“E por tudo o que era bom deveis lutar a fim de preservá-lo / em vossos corações contritos, como o fizeram os vossos / pais ao lutar por conquista-lo”. (T. S. Eliot, Coros de “A Rocha”)
“Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ — não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’”. (Raduan Nassar, Lavoura Arcaica)
Como os leitores assíduos dessa coluna devem saber, sou apaixonado por cinema. Sobretudo pelo cinema europeu. Concordo com Andrei Tarkovski (1932-1986) quando disse que o “cinema, como nenhuma outra arte, amplia, enriquece e concentra a experiência de uma pessoa — e não apenas a enriquece, mas a torna mais longa, significativamente mais longa”, pois o cinema, como a arte de “esculpir o tempo”, condensa como nenhuma outra forma de arte todos os elementos sensoriais capazes de nos possibilitar, através do tempo, uma experiência absolutamente única.
Evidente que tal abordagem não está proposta no cinema de entretenimento, cujo objetivo não é outro senão divertir. Mas todos os grandes cineastas, que enxergam o cinema como uma forma de arte, trabalham incansavelmente com essa perspectiva minuciosa para com o tempo, o mais precioso material cinematográfico. Nesse sentido, o próprio Tarkovski foi um gênio ímpar.
Outro que soube, em seus filmes, esculpir o tempo com maestria foi o grego Theo Angelopoulos (1936-2012), diretor que julgo ter muitas semelhanças com o próprio Tarkovski, dentre outras coisas, em sua maneira de conduzir os longos planos-sequência, bem como o perfeito enquadramento de muitas cenas, que se assemelham a pinturas. Em 2009, durante a 33ª Mostra de Cinema de SP, da qual Angelopoulos participou como homenageado, tive a oportunidade de lhe fazer uma pergunta, na entrevista após a exibição de um de seus filmes, sobre sua ligação com Tarkovski. Sua resposta foi que havia conhecido bem o cineasta russo, que viveram juntos por um tempo na Itália, em companhia do roteirista e poeta Tonino Guerra, mas que, enquanto os filmes de Tarkovski tratavam de temas mais espirituais, os seus eram mais políticos. Porém, ouso discordar do próprio diretor, principalmente quando se tratam de seus últimos filmes.
O tema de Angelopoulos é, essencialmente, a Grécia contemporânea – fronteiras, culturas, mudanças políticas, solidão e exílio. No entanto, como ele diz numa entrevista dada para um site na ocasião que esteve no Brasil: “Procuro projetar uma imagem da Grécia que está de acordo com seu passado. A Grécia antiga, da filosofia, da poesia. É preciso que não se esqueça este passado. Ele existe ainda. Penso que se fosse citar apenas um livro, seria A Odisséia, de Homero”. Angelopoulos fala de jornadas – exteriores e interiores; em sentido metafórico e espiritual, sempre jornadas de retorno para casa. A Grécia de Homero, Platão e Aristóteles é sempre evocada de alguma maneira em seus filmes. Há sempre uma nostalgia por essa Grécia que se foi, mas que ele deseja manter viva. E um de seus filmes que mais expressa essa característica é Um olhar a cada dia (To vlemma tou Odyssea), de 1995.
O filme conta a história de um diretor de cinema (sem nome, no roteiro grafado como “A”) que volta à Grécia, sua terra natal, a fim de empreender uma viagem ao encontro de três bobinas de filmes nunca reveladas dos Irmãos Manakis, pioneiros do cinema nos Bálcãs. Um anseio pessoal que acaba por se tornar uma jornada para dentro de si mesmo. Sua viagem cruza as fronteiras dos países assolados pela guerra na década de 1990, principalmente pela desintegração da Iugoslávia – Albânia, Macedônia, Bulgária, Romênia, Sérvia e Bósnia e Herzegovina. Refugiados, bombardeios, desolação, morte e, sobretudo, a impossibilidade de amar fazem da personagem principal, vivida por Harvey Keitel, um Ulisses contemporâneo, dizendo, como a personagem de outro filme de Angelopoulos – O passo suspenso da cegonha: “Quantas fronteiras devemos cruzar até chegarmos em casa?”.
Na viagem, enquanto tenta encontrar os filmes (e a si próprio), o protagonista nos faz testemunhar, sintética e metaforicamente, vários momentos da complexa história dos Bálcãs. Num de seus primeiros destinos após deixar a Grécia, a Romênia, ocorre uma passagem extremamente simbólica não só do filme, mas da história recente: uma gigantesca estátua de Lênin, toda desmantelada, é colocada dentro de um navio e transportada pelo Danúbio. Respondendo a uma pergunta sobre essa sequência, Angelopoulos diz: “Este episódio se originou numa cena real que testemunhei enquanto desmontavam esta estátua enorme para colocá-la num navio. Um pequeno barco com um casal cruzava o porto de Constanza, o porto romeno no Mar Negro. Quando o homem notou a enorme efígie de Lenin, ele se levantou e olhou, perplexo. A mulher pôs a mão sobre os olhos e fez o sinal da cruz. No entanto, não nos esqueçamos de que, de certa forma, este também é um funeral e, em tais circunstâncias, é costumeiro que as pessoas façam o sinal da cruz”. (Dan Fainaru, Conversation with filmmakers: Theo Angelopoulos. Tradução nossa). Ou seja, o funeral do Comunismo, que, sem resolver os problemas, ceifou centenas de milhares de pessoas na região.
