“O artista não é um produtor de objetos, não compete com a indústria. O que lhe interessa é a qualidade não a quantidade. Cada obra de arte é um ser diferenciado, que retira dessa diferença a sua razão de ser.” (Ferreira Gullar)
“As escolas deveriam criar um concurso de música com o nome dele. É um grande músico, um grande artista, de um nível muito alto. Sua música é tão linda, cheia de amor e vida. Ele merece muito ser reconhecido porque sua obra é inacreditável.” (Wynton Marsalis sobre Moacir Santos)
“Enquanto meus amigos profanos almejam ardentemente por minhas vitórias externas, pela mesma razão eu busco incessantemente minhas vitórias internas. Amém.” (Moacir Santos)
Sou assinante de um programa que o músico, cantor e produtor Ed Motta apresenta, via Zoom (pela plataforma Apoia.se), chamado Empoeirado. O programa existe desde o início dos anos 2000, já passou pelo rádio e, atualmente, é restrito aos apoiadores. Ed – sobre quem já falei recentemente aqui, nesta Gazeta do Povo –, que além um músico extraordinário é um pesquisador obcecado e exigente, sempre aparece com antigas novidades – algumas raríssimas – para deleite dos que tão atentamente dedicam algumas horas por semana à audição dessas pérolas e seus comentários sempre muito pertinentes. É, sobretudo, uma aula de apreciação bastante diferenciada não só para quem é músico, mas para diletantes que amam música, como eu. O programa no momento está pausado, pois Ed está em estúdio, preparando seu novo álbum; deve voltar no início ano que vem.
Num dos recentes programas, Ed Motta tocou uma música que imediatamente me capturou a atenção, e começou a tecer rasgados elogios ao artista. A música era Coisa N.º 2 e seu compositor era Moacir Santos. Eu, mesmo admitindo, como diziam os antigos, que a vida é curta e a arte é longa, considero-me um ouvinte dedicado de música e alguém que tem um conhecimento acima da média; no entanto, espantei-me de jamais ter ouvido falar de Moacir Santos. Nunca. Levei um susto ao ouvir Ed falar com tanto entusiasmo do maestro e de lembrar que ele era um verdadeiro gênio esquecido de nosso país. Senti-me envergonhado.
Após um momento de estupefação, perguntando-me por que eu jamais ouvira falar de Moacir Santos, passei a ouvir, assistir e ler tudo o que está disponível do e sobre o nosso Ouro Negro
Mas, como sempre acontece quando me deparo com algo que me chama a atenção por sua excepcionalidade, saí numa busca desenfreada a fim de me apropriar, apreciar e saber mais sobre esse gênio (quase) esquecido, que foi chamado por Wynton Marsalis – trompetista e compositor virtuoso, ganhador do Pulitzer de Música (1997) – de “Brazilian Duke Ellington”; Marsalis, inclusive, fez um show com esse nome em homenagem a Santos, em 2014. Para quem não sabe, Duke Ellington foi um dos maiores compositores de jazz e líderes de orquestra da história, e sua influência é marcante no gênero ainda hoje. E após um momento de estupefação, perguntando-me por que eu jamais ouvira falar de Moacir Santos, passei a ouvir, assistir e ler tudo o que está disponível do e sobre o nosso Ouro Negro.
Moacir Santos nasceu em 11 de setembro de 1926, no município de Bom Nome, no sertão de Pernambuco, filho de José dos Santos e Julita Penha de Santos. A data de seu nascimento foi descoberta somente na vida adulta; até os 16 anos, Santos não tinha nenhum documento que atestasse seu nascimento. Numa ocasião, quando ainda jovem e já músico, precisou de uma documentação para viajar de Salvador a Recife, então uma autoridade aduaneira dos portos forneceu-lhe uma certidão datada de 8 de abril de 1924. Porém, em 1967 o músico empreendeu aquele que, segundo ele, seria seu último esforço para saber a verdade sobre seu nascimento.
Diz ele, segundo relato reproduzido na única biografia a seu respeito, Moacir Santos, ou os caminhos de um músico brasileiro, da flautista Andrea Ernest Dias (infelizmente fora de catálogo, mas encontrável em sebos): “Em Bom Nome, lugarejo de passagem de uma cidade para outra, fui na igreja, perguntei onde era a casa do padre, perguntei pela zeladora, pelo padre, fui a Belmonte. Para mim é tão importante falar isso, eu preciso falar sobre esse quadro de minha vida, é tocante para mim sempre falar disso. Ajudado por três ou quatro pessoas, comandei a operação em busca do registro. Cerquei as datas de 1920 a 1935. Eu estava com a saliva seca, quase perdendo a esperança, quando alguém achou o registro”.
