobre, a língua e a faculdade suprema, a fala; enquanto em outras atividades trabalha somente o punho, os pés, as costas ou outros membros semelhantes. E enquanto trabalham, podem cantar alegremente e fazer brincadeiras, coisas que o escritor não pode. Três dedos bastam, se diz a respeito do escritor, mas todo o corpo e a alma estão empenhados.”
Nesse momento pensei eu sobre nosso caso: para que enaltecer tanto o ofício de escritor se não há leitores? É evidente que Lutero fala desse modo, pois considera o estudo e a cultura literária um “sublime prazer”, que permite à pessoa “ler toda sorte de literatura, particularmente em sua casa, conversar e relacionar-se com pessoas eruditas”. No sermão anterior, já havia dito “que não se poupem esforços nem dinheiro para a instalação de livrarias ou bibliotecas [...], pois, se quisermos preservar o Evangelho e todas as artes, há que registrá-lo por escrito em livros e ali deve ser fixado (como o fizeram os próprios profetas e apóstolos, como dito acima)”. Mas, de novo: que utilidade haverá para tudo isso se não há leitores?
Como dito, o esforço de Lutero não é somente com as questões propriamente teológicas que a educação – sobretudo o estudo do grego e do hebraico – poderia resolver, mas com a preservação da cultura e da própria sociedade pelo enaltecimento de sua arte e de sua literatura. Esse deve ser nosso esforço e a nossa meta, pois um país que não lê, não valoriza a educação, sobretudo, seus escritores, está fadado ao fracasso.
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