A “nova direita” nunca existiu como grupo sólido ou coeso, e a adesão ao governo apenas escancarou o que já vinha acontecendo bem antes de 2018.| Foto: Arquivo pessoal
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“Os amigos cuja afeição é baseada no interesse não amam um ao outro por si mesmos, e sim por causa de algum proveito que obtêm um do outro. O mesmo raciocínio se aplica àqueles que se amam por causa do prazer; não é por seu caráter que gostamos das pessoas espirituosas, mas porque as achamos agradáveis. Logo, as pessoas que amam as outras por interesse amam por causa do que é bom para si mesmas, e aquelas que amam por causa do prazer amam por causa do que lhes é agradável, e não porque a outra pessoa é a pessoa que amam, mas porque ela é útil ou agradável.” (Aristóteles, Ética a Nicômaco)

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A citação em epígrafe já seria suficiente para ilustrar o que direi abaixo, mas quero completá-la. O estagirita conclui: “Sendo assim, as amizades deste tipo são apenas acidentais, pois não é por ser quem ela é que a pessoa é amada, mas por proporcionar à outra algum proveito ou prazer. Tais amizades se desfazem facilmente se as pessoas não permanecem como eram inicialmente, pois se uma delas já não é agradável ou útil a outra cessa de amá-la. E a utilidade não é uma qualidade permanente, mas está sempre mudando. Portanto, desaparecido o motivo da amizade esta se desfaz, uma vez que ela existe somente como um meio para chegar a um fim”. Eis tudo.

Recentemente, meu xará e colega de Gazeta do Povo Paulo Polzonoff escreveu um artigo intitulado Nova direita chega a 2022 mais desunida e ameaçada do que nunca. Sou um dos presentes na foto que ilustra o artigo – que ele diz ter recebido por WhatsApp e cujos rostos ele cobriu –, tirada num encontro promovido por alguém que hoje é arqui-inimigo da direita aqui-é-bolsonaro-p***a!, direita essa que, por fome (de poder, no caso), como o Esaú bíblico, trocou sua primogenitura por uma prato de lentilhas (“estou morto de fome, o que me importam os direitos de primogênito”, na Bíblia do Peregrino). E, nessa qualidade, sinto-me à vontade para dizer o que penso a respeito dessa suposta desunião.

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Boa parte da “nova direita” ficou com Olavo quando este pulou de cabeça no governo Bolsonaro. Muitos o viam mesmo como um guru inquestionável; outros, ao menos, viam nele uma clarividência política que seria difícil contestar

Como costumo dizer, até 2017 a nova direita brasileira – doravante natimorta –, nascida meio em torno daquilo que estava produzindo e divulgando Olavo de Carvalho, era um Clube do Livro. Em São Paulo, por exemplo, resumia-se aos eventos e lançamentos da É Realizações – onde estavam Bolsonaro e sua matilha no riquíssimo Seminário Internacional René Girard, em 2011? –, aos lançamentos de livros na Livraria Cultura e ao Ciclo de Palestras organizado por outro dos convivas da foto. Alguns cafés e encontros gastronômicos ocasionais também tratavam de unir aqueles que pensavam estar formando a “nova elite intelectual” conclamada por Olavo. Indiretamente, por certo, pois quase ninguém ali era aluno de Olavo. Eu mesmo nunca fui aluno de seu Curso On-line de Filosofia (COF) e li somente um livro do famigerado “parteiro da nova direita”; por isso não julgo que minha posição conservadora tenha sido diretamente influenciada por ele; aliás, um amigo (ou ex-amigo, não sei ainda, pois, atualmente, compartilha posts do Carluxo) que era seu aluno havia bastante tempo sempre me dizia que, de Olavo, deveríamos manter uma distância sanitária, como no dito paulino, analisando tudo e retendo o bem.

Minha desconfiança com a tutela olavista tinha razões concretas; dentre elas, a perseguição implacável a quem não lhe beijasse as mãos em adoração – como ocorreu com Francisco Razzo, em 2014, e Cassiano Tirapani, em 2016 –, bem como seu quase-antiprotestantismo. No entanto, não posso negar que muitos autores que nutriram intelectualmente a natimorta foram divulgados por ele. Mas nem todos. No meu caso, por exemplo, C.S. Lewis, um autor que moldou muito do que penso sobre conservadorismo – apesar de não ser, propriamente, um autor conservador –, começou a ser ventilado por Olavo por volta de 2015, mas o conheço desde o início dos anos 2000. Por isso não foi difícil perceber as inconsistências filosóficas de Olavo, bem como sua vontade de se aliar ao poder, e me manter sempre vigilante.

Não foi à toa que boa parte da natimorta ficou com Olavo quando este pulou de cabeça no governo Bolsonaro. Muitos o viam mesmo como um guru inquestionável; outros, ao menos, viam nele uma clarividência política que seria difícil contestar. Pois bem, uma parte sucumbiu, direta ou indiretamente, pelo olavismo. Julgaram menos importante a amizade que o conspiracionismo olavista que desembocou, via Eduardo Bolsonaro e o atual (é, pois é) chefe da Assessoria Internacional da Presidência da República, Filipe Martins, na chamada “ala ideológica” do governo de turno.