A angústia de Moacir Santos pode não fazer muito sentido para quem não passou por esse problema de identidade, mas imagine não saber sua data de nascimento e, consequentemente, quantos anos tem. Santos, cuja verve poética não se dava só na música, mas também na escrita, faz um relato comovente sobre sua situação existencial:
“Minha vida é um encadeamento sem fim. Meu pai tinha largado a gente, minha mãe morreu quando eu tinha 3 anos, depois fugi da cidade. Eu me sentia como um órfão, sem saber direito o meu nome, nem quando nasci. Parecia uma criatura numa pedra no meio do mar, com as águas batendo, como se fossem as pessoas perguntando: ʻQuem é você? Qual o seu nome? Quando você nasceu? Onde você nasceu?ʼ E eu não sabia de nada. Mas agora eu sei. ʻAgora eu seiʼ é o título de uma das coisas aí, uma música minha.”
E é compreensível. Moacir tinha consciência de sua estatura artística, da qualidade excepcional de seu trabalho, viveu entre os grandes; e não saber algo tão trivial parece ter causado nele uma sensação de menosprezo, de uma pessoa sem raízes, sem origem, sem história. Isso refletiu em sua busca e em sua arte – como na música Whatʼs my name, do álbum Saudade, de 1974.
A música entrou na vida de Moacir Santos desde muito pequeno. Diz ele que suas lembranças mais longínquas datam de quando ele tinha por volta de 3 anos de idade, por conta da morte de sua mãe. Diz ele: “A gente brincava de banda, eu liderava uma bandinha de meninos nus na rua, tocando as marchinhas, imitando as retretas da cidade. Quando mãezinha morreu, eu estava batendo latinhas no quintal, como se fossem os pratos da banda [...]. Quando eu entendi a vida, que era um ser vivo, a música já estava comigo de forma inata”. Com a mãe morta e o pai ausente, foi adotado por parentes e, depois, por amigos da família; matriculado numa escola primária, suas notas eram tão boas que recebeu homenagens da Delegacia de Ensino da cidade; entretanto, desde pequeno já sentia o preconceito racial e a cultura de subalternização dos negros que é marca registrada de nosso país. No entanto, nunca deixou que isso fenecesse a sua curiosidade.
Após ouvir de alguém que quem “toca de ouvido nunca vai aprender a tocar por música”, Moacir decidiu que precisava estudar formalmente. Pediu a seu tutor uma cartilha musical e a estudou com voracidade
Aos 9 anos assistia aos ensaios da Banda Municipal de Flores e construía seus próprios instrumentos. Como diz sua biógrafa: “Admirava a sonoridade do buzo (berrante) nas estradas de rodagem, explorava os harmônicos que conseguia das garrafas que ele mesmo cortava com um cordão embebido em álcool, e construía seus próprios pífanos com as tabocas recolhidas no quintal de Antônio Madureira, fogueteiro da cidade, assegurando-se da qualidade sonora e precisão escalar dos instrumentos que confeccionava”. Com o tempo, de tanto atormentar os músicos da orquestra, estes deixaram que ele tomasse conta dos instrumentos, ao que se manifestou, nas horas em que lhe era possível explorá-los, brilhantemente sua capacidade autodidata: aprendeu a tocar todos os instrumentos da banda.
Após ouvir de alguém que quem “toca de ouvido nunca vai aprender a tocar por música”, decidiu que precisava estudar formalmente. Pediu a seu tutor uma cartilha musical e a estudou com voracidade. Ainda menino, passou a integrar a Orquestra de Flores e ganhar algum dinheiro tocando em festividades religiosas da cidade. Aos 13 anos já tocava profissionalmente bateria e banjo no cinema, e já se arriscava como compositor. Dos 11 aos 14 foi músico itinerante, tocando em festas e participando de concursos de música, não raro ajudando a Orquestra de Flores a vencer. Ou seja, ainda criança o “Neguinho de Flores” já era um músico reconhecido.
