Vocês podem, até mesmo, morrer por uma causa e ter a morte de um mártir; seu sangue derramado pode ser o símbolo de honra para gerações futuras, e milhares podem louvá-los como grandes heróis da história; mas, se não tiverem amor, seu sangue será em vão. O que estou querendo lhes dizer nesta manhã é que um homem pode ser egoísta em sua autonegação e justo em seu autossacrifício. Sua generosidade pode alimentar o seu ego, e a sua piedade pode alimentar o seu orgulho. Sem amor, portanto, a benevolência se torna egoísmo; e o martírio se torna soberba espiritual. (Martin Luther King Jr.)
Caríssimo leitor não cristão, gostaria de hoje, com a devida vênia, falar aos meus irmãos de fé. Não que não estejas convidado a ler – e estás, pois creio que minha breve reflexão tenha caráter universal –, mas porque quero falar diretamente ao coração daqueles que dividem comigo a crença em Jesus Cristo como senhor e salvador da humanidade.
Publiquei recentemente um tuíte que, para minha surpresa, causou estranhamento (para dizer o mínimo) entre alguns cristãos. Uns porque não compreenderam o meu ponto, outros porque simplesmente ousaram discordar de uma obviedade acachapante: a Igreja de Cristo não se une a causas que pretendam “melhorar o mundo” à revelia da compreensão bíblica do que é a natureza humana. O pecado é um mal intrínseco, contra qual todos, individualmente, temos de lutar, e isso inclui o racismo – que pode ser enquadrado nos chamados “pecados sociais”. Peço ajuda aos irmãos católicos para definir, de acordo com a Doutrina Social da Igreja Católica:
O pecado, em sentido verdadeiro e próprio, é sempre um ato da pessoa, porque é um ato de liberdade de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade, mas a cada pecado se pode atribuir indiscutivelmente o caráter de pecado social, tendo em conta o fato de que “em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um se repercute, de algum modo, sobre os outros”. Não é todavia legítima e aceitável uma acepção do pecado social que, mais ou menos inconscientemente, leve a diluir e quase a eliminar a sua componente pessoal, para admitir somente as culpas e responsabilidades sociais. No fundo de cada situação de pecado encontra-se sempre a pessoa que peca.
Não faz sentido um movimento antirracista na igreja, pois o objetivo de tal movimento não é simplesmente trazer o pecador ao arrependimento, não pretende acolher os racistas em amor e orar com eles
O racismo é tão pecado quanto a mentira, a inveja, a ira; ou como a xenofobia, o machismo e a pedofilia. São todos fruto de nossa natureza em rebeldia contra Deus. Por isso a Igreja, enquanto instituição, não deve investir em movimentos que visem a tratar de pecados específicos como se estes fossem mais prejudiciais que outros – a não ser que, de fato, suas consequências, os males que causam sejam inquestionavelmente generalizados (voltarei a isso adiante). Não faz sentido um movimento antirracista na igreja, pois o objetivo de tal movimento não é simplesmente trazer o pecador ao arrependimento, não pretende acolher os racistas em amor e orar com eles, mas, dentre outras coisas, reformular a organização da Igreja sem levar em consideração as consequências – inclusive espirituais – que isso acarreta.
Por exemplo: se prática antirracista tem como objetivo, como afirma Sílvio Almeida em seu livro Racismo estrutural, “a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo [...] b) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e de prestígio na instituição; c) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais; e d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero”, em que sentido a igreja, enquanto instituição, pode promover tais exigências? Como conciliar, por exemplo, a “ascensão de minorias” com a vocação bíblica exposta na carta de Paulo aos Efésios, capítulo 4, versículos 11 e 12? Podemos, obviamente, “manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais” racistas, assim como devemos mantê-los para discussão de práticas pecaminosas de todo tipo. Se na sua igreja local ainda não ocorrem tais debates, basta que sejam organizados dentro do contexto que a fé bíblica nos autoriza. A impressão que temos é de que tais movimentos, como não nascem no seio da Igreja, não possuem a prudência necessária à sua abordagem no contexto cristão e não levam em consideração que não é possível adequar a instituição cristã às suas demandas, mas suas demandas devem se adequar à instituição cristã. Muitos desses movimentos são seculares (para não dizer anticristãos), e suas pretensões não podem ser alcançadas sem ferir o mandamento da Igreja. E, como eu disse anteriormente, a não ser que pecados sociais de indivíduos ou grupos firam de maneira inequívoca e generalizada a sociedade, a Igreja deve compreendê-los de maneira indistinta e lutar contra todos de igual maneira. As exceções confirmam a regra.