Outro momento crucial foi a famigeradíssima greve dos caminhoneiros de 2018, cuja crítica gerou meu primeiro artigo anunciando o caráter revolucionário que tinha o governo que se desenhava. Muitos próceres da natimorta, abraçando o entusiasmo dos bolsonaristas de primeira hora, como Filipe Martins – já fazendo valer o cargo que o tiraria do anonimato –, e sua associação absurda de uma greve sindical com a Boston Tea Party americana – parvoíce também denunciada à época por (pasme, caro leitor!) Rodrigo Constantino –, celebraram a greve como um enfrentamento ao establishment e soltaram fogos quando o prematuramente falecido Gustavo Bebbiano – o primeiro expurgo do governo Bolsonaro – subiu no capô de um caminhão e elogiou a força do caminhoneiro brasileiro, e o próprio então candidato Jair Bolsonaro apoiou o ato, que trouxe um prejuízo de R$ 50 bilhões à economia do país.

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A “nova direita” nunca existiu de fato, pois um movimento desse porte, com tamanha pretensão, precisa de valores sólidos. E eles se desfizeram quando nossos ex-amigos decidiram se aliar de corpo e alma a um movimento político clara e evidentemente reacionário.

Sem contar que, ainda em 2017, Eduardo Bolsonaro coordenou um ataque sórdido, por uma associação fotográfica espúria, ao anfitrião da confraria cuja foto ilustra o artigo. É também de 2017 a patética Lista da Falsa Direita – uma lista, aliás, que mudou assombrosamente de lá para cá –, publicada e replicada exaustivamente por bolsonaristas de primeira hora, pois éramos acusados de “insistir em atacar o único presidenciável que pode desviar o Brasil desse destino [o comunismo]”.

A pá de cal veio com o ataque igualmente sórdido de Flávio Azambuja (que também está na foto), editor do site Senso Incomum – cujos primeiros articulistas fomos nós –, após a deputada Janaína Paschoal, com quem jamais troquei uma palavra, ainda em dezembro de 2018 ter me indicado para o governo após ler um artigo em que cito Tobias Barreto, aqui, nesta Gazeta do Povo. Azambuja, com quem eu não conversava desde a greve dos caminhoneiros (ou seja, havia mais de seis meses), por sua covardia em criticá-la como um autor que havia publicado um livro sobre movimentos de massa, me atacou em resposta ao tuíte da deputada dizendo que eu “detestava Bolsonaro” e que eu havia me vendido ao então presidente Temer por uma “medalhinha”, em referência à Ordem do Mérito Cultural com a qual fui agraciado em 2017. Qual a motivação desse ataque? Só há uma explicação: defender o governo que ele ama e eu detesto. Só rindo. A acusação que ele me fez, como fiquei sabendo, de ter endossado a perseguição que sofreu por supostamente defender a queima de livros, é mentirosa. Alguns ex-amigos se colocaram tacitamente ao lado dele, o que fez com que mais uns da foto se unissem ao bolsonarismo de Azambuja e sua dívida com Caetano Veloso. Que fiquem para sempre lá.

Aquelas simplesmente não eram amizades verdadeiras, pois não teriam se transmutado em apoio a um dos políticos mais ineptos, reacionários e patrimonialistas da história de nossa pobre democracia

Mas já me alongo, pois me repito. Já escrevi sobre isso em mais de uma ocasião (aqui, aqui e aqui). E esses são só os eventos diretamente relacionados a mim; há muito mais envolvendo outras pessoas que estão nessa foto de triste memória. Mas é possível concluir, com base no que expus, que a direita brasileira, a natimorta, não se desfez, como diz meu xará, somente por “aversão ao coletivismo própria de quem se debruça sobre autores conservadores, passam pela a vaidade (não à toa o pecado preferido do diabo), por insondáveis mesquinharias próprias do ser humano, por estupidezes que se escreve em dias azedos, pela sensação de superioridade moral que é a marca do nosso tempo, e chegam finalmente à incompatibilidade de valores”. Ela nunca existiu de fato, pois um movimento desse porte, com tamanha pretensão, precisa de valores sólidos. E, se os valores que nos uniam eram os de uma tradição conservadora – ou liberal, que bolsonaristas odeiam –, estes se desfizeram quando nossos ex-amigos decidiram se aliar de corpo e alma a um movimento político clara e evidentemente reacionário.

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E não foi só por uma incompatibilidade de valores, foi por traição aos princípios básicos da Amizade, tão bem expostos por Aristóteles na obra supracitada. A verdadeira amizade, diz o filósofo, “é uma disposição do caráter” e só pode acontecer enquanto a excelência moral (ou virtude) as une. Amizades por interesse ou por prazer se acabam quando esses dois elementos acabam. Foi o que, também, aconteceu. Simplesmente não eram amizades verdadeiras, pois não teriam se transmutado em apoio a um dos políticos mais ineptos, reacionários e patrimonialistas da história de nossa pobre democracia. Dos presentes na foto sobraram, do lado de cá, digamos, quatro pessoas e meia. Mas há mais, que não estão na foto. Celebremos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]