A experiência imaginativa que a arte nos proporciona oferece-nos a oportunidade de partilharmos situações não vividas, como um vislumbre da realidade, ou de confirmar nossas experiências, fazendo com que nos sintamos parte de um mundo maior e mais complexo que o nosso, livrando-nos do individualismo. É impossível ler Dostoiévski sem que aquela tensão existencial em relação a Deus incomode nosso espírito; ou ouvir Gustav Mahler – assunto do artigo da semana passada – sem nos conscientizarmos de nossa finitude.
Dias atrás assisti a um filme muito interessante, cuja história veio confirmar algo que tenho dito com certa frequência ultimamente: nada resiste ao talento. Mas, nesse caso, como ficará claro já, já, há uma ressalva: quase nada.
Trata-se do filme Chocolate, de 2016, dirigido pelo francês (descendente de imigrantes marroquinos) Roschdy Zem, e estrelado pelo imponente Omar Sy – que fez um sucesso estrondoso, ao lado de François Cluzet, em Intocáveis – e por James Thiérrée, neto de ninguém menos que Charles Spencer Chaplin, ou Charlie Chaplin, para os íntimos.
[Contém spoilers]
O filme narra a história de Chocolat, o primeiro palhaço negro da França; um clown augusto (palhaço do tipo bobalhão e desajeitado) que, com George Footit, o clown branco (aristocrático e moralista), revolucionou o mundo do circo parisiense do fim do século 19 e início do século 20, a chamada Belle Époque. Chocolat, cujo nome verdadeiro é Rafael Padilla, nasceu em Cuba, em 1868, de uma família de africanos escravizados. É descoberto por George Foottit – que, na verdade, se chamava George Tudor Hall – enquanto trabalhava em um circo no interior de Paris, fazendo o humilhante papel de africano selvagem. Foottit, descendente de uma família circense, já era um palhaço famoso na época, mas estava em decadência e não conseguia inovar suas apresentações. Ao ver Rafael, lhe oferece a oportunidade de formar dupla com ele, uma dupla inusitada e nunca vista: um palhaço branco e um negro, juntos no picadeiro. Como ele diz, ao tentar convencer Rafael: “Seremos os dois lados de uma mesma moeda. Completamente diferentes, mas indissociáveis”. E funciona maravilhosamente bem. A dupla faz um enorme sucesso, e se torna a principal atração do Nouveau Cirque, o maior e mais badalado circo de Paris.
As apresentações se baseiam naquela conhecida fórmula, tão repetida desde então: o clown branco é o inteligente, autoritário e líder; enquanto o augusto é o estúpido saco de pancadas e alvo dos tapas e pontapés do outro. Isso rende muitas risadas, e a dupla se torna, de fato, indissociável.
Mas o sucesso não faz bem a Chocolat. Enquanto Foottit, em sua vida pessoal, se mostra um sujeito reservado – e, de certo modo, melancólico –, Chocolat é o extremo oposto: expansivo, mulherengo e beberrão, gastando todo o seu dinheiro em jogos, bebidas, prostitutas e roupas caras. Começa a dispersar do trabalho, não ensaia mais seus números, chega atrasado e de ressaca para as apresentações. Endivida-se por conta dos jogos. Foottit o adverte, mas ele parece não ouvir. Provavelmente, por conta de sua história e das discriminações que sofre, um sentimento de autoafirmação toma conta dele e torna sua ruína iminente.
É preso por falta de documentos e, na cadeia, é violentamente espancado. Na cela onde o colocam, conhece Victor, um revolucionário comunista e militante negro, que trata de lhe envenenar a alma em relação ao trabalho com Foottit: “Você é o artista que leva chute na bunda de um branco toda noite? Parece que você faz os ricos rirem. […] Footit tem medo de perder você. Ficar sem o escravo, sem a vítima preferida. Ele se tornaria banal. Um banal sem graça”. Ao sair da prisão, Chocolat é outra pessoa; passa a questionar seu papel na dupla e o fato de Foottit ganhar mais que ele; reclama seu protagonismo – para usar uma palavra da moda. Foottit estranha sua rebeldia repentina, e tenta lhe conscientizar de onde veio; que, se não fosse por ele, provavelmente ainda estaria fazendo papel de selvagem num circo pequeno do interior. Mas, em vez de sua revolta diminuir, ela aumenta.
