“A experiência literária cura a ferida da individualidade sem diminuir o seu privilégio. […] Ao ler a grande literatura, eu me torno mil homens e, mesmo assim, continuo a ser eu mesmo. Tal como o céu noturno no poema grego, eu vejo com uma miríade de olhos, mas ainda sou eu quem o vê”. (C.S. Lewis, Um experimento em crítica literária)
Dias atrás alguém me perguntou o que era necessário para ser um bom escritor. Respondi de bate-pronto: vocação, imaginação, domínio da língua e estilo.
Sobre o primeiro ponto, digo num artigo aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo: “tenho defendido que todos, sem exceção, têm uma vocação, algo que, para além das habilidades naturais para realizar determinadas atividades, é algo com a qual cada indivíduo, como diz Viktor Frankl [...], assumirá ʻseu destino inevitável, assumindo com esse destino todo o sofrimento que se lhe impõeʼ, pois ʻnisso se revela, mesmo nas mais difíceis situações, mesmo no último minuto de sua vida, uma abundância de possibilidades de dar sentido à existênciaʼ (Em busca de sentido)”. Como diz o filósofo Julian Marías, “vocação é aquilo que não se pode deixar de ser”. Com isso, mais do que a disposição para uma profissão, a vocação é um chamado da vida para que nós assumamos aquilo para o quê fomos chamados. Um bom escritor é um vocacionado.
A imaginação, que é, em tese, “a possibilidade de evocar ou produzir imagens, independentemente da presença do objeto a que se referem” (como define Nicola Abbagnano no Dicionário de Filosofia), também é, como diz George MacDonald, “a faculdade que dá forma ao pensamento – não necessariamente uma forma acabada, mas uma forma que possa ser completada nos traços ou no som, ou de alguma maneira apreensível pelos sentidos. É, portanto, a faculdade humana mais parecida com a ação do poder de Deus e, portanto, tem sido chamada de faculdade criativa, e o seu exercício, criação”. Nesse sentido o artista, sobretudo o escritor, é, nas palavras de J.R.R. Tolkien, um subcriador.
Dias atrás alguém me perguntou o que era necessário para ser um bom escritor. Respondi de bate-pronto: vocação, imaginação, domínio da língua e estilo
O domínio da língua e o estilo são qualidades técnicas sobre as quais muitos literatos e críticos discorreram e discorrem; são elementos que diferem um escritor de um, digamos, indivíduo comum alfabetizado que lê, fala e escreve, mas não o faz profissionalmente – ou ao menos literariamente, pois há profissionais da escrita aos quais o estilo e o domínio da língua são menos necessários, como os transcritores e copistas. O grande poeta e ensaísta Ezra Pound diz que “os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente. Quer dizer, que mantêm a sua precisão, a sua clareza”. E completa, categórico: “Se a literatura de uma nação entra em declínio, a nação atrofia e decai”. E falo linguagem aqui não (somente) no sentido de rebuscamento, mas de dominar o idioma a ponto de conseguir dizer coisas simples de um jeito belo e coisas complexas de um jeito simples – e belo. Como diz Stephen King em seu maravilhoso Sobre a escrita, “A língua nem sempre usa gravata e sapato social. O objetivo da ficção não é a correção gramatical, mas fazer o leitor se sentir à vontade e, depois, contar uma história... Fazer com que ele esqueça, sempre que possível, que está lendo uma história. O parágrafo de uma única frase lembra mais a fala que a escrita, e isso é bom. Escrever é seduzir. Falar bem é parte da sedução”.
O estilo, segundo Othon M. Garcia em Comunicação em prosa moderna, “é tudo aquilo que individualiza a obra criada pelo homem, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do espírito, traduzido em ideias, imagens ou formas concretas”, é “a forma pessoal de expressão em que os elementos afetivos manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes em toda atividade do espírito”. E Antoine Albalat, em A arte de escrever em 20 lições, complementa, dizendo que “o estilo é a maneira privativa, que cada um tem, de exprimir o seu pensamento pela escrita ou pela palavra. Pela escrita, no escritor. Pela palavra, no orador. O estilo é o cunho pessoal do talento. Quanto mais original é o estilo, quanto mais empolgante ele é, mais pessoal é o talento”.
Portanto, se o caríssimo leitor já percebeu, a literatura, como tenho insistido, “é parte fundamental na formação cultural de uma nação, e quanto mais literato é o povo, mais próspera será a sociedade; quanto maior for a comunidade de leitores, maior será a capacidade de discernimento dos indivíduos; e quanto maior for a capacidade de discernimento dos indivíduos, maior será a organização do coletivo”.
