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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

N. Steinhardt e a suprema liberdade dos “incanceláveis”

Mosteiro de Rohia, na Romênia. (Foto: Manastirea Rohia/Wikimedia Commons)

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A atitude livre é aquela de quem não se perturba com nada nem está preso a nada; nem condicionou a sua felicidade a uma situação dada, nem se preocupou consigo mesmo, antes está mergulhado totalmente na amorosíssima vontade de Deus e se despojou de si mesmo. (Mestre Eckhart)

O ano de 2020 vai ficar na memória de nossa geração e entrará para a história da geração vindoura. Foi um ano de desafios; um ano de redescobrirmos nossa finitude e fragilidade; de temermos um mal invisível, quase-numinoso; de nos colocarmos como aqueles que se protegiam do Nevoeiro do conto de Stephen King; de, diária e insistentemente, contarmos os nossos mortos. Mas também foi ano que nos abriu a oportunidade de reorientarmos nossos corações ao amor e de buscarmos um sentido real e profundo para nossas vidas em meio a tamanha adversidade que se impôs de modo tão abrupto e inescapável. Tais questões foram temas de conversas com amigos e familiares, de aulas e de artigos meus ao longo desse conturbado ano; assunto recorrente em meio à ansiedade e às incertezas.

Mas não foi, pelo menos para nós, brasileiros, um ano somente marcado pela pandemia. A polarização criada ainda na era PT, e que foi assumida integralmente não só pelo candidato Jair Bolsonaro como também por seu governo, intensificando, através de uma militância que maneja relativamente bem as redes sociais, o clima de nós contra eles que impossibilita qualquer prudência na condução do país, transbordou para as reações e para a condução da pandemia do novo coronavírus.

Fomos obrigados a acompanhar a quase absoluta politização da doença, primeiramente por um falso dilema – sim, porque o maniqueísmo é o combustível dos extremistas – imposto a nós por nossos mui dispendiosos políticos: saúde vs. economia, respectivamente personificado nas figuras políticas do governador de SP, João Dória, e do presidente da República Jair Bolsonaro.

Assim, os brasileiros que não habitam as redes sociais se viram obrigados a acompanhar, atônitos, rivalidade política em plena pandemia, menosprezo, negacionismo, imprudência, teorias conspiratórias, estimativas absurdas, uma boa dose de alarmismo, oportunismo e opiniões sem fundamento, em vez de um planejamento coordenado pelo governo federal (sim, caro leitor, por quem seria?) com estados e municípios, a fim de tranquilizar a população e melhor conduzir o país.

Mas quero dar um passo atrás e falar diretamente ao coração de algumas pessoas – dentre as quais me incluo; e com isso digo que, talvez, esse artigo não seja para ti, leitor amigo. Entretanto, sigamos.

Toda essa polarização teve ainda um efeito pouco percebido por muitos: a tentativa de relegar ao ostracismo todos aqueles que não se dispuseram a negociar sua integridade, que não sucumbiram a ideologias, sejam elas de direita ou de esquerda. Todos aqueles que vinham trabalhando em prol do pensamento conservador e liberal – cujas bases estavam sendo reconstruídas havia, pelo menos, dez anos, antes que o chamado bolsonarismo sequestrasse tais pautas para seu projeto. Todos os que assumiram uma posição crítica em relação ao atual governo (eu o fiz desde o início), foram sumariamente demonizados como isentões pela militância governista (que se considera a verdadeira direita) e obrigados a ocupar um lugar de resistência democrática em meio à violência e o autoritarismo que se instauraram em nome de uma luta folclórica contra o comunismo.

Eu, que desde 2012 produzo conteúdo com ideias consevadoras, fui obrigado a ver muitos dizerem que “surfei na onda bolsonarista”, ou que sou irrelevante por não ter seguidores e likes suficientes. O que as tais pessoas se esquecem é que, primeiro, minha profissão está longe das redes sociais; sou professor e dou aulas para cerca de 400 alunos todos os anos. Que tenho um curso on-line, desde 2018, em que a política é um assunto lateral. Que em meu canal do youtube – onde, infelizmente, tenho produzido pouco, mas quero melhorar – não há um vídeo sequer falando de Bolsonaro. E mesmo em meus artigos, aqui nesta Gazeta do Povo, só me refiro à política em ocasiões bastante específicas – e em sua maioria, para alertar meus leitores para os perigos de um pseudoconservadorismo (como este, de 31/05/2018, bem antes das eleições, portanto) que está sempre à espreita, inclusive no bolsonarismo. Recebi a Ordem do Mérito Cultural em 2017; e, em 2018, ao ser indicado publicamente pela deputada Janaína Paschoal para uma posição no governo Bolsonaro, fui chamado de vendido ao governo Temer por um blogueiro que sacrificou nossa amizade no altar desse mesmo bolsonarismo.