Aos 14 anos ocorreu o seu primeiro arroubo de rebeldia contra os preconceitos e maus-tratos, e ele fugiu a fim de buscar seus próprios caminhos em liberdade. Diz ele: “Sempre que bolem comigo, pisam no meu pé, eu saio fugindo. E parece que é um motivo para eu me aproximar, até mesmo me defrontar, apanhar a minha estrela...” Com a imaginação moral estimulada pela leitura do cordel A vida de Canção de Fogo e seu Testamento, de Leandro Gomes de Barro – considerado o pai da literatura popular em verso –, Moacir foi sempre buscando superar suas dificuldades, sem nunca mais se deixar tutelar por ninguém. Tornou-se, literalmente, um espírito livre.
Entre empregos formais – afinal de contas, ser músico profissional no Brasil é um desafio enorme – e tocando como freelancer, ajudado por músicos militares rumou para Alagoa do Monteiro, na Paraíba, e trabalhou por um tempo na coletoria da cidade; depois foi para Rio Branco (atual Arcoverde) e lá reencontrou um mestre de música de sua infância, o célebre Alfredo Manoel da Paixão, e seguiu com ele para Recife. Mas Moacir não aceitava desaforos. Ao receber um tapa na cabeça de seu mestre, foi embora novamente, dessa vez para Serra Talhada. Mas vale ressaltar que sua relação afetiva com a família Paixão durou por toda a sua vida, inclusive com ele compondo um frevo sinfônico, Paixão segundo Moacir Santos, dedicado ao filho do mestre, seu companheiro na música.
Em Serra Talhada integrou a Orquestra Filarmônica Vilabelense e foi fiscal de imposto de feirantes. Trabalhou por um tempo como preparador e diretor musical no Circo Farranha, mas, de novo, por indisposição com o mestre Luiz Benjamim, foi embora para Salvador. Trabalhou como entregador de pães e conheceu um grupo de músicos da Banda da Polícia Militar; mas, apesar do fascínio que causou em todos, não pode ser integrado à banda por ser menor de idade. Frustrado, tenta voltar a Recife, mas foi impedido pelas autoridades aduaneiras. Nessa ocasião, o jovem Moacir Santos passou a noite perambulando sem destino e dormiu na rua. Antes de retornar a Pernambuco, rumou para a cidade do Crato, no Ceará, e travou uma luta insana para conseguir não só trabalhar, mas comer. Sempre inquieto, dividindo-se entre trabalhos formais e braçais (que ele detestava) e sua atividade como músico, Santos vai parar na Paraíba e consegue entrar na Orquestra da Polícia Militar, em João Pessoa. O tenente Adauto Camilo, regente da banda, o apresentou ao comandante a fim de integrá-lo à corporação, ao que ouviu do superior: “Mas ele é preto!” O argumento do tenente, de que havia outros pretos na banda e que não poderiam perder um músico como Santos, fez o comandante aceitar o seu alistamento como sargento saxofonista da banda.
Sua estada foi longa em João Pessoa, onde conheceu sua esposa, Cleonice dos Santos, que seria sua fiel companheira por mais de 50 anos, até a morte do maestro, em 2006. Com seis meses de casados, em 1948 rumaram para o Rio de Janeiro, onde Moacir Santos se tornou músico e arranjador da Rádio Nacional. No Rio, apesar de sua aversão inicial aos aspectos técnicos da música, sua vontade de estudar e se aperfeiçoar o levou a procurar, por indicação do trompetista da rádio, o renomado maestro César Guerra-Peixe, compositor de obras como A Batalha dos Guararapes. Diz ele, em depoimento no livro Guerra-Peixe, um músico brasileiro:
“... eu tinha verdadeira aversão ao estudo. Quando ouvia a palavra diminuto, Virgem Maria! Isso era para mim uma palavra muito... muito científica... Eu pensava... diminuto, ai meu Deus! Aumentado... Tudo isso me soava muito tecnológico... Mas a ânsia de aprender era grande. Mas essa aversão que eu tinha, desde a Paraíba até chegar à Rádio Nacional, já um compositor de choros, foi superada pelo afã de estudar. Então fui à casa do maestro. Ele morava na Lapa, e nessa época ele estava estudando com o Prof. [Hans-Joachim] Koellreutter aquelas coisas dodecafônicas, e me mostrou aquilo tudo. Logo no primeiro dia de aula, perguntei a ele: ʻeu vou entender dessas coisas, Guerra?ʼ E ele me respondeu: ʻ Vaiʼ. Logo eu percebi que o Dragão não era Dragão, e que diminuto e aumentado eram até coisas gostosas, e então me animei. Tomei tanto gosto em estudar que, quando Guerra foi convidado para ir ao Recife, perguntei a ele com quem deveria continuar meus estudos, e fui para Koellreutter.”
