“A mentira se torna o método indispensável porque a segunda realidade afirma ser verdadeira, e já que entra constantemente em conflito com a primeira realidade, é necessário mentir constantemente.” (Eric Voegelin, Hitler e os alemães)
Em março de 2020, quando o país se alarmou por conta do aumento de casos de coronavírus, o então presidente Jair Bolsonaro, numa entrevista coletiva, resolveu ironizar o médico Drauzio Varella e dizer que, pelo seu “histórico de atleta”, caso fosse acometido da doença, ela não passaria de uma “gripezinha ou um resfriadinho”. Sim, Bolsonaro estava dizendo algo que já havia sido dito pelo “médico da Globo”, mas isso não diminui todo o negacionismo que se instaurou em seu governo, de cima a baixo, e entre seus apoiadores, que levou a uma desastrosa condução de um flagelo que, no fim, já dizimou mais de 700 mil brasileiros (muito ao contrário das menos de 800 mortes previstas pelo ex-presidente em entrevista à TV Record em 22 de março de 2020). A politização levou ao negacionismo.
Mas antes, o mesmo Bolsonaro havia sido duplamente vitimado: pelo atentado sofrido por ele, em 2018, e pelo atroz negacionismo daqueles que duvidaram do que ocorreu. Apelidaram a tentativa de assassinato perpetrada por Adélio Bispo, em Juiz de Fora, de “fakeada”, fizeram documentários e, até hoje, há quem repita isso ignorando completamente a quantidade milimétrica de organização necessária, com uma quantidade enorme de pessoas, para que algo tão escabroso, se combinado, desse certo. Não tem sentido, mas o que importa é negar os fatos e atribuir, no mínimo, sordidez e falta de caráter a seu adversário político.
Qual a necessidade de, na disputa política, negar fatos cujas evidências saltam aos olhos, ou mesmo de espalhar mentiras a fim de prejudicar o seu adversário?
Agora, a mais recente vítima do negacionismo é o novamente candidato à presidência dos EUA Donald Trump, que no último sábado sofreu um atentado durante um comício na Pensilvânia. O tiro, disparado por Thomas Matthew Crooks, 20 anos, de um telhado a cerca de 140 metros de distância, passou de raspão por sua orelha direita no exato momento em que, num milagroso meneio de cabeça, ele teria saído da mira do atirador. Trump se abaixou, cercado pelos agentes do Serviço Secreto americano, para, em seguida, se levantar impetuosamente, cerrar os punhos e ser registrado por um veterano fotógrafo do New York Times, que cobre política desde 1986 e que, provavelmente, conseguiu a foto de sua carreira. Toda a cena foi tão insólita que, de fato, suscitou não só desconfiança, mas muitos questionamentos sobre a gravíssima falha de atuação do Serviço Secreto.
Esquerdistas, patética e automaticamente, fizeram uma associação entre o que ocorreu com Trump agora e o que ocorreu com Bolsonaro em 2018, e inundaram as redes sociais com a narrativa abjeta de que o atentado teria sido uma armação. O histriônico deputado André Janones (Avante-MG) foi um dos principais perpetradores dessa ideia absurda, inclusive dizendo que a “fakeada” de Bolsonaro estava “fazendo escola”. Outros parlamentares de esquerda emitiram opiniões que colocavam em dúvida o que ocorreu, mostrando, mais uma vez, o negacionismo que a disputa política produz.
A pergunta é: qual a necessidade de, na disputa política, negar fatos cujas evidências saltam aos olhos, ou mesmo de espalhar mentiras a fim de prejudicar o seu adversário? A democracia não deveria ser um regime no qual as melhores ideias, ao convencerem a maior parte da população, vencem? A virtude e a retidão moral não deveriam ser os pilares das democracias, uma vez que o destino de todos depende da participação, direta ou indiretamente, de todos?
O problema é que os políticos, atualmente, exercem a sua atividade não no esforço de demonstrar a superioridade de suas ideias, mas de demonizar o adversário, tratado como inimigo. A política se transformou num jogo em que obter vantagem é melhor que defender o que é correto. E o motivo é muito simples: a política atual, em tese, é exercida não na realidade concreta, mas na segunda realidade, aquele local abstrato onde habitam as ideologias. O filósofo Eric Voegelin vê o conflito entre a primeira realidade e a segunda realidade como “trapaça intelectual”. Ele afirma:
“A consequência de viver na segunda realidade é, exatamente, o conflito com a primeira realidade, que, na verdade, não é cancelada pelo fato de eu ter feito para mim mesmo uma ideia falsa dela e viver de acordo com isso. Agora, as consequências desse conflito podem ser classificadas de acordo com as duas categorias principais: contemplação e prática. Na contemplação, a manifestação mais importante do conflito entre a segunda e a primeira realidade é a construção de um sistema. Já que a realidade não tem o caráter de um sistema, um sistema é sempre falso; e, se diz retratar a realidade, só pode ser mantido com o truque de uma trapaça intelectual” (Hitler e os alemães, p. 146).
O negacionismo não é fruto da ignorância, mas, ao contrário, de uma espécie de malandragem narrativa
Ou seja, no nível da reflexão, aquele que vive na segunda realidade trapaceia em relação à sua desconexão com a primeira realidade. Voegelin usa Nietzsche como exemplo, afirmando que sua condição era de um “pneumopático”, que estava “doente do espírito” e, pior, totalmente “ciente dessa trapaça”. Todo aquele que, na disputa política, se encontra na segunda realidade vive num estado espiritualmente patológico, ainda que consciente disso; por isso manipula em favor de seus interesses políticos e/ou ideológicos. Do ponto de vista prático, o que ocorre é que:
“A consequência desse conflito entre a segunda e a primeira realidade não é a trapaça intelectual, mas a mentira. A mentira se torna o método indispensável porque a segunda realidade afirma ser verdadeira, e, já que entra constantemente em conflito com a primeira realidade, é necessário mentir constantemente: por exemplo, alguém diz que a primeira realidade é algo muito diferente do que realmente é, ou que a segunda realidade é horrivelmente compreendida.” (p. 147)
Ao fim e ao cabo, todo negacionismo é oriundo desse conflito entre a primeira e a segunda realidades, e a mentira é o instrumento principal de manutenção dessa condição, uma vez que o negacionismo não é fruto da ignorância, mas, ao contrário, de uma espécie de malandragem narrativa. E daí que, sendo a política contemporânea um mero jogo de interesses, mera disputa ideológica no sentido de angariar poder e nele se perpetuar – pois, se meu adversário é o mal absoluto, a ele não deve ser garantida nem sequer a participação no debate público –, cabe aos agentes mentirem o tempo todo em favor de si próprios e de seus projetos de poder. Por isso todos querem, bizarramente, salvar a democracia enquanto investem incessantemente contra... a democracia.
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