Fall on your knees / O hear the angels’ voices
O night divine / O night when Christ was born
O night divine o night / O night divine
(O holy night, Adolf Adams)
Não gosto do Natal.
Pois é, caríssimo leitor, tenho uma relação bastante ambígua com a data, mas explico.
Após a minha infância pouco religiosa, na qual o Natal era só uma data para ganharmos presentes diferenciados, mais caros – às vezes aguardados por longos meses –, motivados por nossa aprovação na escola e pela ocasião especial, a data se tornou, para mim, somente uma ocasião na qual poderíamos beber e comer mais do que o habitual, fazendo o tradicional tour pela vizinhança até ver o dia nascer naquela casa que se recusava a dormir – geralmente era a minha que amanhecia em festa e lotada dos remanescentes da noite intensa.
Não estou menosprezando tais momentos, eram maravilhosos. Muita gente, todo mundo feliz, tomado por um sentimento de fraternidade que a data, ainda que de maneira indireta à época, nos proporcionava; foram tempos memoráveis, que guardo com carinho dentre os melhores vividos. Mas acabaram. A alegria do Natal, para mim, mora num passado distante que, ao que parece, não voltará mais.
Se me permite uma pequena anamnese, leitor amigo, sou capaz de lembrar os eventos que marcaram minha quase-ruptura com o Natal:
Com a minha conversão (para quem não sabe, sou protestante), aquele clima festivo não mais se justificava sem a figura do Aniversariante; portanto, as festas – embora ainda carregadas de fraternidade, mas desconectadas do evento que a data evoca – perderam o sentido; e a máxima de Cristo – e assim os inimigos do homem serão os seus familiares (Mt 10,36) – contextualizada, evidentemente, se materializou em minha vida. Não que eu tivesse brigado com minha família, mas o motivo pelo qual nos reuníamos havia deixado de fazer sentido para mim; eu estava em outra frequência. Com o passar dos anos, aqueles que não se converteram também passaram a ter uma visão mais reverente da data; no entanto, a falta de uma tradição que sustente essa reverência torna o ambiente, digamos, insosso. Mas outros dois eventos vieram para tornar a situação ainda mais difícil.
Perdi meu irmão Carlos e meu pai, duas figuras fundamentais em minha vida, próximo do Natal; em dezembro de 2004 e novembro de 2012, respectivamente. Meu irmão – que era 11 anos mais velho que eu e praticamente me criou em minha primeira infância, sendo meu companheiro inseparável nas sessões de cinema e nas matinês de carnaval – nos deixou em circunstâncias trágicas. E mais: por motivos que levou para o túmulo, Carlos achava o Natal triste – geralmente chorava escondido –, e aquela tristeza nunca me saiu da cabeça. Ele se esforçava, mas era visível o seu desconforto.
Meu pai, após mais de 20 anos sem passar a noite de Natal conosco (meus pais eram separados), passou os dois últimos que antecederam a sua morte, e foram dias especialíssimos; mas duraram pouco. Agora, o natalício se mistura com o luto.
Diante de tais circunstâncias, paciente leitor, o Natal se tornou, para mim, uma data cujos sentimentos se confundem.
Não obstante, é preciso lembrar as palavras do profeta: “um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9,6)
Foi exatamente por tudo isso que Cristo veio ao mundo!
Minha história é a história de todos nós, seres humanos: cheia de contradições, de percalços, de tristezas e alegrias. O Grande Milagre, como diz C. S. Lewis, ocorreu para unir natural e sobrenatural; é “o evento central da história humana – justamente aquilo em torno do qual tudo gira” (Milagres, Ed. Vida). Vendo as coisas por esse prisma, tudo faz sentido, e o Natal se transforma em símbolo de esperança. A certeza de que, numa manjedoura, num ambiente insalubre e improvável, o Deus-Filho se fez carne e habitou entre nós põe ordem às contradições que nos importunam (e nas quais nos transformamos).
O nascimento de Cristo é o desenlace de nossa história, é o fim (e, de certo modo, o princípio) de nossas contradições; e, por menos cristão que sejas, caro leitor, é preciso reconhecer o poder que há nessa história. É forçoso admitir que, mesmo não acreditando no cristianismo, as palavras de Lewis, em Milagres, fazem sentido: “Na história cristã Deus desce para subir de novo. Ele desce, desce das alturas do ser absoluto no tempo e espaço, até a humanidade. Desce mais ainda, caso os estudiosos de embriologia tenham razão, a fim de recapitular no ventre fases antigas e pré-humanas da vida. Desce até às próprias raízes da natureza por Ele criada. Mas ele desce a fim de subir de novo e trazer com Ele o mundo arruinado”.
E mais ainda, tal movimento se assemelha à própria natureza, pois: “Nesta descida e nova subida todos reconhecerão um modelo familiar: algo visto em todo o mundo. Trata-se do padrão de toda vida vegetal. Ela precisa ficar reduzida a algo duro, pequeno, morto, deve cair no solo para então surgir a nova vida. Este é também o padrão de toda geração animal. Há uma descida dos organismos completos e perfeitos para o espermatozoide e o óvulo, e no ventre escuro uma vida a princípio inferior àquela da espécie que está sendo reproduzida: depois, a subida lenta do embrião perfeito, até a criança viva e consciente, e finalmente ao adulto. O mesmo acontece em nossa vida moral e emocional. Os primeiros desejos espontâneos e inocentes necessitam submeter-se ao processo de controle ou negativa total semelhante à morte, mas a seguir vem a nova subida até alcançar o caráter plenamente formado em que a força do material primitivo opera, mas de uma forma nova. Morte e novo nascimento descendo para subir um princípio-chave. A estrada principal quase sempre é alcançada através desta passagem estreita, desta redução”.
Se tais afirmações não fazem sentido para ti, estimado (e cético) leitor, pensa que não é necessário, num primeiro momento, que creias no caráter factual do que exponho, mas tão somente pensar na verossimilhança de seus efeitos – se não em ti, pelo menos em mim, como algo preencheu minha vida de sentido. Como diz o próprio Lewis, a história da Encarnação “não irá exigir para ela aquela espécie de evidência que exigiria justamente para algo intrinsecamente improvável; mas apenas aquilo que exigiria para algo que, se aceito, ilumina e ordena todos os fenômenos, explica tanto o nosso riso como a nossa lógica, nosso temor dos mortos e nosso conhecimento que de algum modo é bom morrer, e que de um golpe cobre aquilo que multidões de outras teorias dificilmente cobrirão para nós se esta for rejeitada”.
É desse modo que, ainda que tomado por sentimentos ambíguos, reconheço que o Natal nada mais é que o processo natural de morte e vida tão conhecido de todos nós, pelo qual passamos muitas vezes até que nossa própria história tenha o seu desfecho final. O nascimento de Jesus Cristo não é outra coisa senão o evento que, irrompendo na história humana, sacraliza e enriquece nossa existência – ou seja, nos salva.
Feliz Natal!
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