Foi nos anos 1960 que Moacir Santos compôs e gravou sua obra-prima, Coisas, um verdadeiro clássico da música brasileira, reconhecido internacionalmente como um dos álbuns mais geniais da música instrumental moderna
Com Guerra-Peixe e Koellreutter, Santos aprendeu a se aprofundar na música sinfônica tradicional e contemporânea, e seguiu estudando com afinco harmonia, contraponto, história da música, orquestração e piano, com vários professores, tais como Newton Pádua, Assis Republicano, José Siqueira, Joaquina Campos e Radamés Gnatalli. Por fim, tornou-se assistente de Koellreutter. Ainda trabalhou por dois anos na TV Record, em São Paulo.
Nos anos 1960 foi professor de muitos nomes da Bossa Nova. Baden Powell, Nara Leão e Sérgio Mendes estão entre seus alunos, cuja influência foi verdadeiramente marcante. Essa foi uma época boêmia na qual Moacir Santos, por sua natureza estudiosa e focada – não só na música, mas em sua incessante busca espiritual –, não se deixou levar. Diz ele, em depoimento ao MIS reproduzido em sua biografia: “Eu nunca fui boêmio. Eu era muito conservador, muito agarrado com os assuntos filosóficos, teosóficos e coisas místicas, e sem querer me afastar, vamos dizer assim, com uma espécie de receio de perder o céu, eu me afastava simplesmente porque sabia, como que um santo que não vai tomar uma cachaça; ele sabe que, se tomar aquela cachaça, ele vai perder os poderes mágicos que tem”.
Foi também nos anos 1960 que Moacir Santos compôs e gravou sua obra-prima, Coisas, um verdadeiro clássico da música brasileira, reconhecido internacionalmente como um dos álbuns mais geniais da música instrumental moderna. Como diz Roberto Quartin, no encarte do LP:
“Ao reunir suas composições, Moacir Santos criou, mais do que um disco, um documento histórico autêntico dentro do mapa da música popular brasileira. Autêntico, pois trata-se de um músico negro escrevendo música negra e não um garoto de Ipanema contando as tristezas ou de um carioca que nunca foi além de Petrópolis e enriquecer o cancioneiro nordestino. Histórico, em primeiro lugar, por conter uma síntese completa e expressiva do formidável papel que o negro desempenhou em toda a formação de nossa música popular. Este disco é preto desde a capa até o vinilite, do músico ao som que se ouve. Também histórico porque Moacir mostra, como um Edu Lobo ou uns poucos mais, que se pode dar um sentido social à música, sem que para isso se precise mediocrizá-la.”
E, ainda, no site do Itaú Cultural, lemos sobre a influência da música erudita em Coisas – a citação é longa, mas definitiva:
“Além da valorização da cultura afro-brasileira, a obra de Moacir Santos se caracteriza ainda por certo hibridismo, em que ritmos regionais cariocas ou nordestinos (como o samba, o xaxado, o coco, o baião e o maracatu) são reelaborados de maneira singular, por meio de levadas oriundas do jazz, dos gêneros latino-americanos e da música de concerto brasileira ou internacional. Embora Coisas seja comumente classificado como um álbum de samba-jazz, suas músicas dificilmente se enquadram nesse gênero, pois não seguem sua estrutura padrão – tema(s)-improviso-tema(s) – nem se atêm a seus cânones rítmicos (também chamados de ʻlevadasʼ). Segundo Zuza Homem de Mello, o disco ʻnão se encaixa em nenhum estilo da música popular brasileira de sua épocaʼ, dialogando com diferentes tradições. Nesse sentido, é preciso destacar ainda a presença de certo ʻeruditismoʼ no disco, reflexo do anseio de Moacir Santos em produzir música de concerto. O próprio nome dado às suas composições, Coisas, bem como sua numeração de 1 a 10, é um ʻcorrespondente brasileiro, popular e negroʼ do índice catalográfico opus, usado na música erudita europeia. Ao empregar esse termo, o autor entende suas composições não como temas ou melodias que podem ser reelaborados e rearranjados (a exemplo do que ocorre comumente na música popular), mas como obras acabadas. Outro elemento erudito do disco é a anotação rigorosa, por meio da grafia musical tradicional, das partes da seção rítmica (piano, bateria, baixo, guitarra), que trazem levadas originais – prática incomum nos conjuntos de música brasileira, que geralmente improvisam sobre levadas conhecidas.”