Qualquer entusiasmo que eu tinha em relação a Jair Bolsonaro – o considerei necessário, como deputado, nos embates parlamentares contra o petismo – acabou em 2017, quando seu filho Zero Três atacou gratuitamente um grande amigo (e colega de Gazeta do Povo), publicitário competentíssimo e um dos maiores analistas políticos do país, a fim de atingir uma possível candidatura de João Dória à presidência. Um ataque gratuito, precoce e absolutamente infundado a alguém que convivera por longo tempo com a família Bolsonaro e para ela prestara serviços na candidatura do Zero Um à prefeitura do RJ. Ataque covarde que, inclusive, resvalou em ameaças de bolsonaristas contra sua família. Naquele momento percebi que os Bolsonaro tinham um projeto pessoal de poder e que fariam de tudo para atingi-lo.

Por essas e outras que dou graças a Deus por manter a minha independência, e gostaria de convocar a todos aqueles que sofreram ou sofrem ataques de bolsonaristas e, inclusive, viram suas oportunidades e audiência diminuírem por conta não só da nova polarização – que elegeu como inimigos também a direita não governista –, mas também da inexistência de um centro dialógico na política e na mídia, que assumam para si, em 2021, as Três Soluções propostas pelo escritor e monge ortodoxo Nicolae Steinhardt, em sua maravilhosa obra-prima O diário da felicidade.

N. Steinhardt, advogado, crítico literário e escritor romeno, foi preso em 1959 e condenado a doze anos de trabalhos forçados por se recusar a testemunhar contra seu amigo e estupendo filósofo Constantin Noica – sobre quem já escrevi. Foi severamente torturado pelo regime comunista do sanguinário Nicolae Ceauşescu, convertendo-se à Ortodoxia e recebendo o batismo na prisão, em 15 de março de 1960. Liberto em 1964, após alguns trabalhos braçais é estimulado pelos amigos e mergulha na vida literária, produzindo traduções e crítica de obras clássicas. Em 1980 é recebido, pelo abade Serafim Man, como monge no Mosteiro de Rohia, onde passa a viver até sua morte, em 29 de março de 1989.

A primeira versão de seu Diário havia sido confiscada pela Securitate – a polícia secreta do regime comunista; Steinhardt tenta reconstruir a obra, resultando num volume ainda maior. Em 1975 a Securitate devolveu a primeira versão, e esta, após circular clandestinamente por décadas, é finalmente publicada em 1991, após a morte do autor. O diário da felicidade, como diz seu tradutor, meu caríssimo amigo Elpídio Fonseca, “reúne em si tantos gêneros literários que só a humildade do autor, aliada à sua profunda argúcia, poderia chamá-lo de diário, e mais ainda da felicidade”. É uma obra profunda, densa, marcada pelas memórias, pelo sofrimento e pelas alegrias do monge literato que nos penetram a alma como raios de luz – da Luz de Deus. E suas Três Soluções, propostas logo no início do diário, apesar de serem direcionadas, como um testamento político àqueles que, como ele, viviam no “universo cerrado” do atroz regime comunista de Ceauşescu, se aplicam “a qualquer tipo de produto do totalitarismo”. E como, para mim, Jair Bolsonaro é um produto do autoritarismo e totalitarismo que ele tanto admirava – e do qual parece nunca ter se arrependido de fato –, creio que as soluções propostas por Steinhardt sirvam, simbolicamente, a nós, que somos perseguidos pelo regime atual.

A primeira solução proposta do N. Steinhardt é a do escritor [Alexandr] Solzhenitsyn, que consiste em, “para quem passa pelo limiar da Securitate ou outro qualquer órgão análogo de inquérito, em dizer a si mesmo, com decisão: neste exato instante, morro mesmo. Permite-se-lhe dizer a si próprio, consolando-se: pobre da minha juventude, ou, pobre da minha velhice, da minha esposa, dos meus filhos, de mim, do talento ou dos bens ou de minhas forças, de minha amada, dos vinhos que já não beberei, dos livros que já não lerei, dos passeios que já não farei, da música que já não ouvirei etc. Mas algo é seguro e irreparável: doravante sou um homem morto. Se pensar assim, sem hesitação, o indivíduo está salvo. Já não se pode fazer nada contra ele; já não tem nada com que possa ser ameaçado, chantageado, iludido ou enganado. Do momento em que se considera morto, nada mais pode assustá-lo, enganá-lo, atraí-lo, excitá-lo. Já não morde isca nenhuma. Já não tem – se já não espera, pois saiu do mundo – o que desejar, o que manter ou recuperar, nem por que vender a alma, a tranquilidade, a honra. Já não existe a moeda com que se possa pagar o preço da traição”. Ou seja, esse homem é, definitivamente, livre.