Enquanto isso, Victor, já fora da prisão, ao saber que Chocolat conhece Shakespeare, pois tinha lido Romeu e Julieta mais de uma vez – presente de uma antiga namorada dos tempos do circo interiorano –, lhe infunde a ideia de que ele só será valorizado e respeitado se, no teatro, representar Otelo, a única peça de Shakespeare escrita para um negro, mas nunca representada por um. Ele conta seu desejo a Oller (dono do Nouveau Cirque), que tenta acalmá-lo, trazê-lo de volta à realidade. Diz que, apesar de seu papel “humilhante” como augusto, ele é muito respeitado, amado pelas crianças e pelo seu público; que graças a ele e Foottit o humor nunca mais foi o mesmo, que seu nome já figurava no cinema, na publicidade e em brinquedos. E era verdade: foram elogiados pelo escritor Julien Green e pelo cineasta Jean Cocteau. Ganharam a simpatia do pintor Henri Toulouse-Lautrec, famosíssimo à época, que os representou algumas vezes. E figuraram num dos primeiros filmes dos Irmãos Lumière:
Oller conclui: “Não jogue tudo fora intempestivamente. As pessoas aceitam você como palhaço porque um branco chuta sua bunda toda noite. Não sei se aceitarão você de outro modo. Como ator, não creio que estejam prontos a aceitar”. Notem: ele não diz “nunca aceitarão”, mas “não estão prontos”. É um chamado à prudência. Mas não adianta. Ele rompe de modo violento com Foottit e, com a ajuda de uma enfermeira por quem se enamorara, consegue uma oportunidade no Teatro Antoine para representar Otelo.
Apesar da enorme dificuldade que apresenta para decorar os textos, e da desconfiança de todo o elenco, Rafael Padilla – que não quer mais ser chamado de Chocolat – se esforça e consegue encarnar o Mouro de Veneza. Mas a estreia é um fiasco; ele é vaiado. Gritam-lhe: “volte para o circo!” Tal experiência o desespera de vez. Ele afunda no álcool, nas drogas (láudano) e no jogo. É espancado por capangas de um cassino e sua vida se encerra como começou, num circo do interior; não como selvagem, mas como servente.
O roteiro toma muitas liberdades em relação à história original. A figura de Victor, por exemplo, não existe. Mas não deixa de ser um catalisador do racismo que Rafael Padilla sofreu na sociedade francesa – e isso é real. Seu rompimento com Foottit também não foi pela intenção de fazer teatro ou mesmo pelo papel humilhante que fazia. Na verdade, eles foram parceiros por 20 anos – de 1890 a 1910 –, e só pararam quando as pessoas se cansaram de seus números e o sucesso se foi. Eles tentarem carreira solo, não funcionou (eram indissociáveis). Rafael Padilla atuou como ator de teatro, mas sem Shakespeare e sem sucesso. Sucumbiu, de fato, ao álcool, e morreu quase como um indigente, em novembro de 1917. George Foottit, que na vida real era casado, tentou alavancar a carreira de seus filhos no circo, mas, sem conseguir, acabou abrindo um bar em Paris. Morreu em abril de 1921.
É evidente que o modo como o filme narra a história de Chocolat tem a intenção de levantar o problema da imigração e da xenofobia na Europa. O próprio diretor, como filho de imigrantes, confessou isso. Os tempos são propícios a esse debate. As imigrações em massa de países islâmicos, destruídos pelas guerras civis e pelo terrorismo – e a infiltração dos próprios terroristas como imigrantes –, têm gerado muita discussão entre os governantes e a população. No entanto, o filme cria um anti-herói, alguém que sucumbe por seu próprio orgulho e sua incapacidade de perceber a realidade. De compreender que uma mudança bastante radical já se havia estabelecido, mas era preciso cautela para o próximo passo. Chocolat não soube esperar. Foi imprudente e não aguardou o tempo propício a uma nova mudança de paradigma. E o resultado foi aquele no qual todo movimento revolucionário chega: o fracasso, a decepção e a morte. Ainda assim, é um belo filme, com fotografia e reconstituição de época fascinantes, e atuações muito boas de Omar Sy e James Thiérrée.
Mas a história trágica de Chocolat me lembrou de um contraexemplo excepcional. Aqui, no Brasil, também tivemos o primeiro palhaço negro, e seu nome é Benjamim de Oliveira.
O moleque Beijo, como era chamado quando pequeno, nasceu em 11 de junho de 1870, de uma família de escravos, numa cidadezinha de Minas Gerais chamada Patafufu – hoje, Pará de Minas. Seus pais eram escravos de um militar, o capitão Evangelista, que era negociante de escravos; mas os filhos eram alforriados, pois sua mãe era uma escrava de estimação. As lembranças da família lhe doíam – principalmente do pai, pois era um homem extremamente severo, que, além de lhe espancar constantemente, fazia o papel de capitão do mato, “caçando” negros fugidos para o senhor. Benjamim tinha uma enorme mágoa: “Homem terrível, o meu pai”, disse ele, em entrevista à Revista da Semana, em 1944. Quando tinha 12 anos, o Circo Sotero chegou em Patafufu. Sem dinheiro para a entrada, pediu à sua mãe que fizesse broas para ele vender, na porta do circo, aos artistas. Aproximando-se daquelas figuras exóticas, o sonho de se tornar artista de circo foi crescendo; sonhava em ser trapezista. Quando soube que o circo ia embora, fugiu com a trupe. Fez todo tipo de trabalho que os artistas de circo devem fazer: lavou lona, cuidou de bichos etc. Aprendeu a fazer acrobacias e, estreando, foi ginasta, trapezista e artista equestre.