Como registra a bela matéria especial feita em sua homenagem na Revista Continente, em 2016: “Em muitas das entrevistas que Moacir Santos concedeu ao longo de sua vida, uma pergunta era inevitável: ʻPor que chamou sua música de coisas?ʼ, ao que ele respondia: ʻOs compositores eruditos chamam suas músicas de opus. Desejei ser um compositor erudito, mas não ousei. Então, coisas é minha tentativa de ser um delesʼ. E foi Guerra-Peixe quem solucionou o ʻconflitoʼ de Moacir Santos, em um aparte durante o Depoimento para a posteridade de Moacir ao MIS-RJ, em 1992: ʻNão existe música popular ou erudita. A música não tem vontade própria para escolher ser isto ou aquilo. Existe, sim, o músico erudito, aquele que estudou, que domina as próprias ideias para além da inspiração por meio de técnicas próprias para issoʼ”.
Entretanto, apesar de toda essa qualidade e brilhantismo, o Brasil dispensou Moacir Santos, não o valorizou e o fez migrar para os EUA. Em 1965 ele foi convidado pelo diretor Zigmunt Sulistrowsky – que foi ao Rio especialmente para procurar um compositor brasileiro – para compor a trilha de seu filme Love in the Pacific. Moacir Santos realizou, então, aquele que considerou seu trabalho mais importante até então: musicou e orquestrou para 65 músicos. Seu trabalho com Sulistrowsky teve ótima repercussão e, entre encontros, desencontros, burocracias e descasos, Santos recebeu uma passagem para visitar os EUA, para assistir à premiere do filme. Acabou chegando após o evento, mas a experiência americana foi definitiva, uma vez que – mesmo trabalhando na Rádio Nacional e tendo apresentado um programa na TV Continental, Coisas de Moacir Santos – a situação aqui não estava nada boa. Diz Andrea Dias: “Em 1967, com medalhas no peito, mas acumulando contas a pagar e salários atrasados, o compositor chegou a pensar em alugar o próprio carro para rodar na praça como táxi. Foi dissuadido da ideia pelo compositor Durval Ferreira, que lhe disse: ʻMoacir, não faça isso, você vai ficar desacreditado!ʼ”. Então ele disse: “Lá [nos EUA] há lugar para todos, para o pior e para o melhor, e todos trabalhando”. Organizou suas coisas, venceu a burocracia e foi.
Apesar de toda a sua qualidade e brilhantismo, o Brasil dispensou Moacir Santos, não o valorizou e o fez migrar para os EUA
À bordo de um velho avião da Força Aérea Brasileira, entre escalas, pousos forçados de emergência, consertos da aeronave em plena rota de viagem e muita turbulência, viajando junto com a bagagem e sentados de lado em bancos de madeira e lona, numa aeronave sem conforto algum, Moacir e sua esposa chegaram sãos e salvos a Miami. De lá rumaram para Nova York, onde Moacir foi tutelado por Sérgio Mendes e outros brasileiros que já haviam se inteirado do universo musical americano. Após alguns trabalhos como freelancer em Nova York, em 1968, por sugestão de Sérgio Mendes, os Santos atravessaram o país e se instalaram na Califórnia, onde Moacir conheceu músicos como o pianista e compositor Clare Fischer – com quem estabeleceria uma longa amizade –, o pianista Horace Silver e trabalharia com ninguém menos que Henry Mancini e Lalo Schifrin, inclusive como um dos ghost composers de suas trilhas sonoras. Há quem diga que há coisas de Moacir Santos nas trilhas dos filmes Missão Impossível e Pantera Cor-de-Rosa. A propósito: no Brasil, Santos também compôs várias trilhas de filmes, inclusive do clássico Ganga Zumba, de Cacá Diegues.
