Ao amigo antropólogo Robson Cruz
Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. (Gilberto Freyre, Casa-grande & Senzala)
Desde que comecei a me interessar, de fato, por literatura, o gênero biográfico sempre foi um de meus preferidos. Lembro do impacto que me causaram as biografias de Martin Luther King Jr., Malcolm X e Steve Biko – ou mesmo o romance biográfico Negras Raízes, de Alex Haley –, quando ainda era um adolescente; e, percebendo a profunda influência que essas histórias causaram em mim, tenho certeza que esse tipo de literatura é fundamental para a formação da imaginação moral de um povo. A vida de pessoas ilustres, sobretudo moralmente, são inspiradoras e podem dar um grande impulso positivo na formação de nosso caráter.
Plutarco é considerado o grande inaugurador do gênero; porém, de acordo com Mikhail Bakhtin, em Questões de literatura e estética (Hucitec), “se Plutarco exerceu enorme influência na literatura, sobretudo no drama (pois o tipo energético da biografia é, por essência, dramático) Suetônio teve influência, principalmente, sobre o gênero estritamente biográfico, particularmente na Idade Média”. No entanto, Otto Maria Carpeaux, em sua História da literatura ocidental (Senado), é categórico em dizer que “Plutarco é […] um grande artista da narração; sabe caracterizar à maravilha, de modo que, de todas as figuras da Antiguidade, só as que ele biografou se transformaram em personagens tão reais como Don Quixote, Hamlet ou Napoleão”. E Mortimer Adler, em Como ler livros (É Realizações), também em referência a Plutarco, aponta aquele que, para mim, é o aspecto mais relevante das biografias:
Plutarco contou as histórias dos grandes homens do passado grego e romano para poder ajudar seus contemporâneos a também ser grandes e para ajudá-los a evitar os erros em que os grandes tantas vezes caem – ao menos na opinião dele. Vidas é um livro maravilhoso; mas, ainda que muitos dos relatos ali presentes sejam os únicos a respeito daquelas pessoas, não os lemos tanto por suas informações biográficas, mas sobretudo por sua perspectiva da vida em geral. Os biografados são pessoas interessantes, boas e más, mas nunca indiferentes. Plutarco sabia disso. (grifo meu)
Minhas principais referências são os meus pais. Mas como, atualmente, está cada vez mais difícil encontrarmos famílias estruturadas o suficiente para instruir os jovens no melhor caminho para vencer as questões da discriminação, do preconceito e do racismo, e nem podemos contar com os movimentos negros – que, em grande parte escravizados ideologicamente pela esquerda, deixaram de acreditar na família para depositar as esperanças na revolução socioeconômica, e transferiram essa responsabilidade para o Estado –, é muito comum encontrarmos jovens negros (ou mesmo pobres em geral), que não creem mais no esforço pessoal, no mérito e na superação das dificuldades pela superioridade moral. Acham que tudo o que podem fazer é esperar que o Estado lhes restitua o que supostamente lhes deve, com base num sistema artificial de reparação histórica. É por isso que tenho me esforçado por compartilhar histórias de personalidades negras que podem servir de referência para uma geração que está sendo educada sob o signo da vitimização e da impossibilidade moral.
Ao me debruçar sobre esse tema, tenho descoberto figuras de tamanha envergadura, que fico estarrecido por vê-los quase totalmente marginalizados não só pelos livros de História, mas pelos próprios movimentos negros, por terem, com muitas dessas personalidades, divergências de ideias. Gosto sempre de lembrar do absurdo que foi ouvir, de um militante acadêmico, que André Rebouças era “chapa branca”. De modo que julgo de fundamental importância trazê-los à luz, a fim de fomentar a formação do imaginário da nossa e das novas gerações. Dito isso, vamos ao ilustre personagem da vez – trazido à minha memória por meu amigo antropólogo Robson Cruz: Manuel Raimundo Querino.
Manuel Querino nasceu em Santo Amaro (BA), em 28 de julho de 1851, filho, provavelmente – pois não se tem certeza –, de José Joaquim dos Santos Querino, carpinteiro, e de Luzia da Rocha Pita, negros livres que teriam morrido vitimados pela epidemia de cólera que atingiu a região em 1855. Foi um dos intelectuais mais extraordinários de sua geração, sendo o primeiro negro a escrever sobre história do Brasil e a salientar a contribuição do negro na construção de nosso país e cultura. Foi jornalista, escreveu sobre arte, culinária, história, religião, e foi também um republicano (arrependido, após ver o resultado do golpe) e militante pela causa dos operários. Foi criado por Manuel Correia Garcia, um homem das letras, de formação exemplar, doutor em Filosofia pela Universidade de Tubinga, na Alemanha, que lecionou aritmética, desenho linear e caligrafia na Escola Normal. Infundiu em Querino o amor às letras e ao estudo, e também o colocou num curso de pintura.