Em nosso caso, não há exemplo mais perfeito de todas essas características fundamentais que o divino Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho. Machado foi – e ainda é, creio – um gênio insuperável de nossa língua, o escritor, como diz Alceu Amoroso Lima na introdução de seu célebre Três Ensaios sobre Machado de Assis, “que conserva maior atualidade e universalidade. É o que melhor pode ser lido e traduzido hoje sem exigir um esforço de adaptação à época em que viveu por parte de seus patrícios nem por parte de estrangeiros, uma curiosidade meramente ʻturísticaʼ e exótica”. Por isso permanece atual e indispensável. E, ainda que não haja unanimidade em minha afirmação e entusiasmo, o que mais impressiona em Machado, como confirma nosso Tristão de Athaíde, é “essa imensa inclinação para a incoerência que há no fundo da criatura humana”, pois “a geração de Machado de Assis, alimentada mais nos sofistas gregos e nos cínicos do que em Sócrates, Platão e Aristóteles, ou nos velhos filósofos da permanência, abusou em todos os sentidos dessa redução do homem às suas impressões contraditórias”. Eis algo fundamental para a formação de um imaginário moral e social, digamos, prudente.
Inspirado e ajudado por sua culta esposa, a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais – a quem dedicou, após sua morte, um dos mais belos sonetos da literatura brasileira, Machado é um escritor de tirar o fôlego; De acordo com sua biógrafa crítica Lúcia Miguel Pereira, lapidou seu estilo com um tipo de regionalismo “não de espírito, mas de sensibilidade”, como “a influência de sentir profundamente a vida num meio limitado, para poder fixá-la, de se deixar penetrar por todos os poros, quase instintivamente pelo ambiente próximo, de assimilá-lo para depois poder distinguir o elemento humano do local, e se elevar do particular ao geral”.
Ainda segundo Lúcia Miguel Pereira, sendo “autodidata, tendo aprendido a língua por esforço próprio, Machado, se teve, desde o início, o senso do estilo, foi, a princípio, um escritor incorreto. O tom da frase era bom, coeso e corrente, mas quantos deslizes nas minúcias. Nunca se entendeu bem com a ortografia, craseava os ʻaʼ de maneira fantasista, e os pronomes, então, eram uma lástima. Carolina, habituada à língua de Camilo Castelo Branco, foi-lhe sem dúvida uma conselheira segura, temperou a sua doçura brasileira com a correção portuguesa”. E, lapidado, tornou-se um verdadeiro mestre.
É imperioso recuperarmos o amor pela beleza das letras, o amor à língua – um dos pilares fundamentais de uma civilização. Só assim seremos capazes de ajudar o nosso querido e tão surrado Brasil. Não pela política, mas pela cultura
A título de exemplo, quero evocar aqui o “lugar” no qual encontramos Machado de Assis em sua mais bela forma, os contos. Como confirma Lúcia Miguel Pereira, nesse gênero, “mestre é bem o termo, porque não teve exemplos na sua língua, e nem talvez nas estrangeiras, e até agora ainda não encontrou quem o suplante”. E, para confirmar a veracidade dessa afirmação, deixo ao atento leitor, a fim de estimulá-lo à leitura completa e atenta, alguns poucos trechos – sublimes! – de alguns de seus contos, que são imagens vivas da mais pura literatura brasileira, que julgo ser o produto mais fundamental para a salvação do nosso país da miséria moral a que fomos há muito acometidos:
“À hora anunciada, frei Simão subiu ao púlpito e começou o discurso religioso. Metade do povo saiu aborrecido no meio do sermão. A razão era simples. Avezado à pintura viva dos caldeirões de Pedro Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia ouvir com prazer a linguagem simples, branda, persuasiva, a que serviam de modelo as conferências do fundador da nossa religião.” (Frei Simão; “Pedro Botelho” é uma designação popular lusitana para o Diabo).
“Achei o velho fazendeiro em conversa com um velho padre. Pareciam, tanto o secular como o eclesiástico, dous verdadeiros soldados do Evangelho combinando-se para a mais extensa prática do bem. Tinham ambos a cabeça branca, o olhar sereno, a postura grave e o gesto despretensioso. Transluzia-lhes nos olhos a bondade do coração. Levantaram-se quando apareci e vieram cumprimentar-me.” (Virginius)
“Se meu marido tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse nele um marido, minha salvação era certa. Mas não era assim. Entramos no nosso lar nupcial como dous viajantes estranhos em uma hospedaria, e aos quais a calamidade do tempo e a hora avançada da noite obrigam a aceitar pousada sob o teto do mesmo aposento. Meu casamento foi resultado de um cálculo e de uma conveniência. Não inculpo meus pais. Eles cuidavam fazer-me feliz e morreram na convicção de que o era.” (Confissões de uma viúva moça)
“Tudo eram pois alegrias na boa cidade e seus arredores; e o jovem médico, lisonjeado com a inesperada recepção que teve, continuou a não pensar muito em Paris. Mas o tempo corre e as nossas sensações com ele se modificam. No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele próprio monótono. Invadiu-o então uma coisa a que podemos chamar – nostalgia do exílio.” (O parasita azul)
“Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos”. (A chinela turca)
É imperioso recuperarmos o amor pela beleza das letras, o amor à língua – um dos pilares fundamentais de uma civilização. Só assim seremos capazes de ajudar o nosso querido e tão surrado Brasil. Não pela política, mas pela cultura. Viva Machado de Assis!
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