“E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão”. (Mateus 7:3-5)
Vivemos, definitivamente, na era da pós-verdade, que é, de acordo com o Dicionário de Oxford, algo “relativo ou que denota circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais”. Não há mais necessidade daquela correspondência entre a realidade, os fatos e a consciência. Cada pessoa ou grupo cria seus próprios fatos, interpreta-os e emite suas opiniões como se fosse verdade absoluta.
Conforme expus em artigo recente, aqui, nesta Gazeta do Povo, de acordo com o filósofo Mário Ferreira dos Santos um “fato é o que se nos apresenta aqui e agora, num lugar, num momento determinado; quer dizer, condicionado pelas noções de espaço e tempo. Estar no tempo e no espaço é o que se chama existir. Nós não atribuímos, não emprestamos existência ao fato; ele possui existência”. Ou seja, um fato existe, é um dado da realidade; não é uma fantasia e não pode (ou poderia) ser inventado, nós apenas o intuímos e o reconhecemos. No entanto, na era da pós-verdade os fatos cederam lugar à manipulação emocional, e a verdade às mais variadas fabulações que as disputas de poder político podem produzir.
Tal circunstância compromete não somente o reconhecimento dos próprios fatos reais, mas também a construção de juízos; se a realidade não mais corresponde a o que existe e pode ser reconhecido, tampouco os fatos são algo a serem simplesmente intuídos, mas podem ser – e efetivamente são – inventados. Com isso, os juízos, igualmente, não se destinam mais a proferir sentenças sobre os fatos, mas a cumprir uma função instrumental nesse jogo de disputas de poder.
Mário Ferreira diz, em Convite à Filosofia e à História da Filosofia, que:
“Quando construímos um juízo […], esse juízo indica, aponta um conteúdo ao qual se refere. E quando esse juízo perfeitamente se ajusta, como esta gaveta se ajusta a esta escrivaninha, quando o conteúdo cabe bem no juízo, como ao dizer eu que ʻeste fato é um copoʼ, e este juízo se adequa perfeitamente ao fato de que me refiro, estou, em face de uma verdade de fato e de uma verdade lógica. A verdade de fato é que realmente há aqui um copo, e a lógica está na adequação do juízo por mim pronunciado com o fato ao qual se refere”.
Pois bem, um juízo é um ajuste do pensamento ao que este se refere, e a verdade é o produto factual e lógico dessa adequação. No entanto, tais atributos são totalmente dispensáveis na era da pós-verdade. A verdade passa a ser uma construção ideológica cuja finalidade é, apenas, servir de argumento retórico a ser utilizado de acordo com a intenção e a circunstância. E os dois casos recentíssimos, de Bruno Aiub – o Monark – e dos deputados Kim Kataguiri e Arthur do Val – o Mamãe Falei – são emblemáticos. Não porque o que disseram não tenha sido grave – foi gravíssimo! –, mas porque, dadas as circunstâncias atribuladas de nosso presente, o que disseram é o que menos importa, e, sim, como o que disseram poderia servir aos interesses de disputa política que estão em jogo. E não há necessidade de relativizarmos o que disseram Monark, Kim e Mamãe Falei, mas que, tão somente, nos atentemos aos... fatos.
A verdade passa a ser uma construção ideológica cuja finalidade é, apenas, servir de argumento retórico a ser utilizado de acordo com a intenção e a circunstância
O caso Monark/Kim, que já foi mencionado por mim em artigo recente, e o caso Arthur do Val e seus áudios execráveis vazados de um grupo de WhatsApp, receberam mais ou menos o mesmo tratamento: a distorção deliberada. E assim como Monark e Kim, obviamente – sem sombra de dúvidas – não são nazistas ou mesmo fizeram apologia ao nazismo – defenderam um tipo de liberdade de expressão perigosíssimo mesmo num contexto democrático –, Mamãe Falei não foi à Ucrânia fazer turismo sexual, ainda que tenha ido buscar engajamento para o seu canal e/ou fazer campanha política antecipada. Seus áudios refletem, num primeiro momento, um tipo de comportamento que todos os homens conhecem muito bem e que, antigamente, chamávamos de “contar vantagem”, um tipo de babaquice comum nos círculos de amigos. O peso, o escândalo, está no contexto, que é uma guerra, e na total falta de senso de ridículo. Se Mamãe Falei acha que as ucranianas “são mais fáceis porque são pobres” – e ele não disse esse absurdo por conta da guerra, mas porque, de fato, a Ucrânia é um dos países mais pobres da Europa –, muitos gringos que lotam as praias brasileiras no verão pensam o mesmo de nossas mulheres, e muitos brasileiros dos grandes centros pensam o mesmo das mulheres que moram em regiões mais pobres. É triste, é grosseiro, é machista? É, mas é um fato. O tal tour de blonde é fruto do comportamento gersoniano já muito discutido por aqui. Nada de novo debaixo do Sol. Esses são os fatos, essa é a realidade. Nada disso diminui, repito, a baixeza do que foi dito, mas o que foi dito é menos incomum do que parece, ainda que absolutamente reprovável, e não vai mudar simplesmente atribuindo toda a culpa do mundo a uma pessoa.
Entretanto, para que seus adversários obtenham dividendos políticos de tais situações tão desgraçadamente controversas – mesmo diante da miséria generalizada e de todas as feridas sociais, políticas e de consciência absolutamente expostas –, é fundamental transformar tais casos em aberrações que ultrapassem de tal forma a realidade dos fatos, que o perdão se torne impossível. É necessário, em termos cristãos, fazê-los pecar contra o Espírito Santo. E uma vez que a emoção foi manipulada e o mecanismo mimético desencadeado nas vísceras da massa e da imprensa, o mecanismo vitimário está completo e o bode expiatório está pronto para se imolado. A violência mimética – sim, caríssimo leitor, o vocabulário é todo girardiano, pois quero instá-lo a lê-lo – desse processo é tão desenfreada que aqueles que ousam analisar os fatos e emitir juízos justos, que permitam chegar à verdades lógicas, são acusados de estarem “passando pano” e precisam ser silenciados. E tudo isso só é possível numa sociedade que não tem mais apreço pela realidade, pelos fatos ou por juízos que permitam julgamentos justos e a produção de verdades lógicas.
Onde vamos parar? Não é possível saber, mas não posso dizer que não temo.
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