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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Liberdade de expressão

O declínio do jornalismo e o contrato da sociedade eterna

Mark Zuckerberg
Mark Zuckerberg, CEO da Meta, em audiência no Congresso dos Estados Unidos em janeiro de 2024. (Foto: Tasos Katopodis/EFE/EPA)

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“[...] Tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela.” (Eric Voegelin)

A notícia de que a Meta, de Mark Zuckerberg, reverá as políticas de checagem de fatos e adotará um sistema semelhantes às Notas de Comunidade – com direito a vídeo de Zuck completamente redpillado, denunciando “tribunais secretos” na América Latina –, dando mais liberdade de expressão e rompendo com os métodos de censura outrora adotados, fez com que a classe intelectual e jornalística mais infantilizada da história fosse à loucura. A imprensa mainstream, que há muito é quase completamente tomada de jornalistas medíocres transformados em analistas de tudo, nessa profissionalização do clima de opinião de que nos falou Eric Voegelin, ligou as sirenes do apocalipse, falando em “flerte com o fascismo”, “fim da era dos direitos humanos”, “ódio na veia” e outras sandices.

Não sei ao certo se todo esse desespero é ideológico ou meramente corporativista. Muito provavelmente as duas coisas, pois jornalistas estão convencidos, por seu próprio arbítrio e pelo sistema de autoadulação de sua classe, de que são a expressão de sensatez da sociedade. Antes da internet isso até poderia ser verdade, mesmo porque tínhamos pouquíssimos recursos que nos permitiam confrontá-los. Porém, aquele mundo em que o jornalismo reinava absoluto na opinião pública, em que a imprensa era o Quarto Poder, acabou.

A partir desse momento, a imprensa precisa, para o bem de qualquer democracia que se pretenda, um dia, séria, minimamente saudável e madura, compreender que uma sociedade é formada por dinâmicas próprias, e que a imprensa é parte dessa engrenagem, não o seu motor. Sua irrefreável tentação de manipular a opinião pública deve, se não desaparecer, saber que, agora, o confronto será inevitável. A cada pretensiosa investida de controlar o que as pessoas pensam a respeito dos acontecimentos, a reação será imediata, sobretudo nas redes, e sua tentativa de controlar isso é censura.

Jornalistas estão convencidos, por seu próprio arbítrio e pelo sistema de autoadulação de sua classe, de que são a expressão de sensatez da sociedade

E àqueles que adoram perguntar “até onde vai a liberdade de expressão?”, minha resposta sempre será de acordo com o que verdadeiramente acredito: até onde ela rompe com o bom senso. O mesmo bom senso, fruto da imaginação moral, que até hoje foi o responsável pela manutenção das civilizações. Edmund Burke, em seu Reflexões sobre a revolução na França, sabiamente define o que é uma sociedade e qual o papel do Estado como aquele que deve assegurar (e não determinar) as dinâmicas e interações:

“A sociedade é certamente um contrato. Contratos de natureza inferior, tendo como conteúdo objetos de simples interesses temporários, podem ser desfeitos segundo a vontade das partes. No entanto, deve-se pôr o Estado em pé de igualdade com uma associação para o comércio da pimenta, do café, do algodão, do fumo ou de qualquer outra mercadoria tão pouco relevante? Uma sociedade que persegue um interesse transitório, podendo ser dissolvida de acordo com o desejo das partes? Certamente não; é com outro respeito que se deve considerá-lo, porque ele não é realmente uma associação com vistas a assegurar a grosseira existência animal de uma natureza efêmera e perecível. O Estado é uma associação que leva em conta toda ciência, toda arte, toda virtude e toda perfeição; e como os fins de tal associação não são obtidos em muitas gerações, o Estado torna-se uma associação não só entre os vivos, mas também entre os que estão mortos e os que irão nascer. Os contratos que regem cada Estado em particular são cláusulas do grande contrato primitivo da sociedade eterna, que liga as naturezas mais baixas às mais elevadas, liga o mundo visível ao mundo invisível, conforme a inviolável lei que mantém todas as naturezas morais e físicas, cada uma em seu lugar determinado.”

Quando Chesterton diz, no seu clássico Ortodoxia, que sua primeira e última filosofia era a que ele aprendera na infância, através dos contos de fada, é disso que ele está falando; é a ética da terra dos elfos, que ele chama de “ensolarado país do senso comum” (ou bom senso). Não somos causa de nós mesmos e uma sociedade não é organizada somente pelas leis e costumes que o Estado cria. Observar as dinâmicas sociais próprias, baseadas nas tradições, a chamada “democracia dos mortos”, é a melhor maneira de sabermos quando algo passou do limite. E jornalistas estão muito longe de serem aptos para isso. Muito pelo contrário. Eles fazem parte de uma espécie de casta protegida em seu próprio feudo ideológico, alimentado pelo pseudostatus que a profissão lhes confere. A maturidade de uma sociedade não é fruto de dirigismo estatal ou de ideologias de grupos específicos, mas é fruto da cultura e da educação, da construção da vida virtuosa de seus indivíduos.

C.S. Lewis, em A abolição do homem, ao discorrer sobre a educação para as virtudes, afirma que “Santo Agostinho define a virtude como ordo amoris – a disposição ordenada das afeições, na qual cada objeto corresponde ao grau de amor que lhe é apropriado”. Por isso é que “Aristóteles diz que o objetivo da educação é fazer com que o aluno goste e desgoste do que é certo gostar e desgostar, pois “quando a idade do pensamento reflexivo chegar, o aluno assim treinado nas ‘afeições ordenadas’ ou nos ‘justos sentimentos’ facilmente encontrará os primeiros princípios na Ética”. As emoções são ordenadas justamente pela imaginação moral.

Mas e quando a própria sociedade está tão adoecida a ponto não mais reconhecer tais princípios? Quando o relativismo já penetrou tão fundo no imaginário coletivo que é impossível vislumbrar uma tradição? Pior: quando a própria classe letrada agoniza, quando os intelectuais, como diz Julien Benda, “sacrificaram o culto dos valores universais ao interesse de seu país ou de sua pátria. Ou talvez, mais simplesmente, ignoraram ou esqueceram os valores universais” e traíram sua função de “defender os valores eternos e desinteressados, como a justiça e a razão”? É nesse momento que surge a necessidade do que Eric Voegelin chama de recuperar a realidade; ou seja, “reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade”.

Muitos pensadores contemporâneos refletiram e ainda refletem acerca disso, e há um grande número de obras cujos autores observam, criticam e propõem soluções para o abandono dos valores universais que fundaram civilizações e ainda são capazes de nortear nossas vidas. Mas esse não é, definitivamente, um trabalho para jornalistas e, muito menos, será alcançado com controle. É um processo de conscientização, não de censura.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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