Após uma passagem por Pernambuco e Piauí, vai pra a capital do Império (RJ) e é recrutado pelo exército, mas, graças à sua boa instrução, foi designado para uma atividade interna no batalhão. Após deixar o serviço militar, trabalhou como artesão e cursou francês e língua portuguesa no colégio 25 de Março, obtendo resultados excelentes nos exames. Depois trabalhou como pintor no Liceu fundado por um de seus professores, formou-se desenhista e chegou a cursar dois anos de arquitetura. Obtendo a licenciatura como desenhista, lecionou desenho geométrico no Colégio de Órfãos de São Joaquim e no Liceu. Também foi político, eleito como deputado, pelo Partido Operário, em 1890, e foi conselheiro municipal; mas se desiludiu com a política. Também foi funcionário público, trabalhando na Diretoria de Obras Públicas e na Secretaria de Agricultura.
No entanto, seu trabalho de maior destaque são suas pesquisas historiográficas e seu grande incentivo às artes – e, sobretudo, da independência do artista. Segundo diz, em A Bahia de outrora, José Teixeira de Barros, que foi seu amigo e biógrafo:
[…] ninguém se empenhou tanto pelo levantamento das artes, na Bahia, como Manuel Querino, e nenhum outro artista propugnou, com tamanha veemência, a união da classe operária de modo que viesse a constituir uma força, uma vontade, um poderoso elemento de ação, no seio da coletividade. O seu maior ideal era arredar o artista da tutela da política, que tudo avassala, torná-lo independente e autônomo.
Como dito anteriormente, desiludiu-se sobremaneira com o regime republicano que apoiara, principalmente pelo abandono dos ex-escravos, libertos em 13 de maio de 1888, bem como pelo total descaso com as artes. E elogia, em As artes da Bahia, os esforços do Império em relação a elas, dizendo que “no tempo do império, honra é confessar, os presidentes da Província não se desdenhavam de proteger e animar a cultura artística”, e que “eram contemplados também como instrumentos de educação do povo, de quem se respeitavam os intuitos nobres”.
Mesmo filiado ao Partido Operário, e tendo, segundo alguns, um traço de ideias socialistas, Querino defendeu o valor da educação individual como ferramenta emancipadora do negro, e, nesse ponto, é comparado, pelo historiador americano Henry Louis Gates Jr., em Os negros na América Latina, a dois dos maiores intelectuais negros americanos de todos os tempos – sobre os quais tenho um aula em meu curso “O Brasil é um país racista?”:
Pode-se considerar Querino como uma mistura brasileira de Booker T. Washington e W. E. B. Du Bois: procurou promover a educação técnica para negros e ensinou numa escola profissionalizante, como Washington; ao mesmo tempo, porém, foi membro do fechado Instituto Geográfico e Histórico […], como teria sido Du Bois. No entanto, diferentemente de Washington e de Du Bois, também se envolveu com o sindicalismo e com a política local (foi vereador), e com frequência se aliava a políticos da oligarquia. Querino, em outras palavras, foi um homem complexo.
Para Querino, era somente a falta de oportunidades que fez do negro escravizado um ignorante, e protesta, em A raça africana e seus costumes na Bahia,
[…] contra o modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano, acoimando-o constantemente de boçal e rude, como qualidade congênita e não simples condição circunstancial, comum, aliás, a todas as raças não evoluídas. Não. Primitivamente, todos os povos foram passíveis dessa boçalidade e estiveram subjugados à tirania da escravidão, criada pela opressão do forte sobre o fraco.
Por outro lado, diz, evocando exatamente o nobre educador americano: “Quem desconhecerá, por ventura, o prestígio do grande cidadão americano Booker Washington, o educador emérito, o orador consumado, o sábio, o mais genuíno representante da raça negra na União Americana?” E arremata – de modo sublime, ao meu ver:
Do exposto devemos concluir que, somente a falta de instrução destruiu o valor do africano. Apesar disso, a observação há demonstrado que entre nós, os descendentes da raça negra tem ocupado posições de alto relevo, em todos os ramos do saber humano, reafirmando a sua honorabilidade individual na observância das mais acrisoladas virtudes.
