“Manipulação e uso tendencioso das informações não produzem apenas fatos fictícios, mas também pessoas fictícias.” (Thomas Sowell)
A extrema polarização política que vivemos no Brasil atualmente tem levado muitas pessoas a colocarem suas ideologias acima da verdade, sua visão de mundo acima do próprio mundo e da realidade. Isso, em certa medida, é comum. Marcar posição em tempos como esses, nos quais a moderação passa a ser vista como covardia, é o caminho de todo aquele que quer ser aceito em seu ambiente, caso ele esteja tão convulso quanto os outros.
Desse ponto de vista, o filme Marighella, de Wagner Moura, que estreia como diretor, está dentro do esperado, principalmente vindo de um artista tão engajado como ele. Segundo entrevista dada à Folha de S.Paulo, no início de 2018, o seu filme “tem lado”, o que demonstra que, mais que um filme, Marighella é um panfleto de esquerda que visa a ocupar menos um espaço artístico do que político. Nessa mesma entrevista, ele também diz, sem provar nada, que um grupo ameaçou invadir o set de filmagem, mas 15 jovens da Frente Antifascista (?) se prontificaram a protegê-los – alimentando a narrativa de antagonismo político do filme (associado à derrocada da esquerda) com a ascensão de uma direita que eles, automaticamente, associam ao mal absoluto.
Moura não é tolo. Sabe que, se a esquerda está enfraquecida politicamente, na cultura ainda tem o domínio quase total; mas há muito tempo os artistas não enfrentavam uma oposição tão grande; a repulsa da população, após ter percebido a estreita relação entre eles e os políticos que saquearam o país, bem como a farra com o dinheiro público através das leis de incentivo, sobretudo a Lei Rouanet – instrumento excelente de fomento, mas vilipendiado e distorcido pelos “amigos do rei”, como demonstra o ex-ministro da Cultura numa excelente entrevista –, gerou um desgaste nunca antes visto por aqui. Artistas que sempre tiveram a simpatia da população de repente passaram a ser duramente criticados nas redes sociais e cobrados por suas posições corporativistas e ideológicas. Portanto, fazer um filme sobre a famigerada, controversa e insepulta ditadura militar brasileira – que, inclusive, é uma narrativa coringa da esquerda há décadas –, focado numa de suas figuras mais emblemáticas, e investir na perseguição atual como uma espécie de ressurreição daqueles já longínquos anos não poderia ser mais promissor do ponto de vista narrativo. Mas Moura exagerou.
A caracterização de Carlos Marighella como preto – aqui uso a definição do IBGE, que divide negros em pretos e pardos (ou mestiços) –, convidando o cantor Seu Jorge para o papel, foi um truque para tornar o elemento racial, de menor influência na vida e luta de Marighella, um diferencial – falso, diga-se. O problema é que, diante de uma figura notoriamente controversa, nem todos os negros podem querer ver sua cor associada a tal personagem. Note, prezado leitor, faço aqui o caminho inverso do que fazem os propugnadores da ideologia do colorismo, que veio à tona com o caso Fabiana Cozza/Dona Ivone Lara, que tratei em artigo, aqui, na Gazeta do Povo. O colorismo pressupõe que quanto mais a pessoa for escura, mais discriminação sofrerá. E quando, para um papel artístico, escolhem um ator ou atriz mais claro que seu representado, o fazem por causa dessa facilidade de aceitação, mas excluem, automaticamente, aqueles artistas que são mais escuros. O bom e velho problema da representatividade. Outro exemplo ocorreu nos EUA, recentemente, quando escolheram a atriz Zoe Saldana para o papel de Nina Simone. O que acho sobre isso? Está no mesmo artigo.
Um artista pode fazer o que quiser com sua arte, desde que assuma as consequências de suas escolhas. E a escolha de Moura foi absolutamente controversa nesse sentido, de tentar associar a luta antirracista à luta de classes – atitude que muitos intelectuais negros, como Carlos Moore e Abdias Nascimento, criticaram anteriormente. As duas coisas não são necessariamente associadas, pois o racismo não é um problema econômico.