Dietrich Bonhoeffer – sobre quem já tratei aqui, nesta Gazeta do Povo –, diante das atrocidades provocadas pelo nazismo, propõe, em sua obra inacabada Ética, uma Confissão de Culpa da Igreja, à qual a Igreja deveria se submeter diante dos males a qual sucumbiu de maneira generalizada. O texto, chocante e tocante ao mesmo tempo – se pensarmos que foi escrito em plena Segunda Guerra Mundial – inicia desse modo:
A igreja confessa não ter procedido com abertura e clareza suficientes em sua pregação do Deus único que se revelou por todos os tempos em Jesus Cristo e não tolera outros deuses a seu lado. Ela confessa sua temeridade, seus desvios, suas perigosas concessões. Muitas vezes ela descurou de seu ministério de vigilância e de seu ofício de consolação. Com isso, negou muitas vezes a devida misericórdia aos marginalizados e desprezados. Calou onde devia gritar, porque o sangue de inocentes clamava aos céus. Não achou a palavra certa na forma certa e ao tempo certo. Não resistiu até o máximo à apostasia e se tornou culpada da impiedade das massas. A igreja admite ter mal-usado o nome de Jesus Cristo, ao envergonhar-se dele diante do mundo e não ter combatido com a necessária veemência o abuso deste nome para fins infames; ela assistiu, passivamente, acontecerem violência e injustiça sob o manto do nome de Cristo. Deixou sem réplica, também, o escárnio público do santíssimo nome, favorecendo, com isso, tal escárnio. Reconhece que Deus não deixará impune aquele que, como ela, abusar assim do seu nome.
E, após uma sequência duríssima de confissões, termina dizendo: “A igreja, ao confessar a culpa, não dispensa os indivíduos de sua confissão pessoal; antes, os chama para se integrarem na comunhão da confissão de culpa. A humanidade apóstata só pode subsistir perante Cristo como julgada por ele. A igreja conclama a todos que possa atingir para se colocarem sob este juízo”. O nazismo foi um mal inequívoco, concreto e generalizado, contra o qual a Igreja institucional deveria ter lutado.
Atualmente, os motivos apresentados para que se formem movimentos antirracistas – inclusive dentro das igrejas – são no mínimo questionáveis
A Igreja Confessante, criada em 1933 e liderada por Bonhoeffer, Karl Barth e outros pastores/teólogos, foi um importante movimento cristão de resistência ao nazismo, guardando, entretanto, suas características evangélicas. Barth, aliás, em 1946 (após a guerra, portanto), proferiu uma palestra de título Comunidade Cristã e Comunidade Civil, que consta no volume de artigos de nome Dádiva e Louvor, afirmando que a Igreja não pode se confundir com a comunidade civil, que “precisa permanecer Igreja. Sua existência deve se limitar ao círculo interior do Reino de Cristo. A comunidade dos cristãos tem uma tarefa que não pode ser tirada pela comunidade civil e pela qual ela, por sua vez, jamais poderá empenhar-se naquelas formas em que a comunidade civil enfrente as suas”. Porém, “justamente ao cumprir a sua própria tarefa, a comunidade cristã participa também da comunidade civil”. Ou seja, as demandas Igreja não se confundem com as demandas civis, antes as complementam.
