“– Hoje os escravos estão altanados, costuma ele dizer. Se a gente dá uma sova num, há logo quem intervenha e até chame a polícia. Bons tempos os que lá vão! Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue, e dizia: ‘Anda diabo, não estás assim pelo que eu fiz!’ – Hoje... E o homem solta um suspiro, tão de dentro, tão do coração... que faz cortar o dito. Le pauvre homme!” (Machado de Assis, crônica de 1.º de outubro de 1876)
Creio que não haja, atualmente, alguém que duvide da posição do nosso maior mestre literário, Machado de Assis, em relação à escravidão e ao racismo. A sua estratégia do caramujo – evidenciada por seus estudiosos na interpretação de uma frase de sua crônica de 14 de maio de 1893 em A Semana – é amplamente conhecida e vista como uma prova cabal da maneira deliberada com a qual o Bruxo do Cosme Velho decidiu lutar. Machado diz, nessa crônica: “Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu, o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto” (grifo meu). E a histórica – e absolutamente maravilhosa! – foto de Machado ao lado de D. Isabel, a Princesa Imperial, na missa campal pela abolição dias depois da assinatura da lei, é prova irrefutável do que ele diz nessa melancólica lembrança de cinco anos depois.
Entretanto, por ocasião da aula mais recente de meu Clube do Livro, sobre o clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas, reacendeu-me a curiosidade por esse tema, sobretudo por dois textos com que tive contato em minhas pesquisas e que me deixaram boquiaberto; um deles, não só por sua virulência, mas pelo argumento moral bastante coerente – fosse real o motivo da crítica. O outro, por seu interessante argumento a favor de Machado, que vem ao encontro de ideias que eu mesmo venho trabalhando em minhas análises sobre o problema do racismo no Brasil.
Creio que não haja, atualmente, alguém que duvide da posição do nosso maior mestre literário, Machado de Assis, em relação à escravidão e ao racismo
O primeiro texto é do eminente Hemetério José dos Santos, professor negro de destacada inteligência, muito atuante no fim do século 19 e início do 20, lecionando no Colégio Pedro II e no Colégio Militar do Rio de Janeiro. O professor Hemetério, conhecido por sua batalha acirrada contra o racismo em suas obras, poesias e conferências, numa carta publicada no jornal Gazeta de Notícias em 29 de novembro de 1908, somente dois meses após a morte de Machado – republicada recentemente num blog, com um estudo muito interessante –, critica duramente não só a obra de Machado de Assis, atribuindo-lhe erros gramaticais e estilísticos grosseiros, como também coloca em xeque o caráter do escritor, acusando-o de ter abandonado a madrasta que o criara, de ter ocultado (pelo menos o quanto pôde) deliberadamente, para efeitos de ascensão social, sua origem (e cor) mestiça, bem como não ter dado suficiente atenção ao tema mais urgente e incontornável de seu tempo: a escravidão.
O nobre professor inicia, após expor os motivos de sua missiva, dizendo: “Tive sempre pela obra do Machado de Assis o sentimento que desperta o trabalho chinês de acurada paciência em um papelão, lata ou chumbo derretido: efêmero, porque a ausência de fundo que se nota não tem força de eternizar a forma; passageiro, porque essa mesma forma não se estima e não se valoriza pela excelência na construção e pela variedade dos materiais. Machado de Assis não foi um observador fiel do nosso modo de ser, um psicólogo, mesmo no corrente sentido desta palavra, durante a sua vida muito alongada e sempre bafejada pelos carinhos dos seus e pelo aconchego que sempre teve de estranhos, o que o elevou às posições culminantes no nosso mundo burocrático e literário.” E, em seguida, dispara:
“O problema do ʻnegroʼ, que assumiu em nossa vida de nação talvez um fulgor de vontade único, sem igual nem nos tempos antigos pelos cativeiros de guerra nem nos tempos modernos pela escravidão colonial, não mereceu do romancista e do poeta senão pálidas e aquareladas pinturas, tão tímidas que claramente revelam que do artista primeiro partiam as ideias preconcebidas contra a sua cor e procedência [...] As nossas guerras e as nossas questões externas, resolvidas pelas lutas pacíficas e remansadas do talento e da diplomacia, não existem, para quem as procurar, nos livros de Machado, ou se existem são simples episódios tênues e fugitivos de uma sociedade que morreu nascendo, às mãos das Virgílias e Capitus, e outras hetairas [prostitutas refinadas da Grécia antiga] tolhidas de sua desenvoltura pelos casamentos interesseiros e sórdidos.”