Tudo isso escrito em 1916!
Quando trata do africano como colonizador, então, sua percepção é arrebatadora. Em livreto publicado em 1918, de título O colono preto como fator da civilização brasileira, sai em defesa do elemento africano como fundamental para a formação de nossa sociedade. Antes, em A Raça Africana, já tinha afirmado a “notória influência do fetichismo africano em nossos costumes” – também tenho eu sustentado que a demonização da mitologia e das religiões de matriz africana nos faz amputados de um elemento importantíssimo de nossa identidade; agora, nessa nova investida em favor da positivação do negro brasileiro, traça um panorama histórico que vai desde Portugal no séc. 16, passando pela chegada dos escravizados no Brasil, pela caracterização opressora e violenta da escravidão a fim subjugar o africano, pelos movimentos de resistência – como o suicídio, os quilombos e o assassinato de senhores – e desemboca em algumas das páginas mais comoventes da literatura sobre o negro no Brasil. Como, por exemplo – a citação é longa, mas belíssima:
Trabalhador, econômico e previdente, como era o africano escravo, qualidade que o descendente nem sempre conservou, não admitia a prole sem ocupação lícita e, sempre que lhe foi permitido, não deixou jamais de dar a filhos e netos uma profissão qualquer. Foi o trabalho do negro que aqui sustentou por séculos e sem desfalecimento a nobreza e a prosperidade do Brasil: foi com o produto do seu trabalho que tivemos as instituições científicas, letras, artes, comércio, indústria etc., competindo-lhe, portanto, um lugar de destaque, como fator da civilização brasileira.
Quem quer que compulse a nossa história certificar-se-á do valor e da contribuição do negro na defesa do território nacional, na agricultura, na mineração, como bandeirante, no movimento da independência, com as armas na mão, como elemento apreciável na família, e como o herói do trabalho em todas as aplicações úteis e proveitosas. Fora o braço propulsor do desenvolvimento manifestado no estado social do país, na cultura intelectual e nas grandes obras materiais, pois que, sem o dinheiro que tudo move, não haveria educadores nem educandos: feneceriam as aspirações mais brilhantes, dissipar-se-iam as tentativas mais valiosas. Foi com o produto do seu labor que os ricos senhores puderam manter os filhos nas universidades europeias, e depois nas faculdades de ensino do País, instruindo-os, educando-os, donde saíram veneráveis sacerdotes, consumados políticos, notáveis cientistas, eméritos literatos, valorosos militares, e todos quantos ao depois fizeram do Brasil colônia o Brasil independente, nação culta, poderosa entre os povos civilizados.
E arremata, com uma lista de ilustres, que, como ele, urge serem conhecidos e estudados nas escolas do Brasil:
Do convívio e colaboração das raças na feitura deste País, procede esse elemento mestiço de todos os matizes, donde essa plêiade ilustre de homens de talento que, no geral, representaram o que há de mais seleto nas afirmações do saber, verdadeiras glórias da nação. Sem nenhum esforço pudemos aqui citar o Visconde de Jequitinhonha, Caetano Lopes de Moura, Eunápio Deiró, a privilegiada família dos Rebouças, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Cruz e Souza, José Agostinho, Visconde de Inhomirim, Saldanha Marinho, Padre José Maurício, Tobias Barreto, Lino Coutinho, Francisco Glicério, Natividade Saldanha, José do Patrocínio, José Teófilo de Jesus, Damião Barbosa, Chagas o Cabra, João da Veiga Muricí e muitos outros, só para falar dos mortos. Circunstância essa que nos permite asseverar que o Brasil possui duas grandezas reais: a uberdade do solo e o talento do mestiço. Tratando-se da riqueza econômica, fonte da organização nacional, ainda é o colono preto a principal figura, o fator máximo.
Manuel Querino morreu em 14 de fevereiro de 1923, em Salvador. Foi casado por duas vezes e teve quatro filhos. Sem dúvida, figura entre os maiores pensadores do nosso país e tem importância fundamental no combate a toda uma cultura de inferiorização do negro, perpetrada desde os racistas eugenistas do século 19, e ressuscitada, atualmente, com ares de consciência social, pela esquerda e pelos próprios movimentos negros, embebidos por influências estrangeiras alheias à nossa realidade. Por isso, penso ser oportuno afirmar: menos Angela Davis, mais Manuel Querino!
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