Teve uma carreira longa e prolífica carreira nos EUA; além tocar e gravar com outros músicos, montar seus próprios grupos, fazer arranjos e lecionar música, gravou quatro discos que hoje são raríssimos e considerados obras de gênio: Maestro, Saudade, Carnival of the Spirits e Opus 3, n.º1. Com exceção de Carnival e do próprio Coisas – que estão no YouTube –, os demais podem ser ouvidos nas plataformas de streaming. Em 1985 veio ao Brasil para abrir o primeiro Free Jazz Festival; em 1996 recebeu a comenda da Ordem do Rio Branco (com cerimônia na embaixada brasileira em Los Angeles); e, no mesmo ano, foi homenageado do Brasil Summerfest, em Nova York.
Em 1995, sofreu um AVC que imobilizou sua mão direita e causou a perde da fluência no inglês. No entanto, com determinação e força espiritual – Santos foi um estudioso e adepto das ideias de Helena Blavatsky e da Teosofia –, trabalhou com afinco, já aos 71 anos, para diminuir os prejuízos das sequelas deixadas pela doença. Nesse ponto, a tecnologia foi sua aliada. Diz Andrea Dias: “Nessa fase de recuperação […] equipou-se de computadores e softwares de composição musical, contando, para o novo aprendizado, com a colaboração do pianista Rique Pantoja e do percussionista Edson Gianesi”. Mas em seus documentos ainda encontram-se muitas anotações manuscritas desse período.
Nos anos 2000 houve uma renovação do interesse por sua obra, pelo trabalho excepcional dos músicos e produtores Mário Adnet e Zé Nogueira, com seu projeto Ouro Negro. Iniciado em 1998, em 2000 conseguiram patrocínio para produzir um CD duplo com uma compilação da obra de Moacir Santos. Recuperaram – na verdade reinscreveram – as partituras perdidas de Coisas, com supervisão do próprio mestre, selecionaram um grupo de músicos de primeira linha e, em 2001, gravaram o álbum no Rio. As canções cantadas em inglês, dos álbuns gravados nos EUA, ganharam versões em português, compostas por Nei Lopes e cantadas por Djavan, Gilberto Gil, João Bosco, Milton Nascimento e Ed Motta – além do próprio Moacir.
Em 2004, ainda pelo esforço de Mário Adnet e Zé Nogueira, o LP Coisas foi remasterizado e relançado; em 2005, uma seleção de choros de juventude e maturidade de Santos (guardados em Pasadena) foi gravada no CD Choros & Alegria, com participação de Wynton Marsalis, que, ao ficar sabendo da produção de um novo CD com músicas de Santos, entrou em contato com os produtores e fez questão de participar. E, em 2005, o show Ouro Negro foi montado, com a presença de Moacir Santos e dos músicos e cantores que participaram do CD; tudo foi registrado, juntamente com o documentário, num DVD – que é possível encontrar em sebos. Um songbook ainda foi lançado, em três volumes, com as partituras de Ouro Negro, Coisas e Choros & Alegria. Em 6 de agosto de 2006, Moacir Santos faleceu em Pasadena, na Califórnia, deixando sua obra imortalizada para todo o sempre.
Diante de tanta produção, o leitor que acompanhou atentamente este longo, mas necessário texto – para fazer jus a tamanha obra e personalidade – pode se perguntar: por que Moacir Santos é pouquíssimo conhecido (ao menos fora do meio musical)? Arrisco uma resposta – a mesma que dou para todas as grandes figuras retratadas nesta coluna: porque o Brasil não valoriza os seus heróis. Somos um país sem memória, cuja história foi vilipendiada por ideologias, e somos atualmente atropelados pelo imediatismo de nossa geração. Por isso, agradeço ao Ed Motta, que trouxe ao meu conhecimento a existência de um músico de tamanha magnitude, que atingiu o ápice daquilo que um artista pode alcançar – uma obra belíssima, profunda, original e consistente –, mas que está soterrado por sofrências, traps e funks que, atualmente, fazem milionárias pessoas que são completamente analfabetas musicalmente, mas que atingem diretamente o coração sedento por futilidade das massas de nossos tempos. Pois que façamos justiça ao imenso Moacir Santos, que, como diz Vinícius de Moraes em seu Samba da Bênção, “não és um só, és tantos”.
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