Martin Luther King Jr. liderou um movimento de proporções nacionais contra leis que não só segregavam negros, mas os submetiam a situações de humilhação social e violência. No entanto, o fez nos termos que julgou mais apropriados aos cristãos, por meio da não violência, proclamando:
Agora, devo me apressar a dizer que precisamos reafirmar o nosso compromisso com a não violência [...] E quando alguém tenta demonstrar aos devotos da violência que tipo de ação seria mais efetiva, as respostas são ruidosamente incoerentes. Eles falam às vezes em destituir o estado racista e os governos locais; às vezes, em conflitos armados. Não percebem que nenhuma guerra civil jamais foi bem-sucedida na tentativa de depor violentamente um governo, a menos que o governo já tivesse perdido a fidelidade e o controle efetivo das forças armadas. Qualquer um em sã consciência sabe que isso não acontecerá nos Estados Unidos [...]. Esta não é a hora para idealizações românticas e debates filosóficos vazios sobre a liberdade. Esta é a hora para a ação. O que precisamos é de uma estratégia de mudança, um programa de ações que trará o negro para o centro da vida americana o mais rápido possível. Até agora, isso só foi oferecido pelos movimentos de não violência. Sem esse reconhecimento, terminaremos com soluções que não resolvem, respostas que não respondem e explicações que não explicam. Portanto, lhes digo hoje que ainda me apoio na não violência. E ainda estou convencido, e ainda estou convencido de que esta é a arma mais potente à disposição do negro nesta sua luta por justiça neste país. E digo mais: estou preocupado em melhorar o mundo. Estou preocupado com a justiça; estou preocupado com a fraternidade; estou preocupado com a verdade. E quando alguém se preocupa com isso, não se pode defender a violência; pois, com violência, mata-se o assassino, mas não o assassinato. Com violência, mata-se um mentiroso, mas não se estabelece a verdade. Com violência, mata-se quem nos odeia; mas não se mata o ódio com a violência. A escuridão não elimina a escuridão; apenas a luz a eliminará.
John Wesley, ainda nos tempos da escravidão, fala aos traficantes de escravos nos seguintes termos: “Posso falar abertamente contigo? Assim eu devo. O amor me constrange a fazê-lo, amor a ti, bem como às pessoas com quem tu te preocupas. Haverá um Deus? Tu sabes que sim. Será ele um Deus justo? Se sim, deve haver um espaço de retribuição, um estado em que o Deus justo recompensará cada pessoa de acordo com suas obras. Qual recompensa será dada a ti? Oh, pense enquanto há tempo! Antes que sejas jogado à eternidade! Pense agora, Ele haverá de julgar sem misericórdia aos que não mostraram misericórdia”. Um exemplo maravilhoso e contundente de piedade cristã.
Os exemplos citados acima sugiram diante de circunstâncias inequívocas de pecados sociais específicos, de consequências sociais generalizadas. Atualmente, os motivos apresentados para que se formem movimentos antirracistas – inclusive dentro das igrejas – são no mínimo questionáveis, misturados a problemas sociais e econômicos profundos que, se analisados fria e detalhadamente, suplantam o problema “racial”. São mais pautados em ideologias e narrativas politicamente corretas do que em situações concretas. Por isso a Igreja não deve aderir a eles de modo acrítico, sob o risco de perigosa secularização.
Movimento antirracista na Igreja é o que tem se mostrado: idolatria, uma vez que coloca uma Causa – uma causa abstrata e questionável – acima do Evangelho
Sem falar que a animosidade desses movimentos atuais também é uma prova de que não estão preocupados com a perspectiva cristã – que, ao mesmo tempo em que denuncia a universalidade do pecado, também reconhece a universalidade da salvação e não coaduna com frases como “racistas não passarão” ou “fogo nos racistas”, muitas vezes propagadas por esses movimentos. Ou bobagens coletivistas como disse um jovem militante antirracista, negro e evangélico, num vídeo em que buscava denunciar o caráter “colonialista” de um movimento evangélico voltado para jovens: “não haverá avivamento enquanto existir opressão, racismo, injustiça e perseguição aos direitos humanos” – uma estupidez que reduz o agir de Deus a “ações sociais”.
Por isso, reafirmo: movimento antirracista na Igreja é o que tem se mostrado: idolatria, uma vez que coloca uma Causa – uma causa abstrata e questionável – acima do Evangelho e troca a piedade cristã por militância política. Como diz Fitafuso, o sarcástico demônio que ensina seu sobrinho Vermebile, no excepcional Cartas de um diabo a seu aprendiz, de C.S. Lewis: “Uma vez que você tenha feito do mundo um fim em si mesmo, e da fé apenas um meio para chegar até ele, você estará a poucos passos de ter controle sobre o seu paciente, e fará pouca diferença a meta terrena que ele busca. Ele será nosso, contanto que encontros, panfletos, politicagens, movimentos, causas e cruzadas sejam mais importantes para ele do que preces, sacramentos e caridade – e quanto mais ‘religiosos’ (nesses termos) eles forem, mais controle teremos sobre eles. Você devia ver só quantas jaulas cheias deles existem aqui embaixo”.
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