E, depois de dizer que “a arte de Machado de Assis esgota as energias; não tem ela nem uma relação com o sentimento nacional que, apesar dos prismas pigmentais, já se impõe naturalmente ao observador, porque primeiro não o excita e não o satisfaz”, que se trata de “uma arte doentia, de uma perversidade fria, não sentida diretamente do meio, mas copiada de leituras parcialmente ruminadas de romances franceses e ingleses”, e que, “por ser mulato, Machado não tinha razão plausível para desfigurar a nossa moral simples e tradicional”, o ferino professor diz algo que me chamou muito a atenção:
“Nas sociedades em desequilíbrio e em que a moral, de fato, ainda não igualou os tipos vários que a compõem, já porém, embalados pelas leis e pelos conceitos, as ligações de amor ou casamento obedecem a uma corrente uniforme, como as que por impulso se estabelecem maravilhosas na grande massa da água dos oceanos. Machado assim não procedeu. Não cobriu e não amparou com a reputação do seu nome uma que fosse do mesmo ciclo de sua dor, nem elegeu por companheira qualquer da roda aristocrática por educação, onde teve acento e carinhos singulares, e posição de mando, diretor e chefe.”
Acusou Machado do que hoje se convencionou chamar, entre os militantes racialistas, de palmitagem. Desse modo, não teria ele amparado, com a reputação do seu nome uma que fosse do mesmo ciclo de sua dor, mas se casado com uma mulher branca e portuguesa. A história de amor e companheirismo de Machado de Assis e Carolina Augusta Xavier de Novais é bem conhecida e comovente – tratei dela brevemente em artigo aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo; por isso também a acusação do professor Hemetério parece muito descabida, apesar de eu, sinceramente, entender o seu ponto quando ele fala sobre sociedades em desequilíbrio e a necessidade de fortalecer aqueles que sofrem a mesma dor que nós, e, no caso das mulheres, ampará-las, caso seja possível, com nossa melhor posição social. Confesso ao leitor que sempre pensei nisso antes de me casar. Ou seja, o critério de gosto somou-se, no meu caso, a algo que os estudiosos chamam de solidariedade de raça [sim, sei que raças não existem]. Não por racismo invertido (ou reverso, como chamam e como já critiquei); eu o fiz por saber que, em minha posição socioeconômica melhor estabelecida ainda bem jovem, teria oportunidade de fazer prosperar, pelo menos em termos, outra família negra. Óbvio que isso não é uma obrigação, pois o amor não obedece a critérios de cor, mas era – e aqui estou sendo muito sincero – um pensamento baseado única e exclusivamente em minhas convicções pessoais, sem querer, com isso, mudar o mundo. Uma prova é que, da família de minha esposa, ela hoje é a única a possuir casa própria.
A fúria de Hemetério José dos Santos contra nosso maior romancista pode ser colocada, se não na inveja, naquela incompreensão que muitos tiveram e até hoje têm da personalidade de Machado e seu modo peculiar de denunciar a escravidão
Mas as acusações do professor Hemetério José dos Santos têm, sabe-se, um caráter fantasioso no que se relacionam à vida de Machado de Assis, como pesquisas mais recentes parecem demonstrar (o blog indicado as apresenta). Sua fúria contra nosso maior romancista pode ser colocada, se não na inveja, naquela incompreensão que muitos tiveram e até hoje têm da personalidade de Machado, seu modo peculiar de denunciar a escravidão – como um caramujo, protegido das represálias –, em contos como Pai contra a mãe, Mariana, O espelho e o Caso da vara; nas suas críticas, crônicas, poesias e romances. Ou mesmo a escancarada e assustadora, embora metafórica, denúncia ao racismo num capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas; faço questão de reproduzir um trecho aqui, se me permite, caro leitor:
“Na dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de D. Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
– Também por que diabo não era ela azul? disse comigo.”
