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“Entre a estupidez e a vaidade sempre existiu uma relação íntima, o que talvez nos dê uma pista. Por isso, uma pessoa estúpida parece normalmente vaidosa, porque lhe falta a inteligência para escondê-la”. (Robert Musil)
Nosso país é verdadeiramente surpreendente – no pior sentido do termo, óbvio. Esta semana, ao entrar num vagão do metrô na capital paulistana, deparei-me com um problema que, decerto, atinge centenas de milhares de pessoas todos os dias: o ar-condicionado estava desligado; os vagões, que não têm mais janelas de ventilação, estavam com aquele odor característico (de urina com mofo) que aparece quando o “ar” está somente ventilando, fazendo com que as pessoas sejam obrigadas a suportar, às vezes por quarenta minutos, uma hora, tal situação. Mas isso não seria entranho se eu ainda utilizasse o metrô com frequência; pois, pelo que me lembro de quando o fazia diariamente, a recorrência dos problemas é uma marca do transporte público paulistano.
Mas não somente por isso. Minha indignação não teria me levado a trazer o problema do metroviário a esta coluna se eu não comparasse tal situação ao debate político brasileiro, que parece estar ocorrendo num universo paralelo. Sem contar que as redes sociais vêm se tornando o campo de batalha onde os poderes institucionais decidiram mostrar que são verdadeiramente poderosos. Ou seja, enquanto centenas de milhares de pessoas têm de enfrentar, todos os dias, os percalços do transporte público – e do trânsito caótico, e das ruas com buracos que estouram pneus, e dos semáforos que, à menor chuva, param de funcionar etc. – e, absurdo dos absurdos, enquanto mais de 130 milhões de brasileiros ainda têm de viver sem saneamento básico, youtubers vêm sendo banidos das redes sociais por “publicar e compartilhar desinformação”, e humoristas vêm sendo sendo censurados por fazerem... humor.
A quantidade de pessoas morando nas ruas assusta, a criminalidade assusta, a cracolândia assusta. Mas perigosos mesmo para o Brasil parecem ser o Monark e o Léo Lins
Moro na rua de trás de um supermercado, de modo que, a toda hora, temos de ir lá por uma necessidade básica ou outra. Os preços não param de subir – não importando, como disse o presidente do Banco Central, que “pela primeira vez na história, o Brasil tem inflação muito menor que o mundo desenvolvido”. A taxa de desemprego por aqui “é mais que o dobro da média global e a pior entre os integrantes do G20”. A quantidade de pessoas morando nas ruas assusta, a criminalidade assusta, a cracolândia assusta. Mas perigosos mesmo para o Brasil parecem ser o Monark e o Léo Lins.
Não que eu não saiba o que passamos nos últimos quatro anos, nem no que nossos parlamentares governistas e seus apoiadores transformaram as redes sociais. Não que eu não tenha consciência de que o fatídico 8 de janeiro foi gestado por anos de desinformação nessas mesmas redes. Não que eu não tema por nossa jovem e tão mal-ajambrada democracia. Mas não estamos em outro governo? Segundo a propaganda (aliás, o único trabalho efetivo de qualquer governo neste país), o Brasil não voltou? Não há investigações a torto e a direito ocorrendo para julgar e punir não só os perpetradores da destruição golpista que nos custará alguns milhões, mas também os seus organizadores e financiadores? Então por que essa sanha autoritária incontrolável?
Sim, desde os tempos imemoriais o poder seduz. Em janeiro de 2019, já prevendo o que ocorreria com o governo que se iniciava e com aquele bando de deslumbrados que alçara ao poder, eu disse: “A tentação que o poder exerce sobre nós é um dos mais instigantes temas, não só literários, mas também da filosofia. Não importam as intenções; tanto aqueles que desejam, clara e abertamente, fazer o mal e dominar, tiranicamente, a todos, quanto aqueles que, de posse do poder, julgam possuir abnegação suficiente para, através dele, fazer o bem, acabam por sucumbir”. Evoquei Platão e Tolkien com seus anéis, e fazenda da animais de Orwell, para dizer que “o poder nas mãos de quem deseja fazer o bem pode causar muito mais estrago. O modo peculiar como as pessoas cheias de boas intenções são seduzidas e acabam por tiranizar àqueles que deveriam beneficiar, é notório e assustador”.
E no Brasil não faltam candidatos a salvadores da pátria. Um país de população pobre e pouquíssimo instruída é um prato cheio para oportunistas de toda sorte e para gente que, do alto de sua estupidez pretensiosa, lucra sinalizando virtude e vendendo utopia. Desde políticos como Tabata Amaral, que, apesar de seu desempenho acadêmico notável, não sabe diferenciar ficção de realidade; ou Orlando Silva, que, a fim de proteger os pobres-diabos usuários de redes sociais das famigeradas fake news, encabeça um projeto no mínimo questionável e, no máximo, com arroubos de censura – a falta de consenso num tema tão importante, que é a defesa da verdade, é, em si mesma, preocupante. Há ainda a filha do indefectível Eduardo Cunha, que queria passar uma lei que nos impediria de criticar políticos sob pena de prisão. O projeto inicial foi alterado, mas manteve, como uma bofetada na cara da população pobre e endividada do país, a pena de “prisão dois a quatro anos e multa em casos de recusa à concessão de crédito ou à abertura de conta corrente”.
Esse é o país de Felipe Neto. Um mega youtuber com mais de quarenta milhões de inscritos em seu canal, e que faz vídeos com centenas de milhares – não raro, milhões – de visualizações, cujos conteúdos nos fazem perder neurônios de tão infantiloides, mas que foi alçado, por ser um opinador inveterado, a sumidade intelectual, digno de ser entrevistado no programa que outrora teve sua cadeira central ocupada por gênios como Grande Otelo, políticos como Luís Carlos Prestes e Roberto Campos, sociólogos como Domenico de Masi, filósofas como Camille Paglia... enfim um programa sério. Não que Felipe Neto, que afirmou, dentre outros absurdos, que Machado de Assis – um dos únicos autores capazes de nos fazer entender tipos como Felipe Neto – não deveria ser lido por adolescentes, não possa dar suas opiniões na internet, afinal de contas, é exatamente isso que defendo nesse artigo. Mas daí levá-lo à ONU e condecorá-lo pelo seu suposto combate a notícias falsas quando, ele próprio, já foi condenado, recentemente, por espalhar notícias falsas, é um retrato de que esse país, comandado por Alexandre de Moraes, vai mal, muito mal, e não por causa do Monark.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise