Detalhe da “Adoração dos pastores”, de Georges de la Tour.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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“Por acaso não amávamos a humanidade, ao reconhecer tão humildemente a sua impotência, aliviar com amor o seu fardo e deixar que sua natureza fraca cometesse ao menos um pecado, mas com nossa permissão? Por que achaste de aparecer agora para nos atrapalhar?” (Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov)

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Mais uma vez, os dias que antecedem o Natal me trazem aquela ambiguidade já descrita em artigo aqui, nesta Gazeta do Povo. É triste para um cristão convicto não gostar da data mais significativa de sua fé; entretanto, tenho procurado fazer desse tempo um período de reflexão, de resgate e de reafirmação. Mas esse ano, especialmente, há um desconforto evidente, pois Deus nunca esteve tanto em evidência no Brasil atual; seu Santo Nome nunca foi tão evocado e a certeza de sua providência nunca antes foi tão celebrada. Parte considerável do Brasil de 2021, em meio a uma pandemia que arrasou com o mundo todo, comemora, em língua estranha, os dividendos políticos de Sua divina intervenção. É lindo. Só que não.

O Natal, data para lembrarmos do escândalo do cristianismo – no qual Deus mesmo, criador do universo e de tudo o que nele há, decide fazer-se homem a fim de redimir sua criação que, deliberadamente, Dele se afastou –, neste ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo está carregado de controvérsias que deveriam nos fazer pensar, de situações que nos deveriam levar a uma profunda reflexão sobre o significado de sermos cristãos e das implicações da imagem que passamos ao mundo; afinal de contas, por exemplo, “quem fala em uma língua não fala aos homens, mas a Deus. De fato, ninguém o entende; em espírito fala mistérios [...]; e se toda a igreja se reunir e falar em línguas e alguns não instruídos ou descrentes entrarem, não dirão que vocês estão loucos?” (1 Cor 14,2.23). Mas temo que muitos estejam ocupados demais em suas comemorações mundanas para darem voz e vez ao verdadeiro sentido, o bíblico, de ser cristão e de crer no Evangelho de Cristo e no Natal.

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Parte considerável do Brasil de 2021, em meio a uma pandemia que arrasou com o mundo todo, comemora, em língua estranha, os dividendos políticos de Sua divina intervenção. É lindo. Só que não

O maior pregador em língua portuguesa de todos os tempos, Padre Antônio Vieira, em seu brilhante Sermão do Nascimento do Menino Deus considerado por muitos seu primeiro sermão, pregado em meados de 1633, e o embrião de sua retórica e homilética impecáveis –, é convincente em dizer a que se digna a oratória embutida no nascimento de Jesus: ensinar, deleitar e mover.

O Menino, de sua manjedoura, prega sem palavra, comunica salvação aos olhos daqueles que o veem ali, pobre e indefeso, num local destinado a animais, com o fato de sua existência, com sua obra sempiterna. Ninguém deveria ser capaz de tergiversar dessa verdade desconcertante, sobretudo os cristãos. Diz o padre:

“Este mesmo Orador infante, que agora ensina sem abrir a boca, virá tempo em que a abrirá para ensinar: Aperiens os suum docebat eos [Abrindo a sua boca os ensinava (Mt 5, 2)] – mas o mesmo que então falando há de ensinar com a palavra é o que, agora, mudo brada com as obras: Clamat exemplo, quod postea docturus est verbo. – Que é o que há de ensinar este Menino, que agora é de um dia, ou de uma noite, quando depois for de 30 anos? Há de dizer com palavras: Beati pauperes: Bem-aventurados os pobres – e isto é o que já está ensinando com o desabrigado do portal, com o presépio, com as palhas, e com a falta de todo o necessário: Non erat ei locus in diversorio [Não havia lugar para ele na estalagem (Lc 2,7)].”