Revolta-nos a atitude absurda do niilista Brás Cubas, que mata a borboleta, um animal absolutamente inofensivo, somente por causa de sua cor; e essa era mesmo, quero crer, a intenção de Machado, nos causar um choque por contraste. Ele denuncia os males da escravidão e do racismo invertendo o paradigma: em vez de denunciar diretamente, como um panfletário, ele estimula a nossa imaginação e demonstra o quão cruel era tal sistema. Um verdadeiro gênio.
O outro texto que mencionei vem da pena de outro grande escritor brasileiro, Josué Montello, autor da obra-prima Os tambores de São Luís. Em seus Diários – indispensável aos amantes da literatura –, Montello registrou, em 20 de outubro de 1986, por ocasião de se ter reaberto, em São Paulo, “a questão da participação de Machado de Assis na luta política em prol da raça negra”, o seguinte: “Por desconhecimento da obra machadiana, houve quem o apontasse como um omisso nessa luta. Não, não é verdade: Machado deixou mais de um documento candente de condenação do cativeiro negro, notadamente no conto de abertura das Páginas recolhidas [‘O caso da vara’]”. Mas complementa: “No entanto não foi esse, para mim, o grande testemunho da luta de Machado de Assis contra o preconceito de cor e em favor da participação negra em nosso processo social”.
Montello, em seguida, aponta duas características da vida de Machado, que, ao contrário do que diz o professor Hemetério dos Santos, seriam provas incontestes da importância de Machado na luta antirracista no Brasil. Montello faz alusão à famigerada reprimenda, até hoje incompreensível, do grande abolicionista Joaquim Nabuco, que foi amigo próximo de Machado, ao crítico José Veríssimo, que havia escrito um texto em homenagem ao fundador da Academia Brasileira de Letras. O caso é conhecido e muito discutido. Em seu artigo, Veríssimo se referiu a Machado como “mulato, de fato, um grego da melhor época”. Mas Nabuco contestou, dizendo que tal alcunha ofenderia o autor de Dom Casmurro, pois: “Machado para mim era branco, e creio que por tal se tomava: quando houvesse sangue estranho, isto em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego”. O romancista maranhense então diz: “para mim o problema tem de ser visto de outro ângulo”. E argumenta:
“A questão racial apresenta dois aspectos nítidos: de um lado, o aspecto natural, em virtude do qual o amarelo é amarelo, o branco é o branco, o negro é o negro, sem que isso signifique prevalência ou desdouro; de outro lado, a questão social, que cria o preconceito e confere a uma determinada raça a ilusão de que lhe cabe uma posição prevalente, em detrimento das outras raças. Machado de Assis, em meu entender, não se limitou a condenar o cativeiro em mais de uma página de antologia – assumiu na sociedade brasileira uma posição proeminente, a que naturalmente tinha direito. Assim fizeram Rebouças e Tobias Barreto, José do Patrocínio e dom Silvério Gomes Pimenta, Juliano Moreira e Teodoro Sampaio. Tiveram dificuldades de ordem material? E por que não, se todos as temos? O importante é que assumiram uma posição de destaque, com o aplauso e o reconhecimento da sociedade brasileira. É esse um aspecto da luta contra o preconceito racial que não tenho visto assinalado no debate do problema. É preciso levar em conta a tranquila liderança machadiana, único escritor a merecer uma estátua na Academia Brasileira.”
Excelente! Pois bem, estimado Josué Montello, se o senhor estivesse vivo, não precisaria mais sentir falta, pois é isso que tenho feito há pelo menos dez anos de minha vida, inclusive nesta coluna, quase semanalmente. Mostrar que, pelo modelo exemplar de grandes personalidades negras, é possível construir uma nova imaginação moral na sociedade brasileira, capaz de vencer essa cultura de subalternização do negro, que, confundida com (e aliada ao) racismo, nos atrasa a todos. E Machado de Assis, a seu modo um titã na luta contra o racismo, é peça fundamental nessa equação.
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