Em seu último destino, Sarajevo, “A” finalmente encontra um arquivista, curador da cinemateca local, Ivo Levy – representado pelo genial Erland Josephson –, que está com os filmes dos Irmãos Manakis. Numa sequência memorável, o arquivista o conduz por um passeio na neblina, segundo ele “a melhor amiga do homem”, pois com ela “Sarajevo recupera a normalidade; os franco-atiradores se retiram”. Eles saem e a cidade está em festa; há uma orquestra tocando, acompanhada por um coral, o tema principal do filme – trilha sonora soberba composta pela inspiradíssima Eleni Karaindrou, que trabalhou com Angelopoulos em vários de seus filmes (confira uma música aqui) –, e há um grupo teatral representando Romeu e Julieta, de Shakespeare. Mas também há aqueles que enterram seus mortos, que cumprem seus rituais para devolver ao pó aqueles que se foram. Ou seja, nos momentos de trégua de um conflito terrivelmente sangrento, a cidade clama pelas coisas permanentes, pela tradição cultural e religiosa que construiu as civilizações.
Ao final, num monólogo realizado em lágrimas enquanto, finalmente, assiste ao filme dos Irmãos Manakis, ou seja – nos dizeres de Tolkien, em Sobre histórias de fadas (Conrad), a respeito de uma das funções da imaginação – recupera aquele momento, “A” diz, remetendo às palavras de Ulisses a Penélope na Odisseia (versos que não estão no poema homérico, mas que, provavelmente, pertencem à tradição grega):
Quando eu voltar, será com a roupa de outro homem / com o nome de outro homem / Minha vinda será inesperada / Se olhares para mim, incrédula, e disseres / ‘Não és ele’ / Eu mostrarei sinais / E acreditarás em mim / Falarei sobre o limoeiro em teu jardim / A janela de canto que deixa entrar o luar / E então os sinais do corpo / Sinais de amor / E enquanto subimos, tremendo, para o nosso antigo quarto / Entre um abraço e o próximo / Entre as chamadas dos amantes / Eu te contarei sobre a jornada / Durante toda a noite / E então todas as noites por vir / Entre um abraço e o próximo / Entre os chamados dos amantes / Toda a aventura humana / A história que nunca termina.
Ou seja, é a história de um retorno para casa, mas para a casa interior, numa espécie de “conhece-te a ti mesmo” platônico, evocado pela citação do diálogo Alcibíades no início do filme: “E a alma que quer conhecer-se a si mesma, tem de observar a própria alma” (133b). É um reconhecimento dos valores que já estão em nós, que já nos pertencem, mas que, muitas vezes, são sufocados por processos revolucionários (como a guerra civil nos Bálcãs e o comunismo) que deixam um rastro de destruição e morte.
Angelopoulos é claro em relação às suas intenções com Um olhar a cada dia: “Não pretendo analisar a situação; estou apenas antecipando minhas próprias emoções e as das personagens do filme. E quando o filme fala sobre a inocência original do primeiro olhar, não se refere apenas ao cinema. É sobre a necessidade, em geral, de ver o mundo mais uma vez sem quaisquer ideias preconcebidas, como que pela primeira vez”. (Fainaru)
Portanto, um dos grandes dramas da humanidade recente é ter perdido o contato com a ordem moral e cultural que os séculos de História nos legaram. É dessa nostalgia que Angelopoulos fala. E é desses valores que fala o conservadorismo – ainda que o próprio Angelopoulos não possa ser chamado de conservador. Como a arte é um hieróglifo da verdade absoluta, como diz Tarkovski, contém uma imagem real do mundo, não importando as convicções pessoais do artista.
Com o diz sabiamente Russell Kirk em A política da prudência (É Realizações): “O conservador acredita que há uma ordem moral duradoura […] Nosso mundo do século XX experimentou as terríveis consequências do colapso da crença em uma ordem moral. Tal como as atrocidades e os desastres ocorridos na Grécia do século V antes de Cristo, a ruína de grandes nações no nosso século mostra que o abismo no qual caem as sociedades que confundem o autointeresse (sic) inteligente ou controles sociais engenhosos com alternativas agradáveis a uma ordem moral ultrapassada […] Uma sociedade em que homens e mulheres são governados pela crença em uma ordem moral duradoura, por um forte senso de certo e errado, por convicções pessoais de justiça e de honra, será uma sociedade boa – seja qual for o mecanismo político utilizado; enquanto na sociedade, homens e mulheres estiverem moralmente à deriva, ignorantes das normas e voltados principalmente para a gratificação dos apetites, essa será uma sociedade ruim – não importa quantas pessoas votem ou quão liberal seja a ordem constitucional formal”. (p. 105)
Por isso, que neste ano de 2019 resistamos à tentação da novidade e saudemos as coisas permanentes; atentemos para os valores preciosos que nos mantém unidos (ou que podem nos unir novamente) e não sejamos arrastados por ondas de moralidade artificial que, não raro, insistem em nos seduzir.