O diretor se defende, dizendo, em entrevista recente: “Marighella era preto, neto de uma escrava sudanesa”. Mas isso é mentira. Marighella evocava para si uma ascendência africana – diz isso em suas “poesias” e textos autobiográficos; mas mesmo o seu biógrafo, Mário Magalhães, pondera essas informações:
“O tráfico para a Bahia minguou em 1850. Se a mãe de Maria Rita fosse africana, como escreveria Marighella, teria chegado quase bebê e tido a filha na idade avançada de 40 anos. Ocorre que não era comum o tráfico de crianças e mulheres haussás. É razoável supor que a mãe de Maria Rita tenha nascido no Brasil em meio a uma comunidade haussá. Neto de escravos, Carlos Marighella seria bisneto de africanos haussás, cuja cultura não sobreviveu na Bahia como a de outras nações africanas”. (Marighella, o guerreiro que incendiou o mundo)
Não nego o fato de que tenha sido descendente de africanos. Mas quem, no Brasil, não o é? E, numa era em que se instauram “tribunais raciais” nas universidades, a fim de mitigar as fraudes da autodeclaração no sistema de cotas, Marighella passar insuspeito me causa espécie. Por que as entidades do movimento negro não emitiram nem sequer uma nota sobre o caso flagrante de falsificação e caracterização de um terrorista como preto – quando a reclamação é quase sempre essa, de que pretos só fazem papel de bandidos? Certamente porque concordam com sua ideologia e seus atos terroristas, chamado-os de “luta pela democracia e justiça social” – informação desmentida, inclusive, por ex-guerrilheiros como os políticos Eduardo Jorge e Fernando Gabeira.
Aliás, não poderia lutar pela democracia um grupo armado que se declarava dessa forma: “Todos nós somos guerrilheiros, terroristas e assaltantes e não homens que dependem de votos de outros revolucionários ou de quem quer que seja para se desempenharem do dever de fazer a revolução. O centralismo democrático não se aplica a organizações revolucionárias como a nossa” (Panfleto da ALN, 1969). Ou que defendia o assassinato de civis, como pregava Marighella em seu Manual do Guerrilheiro Urbano: “Aqueles que vão à polícia por sua própria vontade fazer denúncias e acusações, aqueles que suprem a polícia com pistas e informações e apontam a gente, também devem ser executados quando são pegos pela guerrilha”.
A afirmação de Wagner Moura, de que, para ele, tanto faz que Marighella seja, em seu filme, mais preto do que foi na vida real, só pode ser aceita caso também se aceite a ideia de que o terrorista mestiço lutava pelos negros; o que não é verdade. Aliás, é Moura mesmo quem diz, na mesma entrevista, que o racismo não era uma pauta da esquerda à época – ou seja, não tinha aprendido ainda a usar os negros. Portanto, esse é mais um caso notório de escravidão ideológica do movimento negro brasileiro, que aceitou tal caracterização não pela afinidade fenotípica do personagem, mas por sua ideologia.
Mesmo que o filme tenha sido concebido antes do resultado das eleições presidenciais, fica evidente que, em sua construção, Moura foi adequando seu roteiro e seu discurso à situação atual. Portanto, o que ele fez foi usar um ator preto como ferramenta de mistificação de seu personagem, como um hospedeiro de sua ideologia. Não tem nada a ver com a luta antirracista, não tem nada a ver com os negros, mas com o fato de querer apresentar ao mundo um Brasil que considera, atualmente, racista e fascista, para tentar reconstruir, no imaginário daqueles que não estão vivendo esse momento, o clima de 1964. Tudo isso veio à tona na atmosfera de vitimização criada na promoção de seu filme no Festival de Cinema de Berlim, onde estreou sem concorrer. Dizer, na entrevista coletiva, que seu filme “é maior que Bolsonaro”, como se um filme ou qualquer arte tivesse a obrigação de dialogar com (ou se contrapor a) políticos, é reduzir o seu filme a um panfleto patético, cuja mistificação já começou a desmoronar na imprensa internacional, como mostra a matéria publicada pelo jornal Tagesspiegel e divulgada pelo portal Deutsche Welle.
Sempre que vejo a arte sendo usada de maneira tão pueril, tão rasteira, me lembro das palavras de Tolstói, comentadas por Andrei Tarkovski em Esculpir o Tempo:
“Com que extraordinária precisão escreveu Tolstói em seu diário, em 21 de março de 1858: ‘A política não é compatível com a arte, pois a primeira, para provar seus argumentos, precisa ser unilateral’. De fato! A imagem artística não pode ser unilateral: exatamente para que possa ser chamada verdadeira, ela deve unir em si mesma fenômenos dialeticamente contraditórios”.
Aguardemos o seu fracasso aqui no Brasil – assim espero.
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