Também deleita o Menino, ainda que mudo e atado, pois:

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“Como perfeitíssimo Orador, era o que pedia o decoro, a energia e a representação viva do que ensinava. Não falava: infantemporque estava ensinando silêncio, humildade, resignação. Estava envolto, e como amortalhado: pannis involutumporque entrara no mundo a repreender e estranhar desenvolturas, e estava ensinando modéstia, compostura, mortificação. E estava como sepultado no lugar, posto que vil, onde o tinham posto: positum in praesepioporque, sobretudo, estava ensinando a perfeição da obediência. Obediência ao Pai, que o mandara vir ao mundo, obediência ao imperador, que o mandara ir a Belém, e obediência à Mãe, que naquele pobre e abjeto lugar o pusera, sem lhe dar razão por que, posto que a tivesse, como notou o evangelista: Quia non erat eis locus in diversorio [Porque não havia lugar para eles na estalagem (Lc. 2,7) ]. – E, se assim posto, não tinha movimento nem ação, essa era a própria e a mais natural ação do que representava, porque o verdadeiro obediente não há de ter movimento nem ação própria.”

Ensinava modéstia, compostura e mortificação. Não te parece, atento leitor, que tais características estão sendo negligenciadas por aqueles que deveriam resplandecer a luz de tais ensinamentos? Não te parece que o ensino sem palavras do Menino não está levando à nobreza de sentimentos humildes, pois não é para Ele que estamos olhando? Não parece evidente que, se não é para Ele que estamos olhando, nem para suas obras – pois a palavra de Deus é ação –, jamais poderemos nos deleitar de sua presença?

Os poderes terrenos, religiosos e políticos, que não poderiam se deixar ensinar, deleitar e mover por tamanha controvérsia, intentaram vencer o Menino evocando César como Messias. E a história continua a se repetir, como farsa

Diante disso, como sermos movidos por Ele? Se não temos olhos para suas obras, que nos instruem, nem deleite em sua humildade, que nos constrange, como seremos o sal da terra de que nos fala o Menino já feito Filho do Homem? O ilustre pregador arremata:

“E que escusa tem ou pode ter a cegueira dos que, à vista do presépio, e de tantos presépios, tão pouco imitam o que veem? Não imagino tal na religião, mas no mundo ainda mal, que é tão certo. Filius hominis – exclama Santo Agostinho – non habet ubi caput reclinet, et tu ampla palacia, et ingentes porticus metiris: – O Filho de Deus não tem onde reclinar a cabeça, e cabe em uma gruta de brutos; e tu edificas palácios magníficos, e medes os pórticos com a tua vaidade, quando fora maior proporção medi-los contigo. – Conditor angelorum – exclama S. Pedro Damião – in praesepio vagiens reclinatur, non ostro, sed vilibus panniculis involutus: erubescat igitur terrena superbia, et arrogantia redempti hominis: O Criador dos anjos reclinado no presépio está coberto de panos vis, e o homem de terra, e escravo, que ele remiu, sem pejo nem vergonha, veste ouro e púrpuras. – Quid mugis indignum – exclama, finalmente, S. Bernardo – quam ut videns Deum caeli parvulum factum, ultra apponat homo magnificare se super terram? Que coisa mais indigna que, vendo ao Deus do céu feito tão pequenino, o homem queira ser grande? E que coisa mais intolerável que, quando a majestade se encolhe, o bichinho se inche?”

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Pois bem, aqui retomo. A ordem cósmica que o Menino Deus veio estabelecer criou, por consequência, um contraste entre sua obra e o poder institucional. Como, diante da opulência e do poder, um Menino, oriundo de um estábulo, poderia reinar? Como vencer os inimigos com discursos de humildade e resignação? Pois os poderes terrenos, religiosos e políticos, que não poderiam se deixar ensinar, deleitar e mover por tamanha controvérsia, intentaram vencê-lo evocando César como Messias. E a história continua a se repetir, como farsa.

Entretanto, como sempre e mais uma vez, “um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.” (Isaías 9,6). A César, a conquista pelo poder; ao Menino, a salvação pelo Amor. Amém.

Feliz Natal!

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]