Após quase três anos trabalhando no Circo Sotero, fugiu novamente, pois o dono do circo desconfiou que sua esposa o estivesse traindo com Benjamim. Ele também conta que apanhava com frequência do sr. Sotero. Fugiu com um grupo de ciganos, mas teve de fugir outra vez, pois estes o queriam trocar por um cavalo. Ele afirma na entrevista: “Meu destino era fugir… destino de negro”.
Aos 18 anos, já na cidade de São Paulo, passa a trabalhar no grande circo de Albano Pereira. Já era relativamente famoso. Um belo dia, o palhaço Freitinhas – personagem de Antônio de Freitas, uma das principais atrações do circo – adoeceu. Albano olhou para Benjamim e disse: “Benjamim, pinte a cara de branco e banque o palhaço!” Mesmo cheio de medo, encarou a tarefa. Foi recebido com vaias, muitas vaias. Mas persistiu. E essa persistência durou um ano e oito meses. Entenda, caro leitor: por quase dois anos Benjamim de Oliveira foi vaiado, dia após dia, apresentação após apresentação; recebeu cascas de banana, laranjas e até uma pedrada na cabeça – cuja cicatriz gostava de ostentar –, mas não desistiu. Como ele disse: “Moço, eu embirrei com aquelas vaias e disse pra mim mesmo: Benjamim, tu tem que sê palhaço, nem que te joguem bala de ‘metraia’ na cabeça. E virei mesmo palhaço”. A primeira vez que foi aplaudido, disse que chorou no palco: “Encostei-me ao palco e comecei a chorar mansamente. Lá de dentro, o diretor do espetáculo fazia sinais desesperados: ‘Isto é o sucesso, Benjamim!’”
Benjamim fez um sucesso tão estrondoso como palhaço, sobretudo como palhaço-cantor e mestre das pantomimas, que, em 1892, vai parar no Rio de Janeiro, a capital federal na época. Em 1893, trabalhando no circo do Comendador Caçamba, no subúrbio do Rio, foi reverenciado pessoalmente pelo então presidente da República, marechal Floriano Peixoto. Em 1895, passa a trabalhar no circo de Affonso Spinelli, de quem, posteriormente, se tornou sócio. Foi lá que Benjamim se transformou, para além do primeiro palhaço negro do Brasil, no precursor do Circo-Teatro – encenação de peças teatrais consagradas, adaptadas para o circo. Ou seja, o mesmo teatro que não aceitou o clown augusto Chocolat, em Paris, Benjamim trouxe para dentro do circo, revolucionando o circo e o teatro para sempre. Benjamim montava, ensaiava os artistas e atuava. Trabalhou com muitos artistas famosos da época, dentre eles Catulo da Paixão Cearense, de quem era amigo, e com outro grande palhaço e cantor (negro também), Eduardo das Neves. Tornou-se figura emblemática da cena artística brasileira, sempre louvado nos noticiários. Além disso, gravou discos e participou de filmes.
Após mais de 30 anos de trabalho ininterrupto, o Circo Spinelli fechou, mas Benjamim continuou a trabalhar em outros circos até 1947, quando se aposentou e passou a receber, por pressão do jornalista Brício de Abreu e alguns deputados, uma pensão do governo. Morreu pobre? Ele mesmo respondeu, em 1944: “Moço, eu sou riquíssimo! Durante minha vida de trabalho acumulei um enorme capital. Quer saber? Não conheço ninguém que seja meu inimigo. Meu capital está aí”. Morreu em 3 de maio de 1954, aos 83 anos.
Dele disse o jornalista, dramaturgo e poeta Artur de Azevedo:
“[Benjamim de Oliveira] é o nome do mais popular dos artistas do circo Spinelli. É um negro, mas um negro apolíneo, plástico; um negro que, metido nas suas bombachas de ‘clown’, me pareceu Otelo, que saltasse das páginas de Shakespeare para um circo.”
A França da Belle Époque não teve o seu Otelo negro, nós tivemos o nosso!
Ao vermos o contraste entre a vida de Chocolat e Benjamim de Oliveira, temos a certeza de que a vida é feita de escolhas. Você pode não ter escolhido como ela começou, mas como terminará só você pode determinar.
Deixo-lhe, caríssimo leitor, com a sabedoria de quem passou por sofrimentos quase inenarráveis em campos de extermínio nazistas, e sobreviveu – Viktor Frankl, o grande psiquiatra e criador da Logoterapia, em seu best-seller Em Busca de Sentido:
Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos, não deixam de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas. E havia outra alternativa! A cada dia, a cada hora no campo de concentração havia milhares de oportunidades de concretizar esta decisão interior, uma decisão da pessoa contra ou a favor da sujeição aos poderes do ambiente que ameaçavam privá-la daquilo que é a sua característica mais intrínseca – sua liberdade – e que a induzem, com a renúncia à liberdade e à dignidade, a virar mero joguete e objeto das condições externas, deixando-se por elas cunhar um prisioneiro “típico” do campo de concentração. (Grifo nosso)
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