A segunda solução é a de Alexandr Zinoviev, e “é encontrada por uma das personagens do livro As alturas ocas. A personagem é um jovem, apresentado com o apelido alegórico de O Rebelde. A solução reside na total inadaptação ao sistema. O Rebelde não tem domicílio certo, não tem documentos, não está no mercado de trabalho; é um vagabundo, um parasita, um pobretão e vadio. Vive de hoje para amanhã do que se lhe dá, do que aparece, de bagatelas […]. Não entra no sistema por nada desse mundo, nem mesmo no serviço mais insignificante, mais inútil, mas desengajado […]. Tal homem, situado à margem da sociedade, é também ele imune: não há de onde possam exercitar sobre ele nenhuma pressão, não têm o que lhe tirar nem lhe oferecer […]. Tem a língua solta, fala até cansar, dá voz às mais arriscadas anedotas, não sabe o que é respeito, vê tudo de cima, diz o que lhe passa pela mente, pronuncia a verdade que outros nem sequer poderiam imaginar sussurrar, é o menino do conto de fadas A roupa nova do imperador, de Andersen. É o bufão do Rei Lear. É o lobo da fábula – também ela temerária – de La Fontaine: não se inquieta diante da coleira”. Tal homem também é absolutamente livre.

E a terceira e última solução é a de Winston Churchill e Vladimir Bukovski, e resume-se que “em presença da tirania, da opressão, da miséria, das adversidades, das desgraças, das calamidades, dos perigos, não só não te abates, mas, ao contrário, tiras delas a vontade louca de viver e lutar. Em março de 1939, Churchill disse a Martha Bibescu: ‘Vai haver guerra. Pó e pólvora vão ser feitos do Império Britânico. A morte nos espreita a todos. No entanto, sinto-me rejuvenescer vinte anos’. Quanto mais as coisas vão mal para ti, quanto mais imensas são as dificuldades, quanto mais és ferido, mais cercado e submisso aos ataques, quanto mais não entrevês nem sequer uma esperança probabilística e racional, quanto mais o cinzento, a escuridão e o viscoso se intensificam, se inflam e se enredam de modo mais inextricável, quanto mais o perigo te desdenha mais diretamente, tanto mais tens o desejo de lutar e conheces um sentimento (crescente) de inexplicável e eminente euforia”.

És assaltado de todas as partes, com forças infinitamente mais fortes que as tuas: lutas. Elas te vencem: e as desafias. Estás perdido: atacas. (Assim dizia Churchill em 1940). Ris, afias os dentes e a faca, rejuvenesces. Formiga-te a felicidade, a felicidade não expressa de também ferires, ainda que sejas infinitamente menor. Não apenas não te desesperanças, mas também não te declaras vencido nem morto, mas gostas plenamente a alegria da resistência, da oposição e experimentas uma sensação de impetuosa e demente alegria.

E Steinhardt continua: “Com a solução de Churchill se identifica também a solução de Vladimir Bukovski. Este conta que quando recebeu a primeira convocação na sede da KGB, não pode fechar os olhos durante toda a madrugada. Coisa natural, dirá consigo o leitor do livro de memórias dele, coisa mais do que natural: insegurança, medo, emoção. Mas Bukovski continua: não pude dormir de impaciência.  A custo esperava que se fizesse dia para estar perante eles, para dizer-lhes tudo o que penso deles e entrar neles como um tanque de guerra. Não podia imaginar felicidade maior para mim”.

Tais homens, paciente leitor, que estão mortos para o mundo, que se recusam a entrar no sistema, e que estão dispostos não só a resistir bravamente e lutar, mas a entrar em seus detratores como tanques de guerra, lançando-lhes em rosto toda sua inépcia, toda sua covardia e estupidez pretensiosa, são mais do que livres, são incanceláveis. É a vós, meus caros, que desejo um Ano Novo repleto de conquistas e de bênçãos.

Feliz 2021!

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