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Paulo Cruz

Paulo Cruz

O ceticismo político de Tobias Barreto

Gravura de Tobias Barreto de Meneses. (Foto: Wikimedia Commons)

Ah, se houvesse mais tempo! O pior é que não há tempo. Vamos proclamar a destruição... porque, porque... mais uma vez, uma ideiazinha fascinante! É preciso, é preciso desentorpecer os ossos. Propagaremos incêndios... Propagaremos mitos... Para isto, qualquer “grupinho” sarnoso será útil. Dentro destes grupinhos encontrar-lhe-ei entusiastas que aceitarão disparar seja contra quem for, e ainda por cima agradecerão a honra. Bom, começará a desordem! Haverá um abalo como o mundo ainda não viu . . . A Rússia amargurar-se-á, chorará os antigos deuses . . . E então promoveremos . . .

- Quem ?

- Quem ?

- O príncipe-herói. (Fiódor Dostoiévski, Os Demônios)

Todos sabemos – ou, pelo menos, deveríamos saber – da importância que o passado de uma sociedade tem para a sábia construção de seu futuro; nesse sentido, a frase atribuída a Edmund Burke é absolutamente certeira: “um povo que não conhece a sua história está fadado e repeti-la”. Sim, esse é um princípio conservador basilar que cabe tanto no âmbito individual quanto no coletivo, para quem deseja educar um filho ou governar uma nação. E cada vez que vasculho autores de nosso passado, vejo quanta sabedoria há esquecida nas estantes por aí; quantos ensinamentos valiosos podemos tirar das reflexões daqueles que viveram antes de nós, e que, de certo modo, ajudaram a construir o Brasil que hoje temos a responsabilidade de conduzir.

Tobias Barreto de Menezes (1839-1889) é um desses pensadores que não param de me surpreender e com quem tenho aprendido muito. Filósofo, poeta e jurista, foi um republicano de ideias liberais (sobre as quais falei, em artigo, aqui nesta Gazeta do Povo) e crítico contumaz da monarquia – sem, no entanto, aquele espírito revolucionário de homens como Silva Jardim (sobre quem já falei aqui). Mestiço (pelo IBGE, negro), nascido num município afastado dos grandes centros – Vila de Campos Real (SE) –, filho de um modesto escrivão de órfãos e de uma dona de casa, venceu a discriminação por conta de sua cor, e seu reconhecimento seria um verdadeiro milagre não fosse seu extraordinário talento. Na biografia que escreveu sobre o nosso personagem, Tobias Barreto: a época e o homem, conta-nos Hermes Lima, numa nota de rodapé, uma passagem muito interessante sobre seu precoce talento, que vale a pena citar integralmente:

Xavier Marques contou em A Tarde, da Bahia, de 24 de outubro de 1930, o seguinte: “Em 1885 era Juiz de Direito da comarca de Lagarto, em Sergipe, o Dr. Herculano Circundes de Carvalho, distinto jurista baiano, falecido desembargador em Goiás.

Na pequena cidade sergipana, gozava o digno magistrado de geral estima dos seus comarcãos, que, em certos dias de festas populares, não deixavam de visitar-lhe a residência com os seus ternos e reinados tradicionais.

Por uma dessas festividades de janeiro, teve o Dr. Herculano um garboso ‘rancho’ em descante à sua porta. Aberta esta, foi a sala invadida aos sons da respectiva charanga, por um grande número de pastoras e cavalheiros, entre os quais um moço acaboclado, de cabeleira basta, modestamente vestido. Era tocador de flauta de charanga. Depois de algumas cantigas mais, o diretor do rancho entrou a fazer as apresentações. Chegou a vez de ser apresentado o flautista, e o foi nos seguintes termos:

– Sr. Doutor, este é o nosso poeta.

– É poeta o senhor? Perguntou o juiz ao apresentado que respondeu simplesmente:

– Escrevo às vezes.

– Pois, se é poeta, dê-me uma prova do seu estro. Escreva-me lá uma ode…

A esse pedido, feito por gracejo, afastou-se o jovem com a devida licença, para o corredor, acendeu e pôs-se a fumar um cigarro. Começou a passear e a escrever a lápis. Quando o juiz, na sala, menos o esperava, entrou o flautista e entregou-lhe a composição. Depois de lê-la exclamou o Dr. Herculano com o todo o sério:

– Mas deveras, o senhor tem talento. Não há dúvida. E não estuda? Por que não vai para fora daqui aproveitar o seu talento?

– Não posso.

– É pena, insistiu o magistrado, deve prosseguir. Como se chama?

– Chamo-me Tobias Barreto de Menezes.

– Pois, Sr. Tobias, tome o meu conselho: saia desta terra, com todo o sacrifício, e vá para outra província, onde possa ser aproveitado. Há de ser alguma coisa.

E Xavier Marques termina a narrativa contando que, achando-se em 1877 na Bahia o Dr. Herculano Circundes, ouviu falar insistentemente num Tobias Barreto que fazia furor em Pernambuco. Lembrou-se do seu apresentado de Lagarto, procurou mais informações na Livraria Castilina e concluiu que era mesmo o seu poeta.

Barreto foi muito amigo de Sílvio Romero, também filósofo e jurista que, após a sua morte, se tornou o grande responsável pela divulgação de sua obra. Estudaram juntos na Faculdade de Direito do Recife, onde, juntamente com Clóvis Beviláqua, Capistrano de Abreu, Graça Aranha, Martins Júnior entre outros, fundaram o movimento que ficou conhecido como Escola do Recife. Disse Romero, na apresentação da obra Estudos de Direito, de Barreto: “Era naturalmente a mim, no caso de eu sobreviver a Tobias Barreto, que havia de caber a tarefa de organizar e dirigir a publicação póstuma de suas obras. Uma amizade de vinte e dois anos, nunca, fenômeno raro no Brasil entre homens de letras, desmentida por um ressentimento qualquer, dava-me esse direito”. E em sua defesa diante de seus críticos, assevera: “defender Tobias, será preciso dizê-lo? É implícita e explicitamente defender uma época inteira, uma fase do pensamento nacional, um período histórico, toda uma escola literária”.

Para além de seu liberalismo, li recentemente uma série de artigos seus, de nome A política brasileira, publicados no ano de 1870 no jornal O Americano, de sua propriedade – e reunidos no volume Crítica Política e Social de suas obras completas, que são um verdadeiro primor não só de seu pensamento liberal, mas de seu prudentíssimo ceticismo político – definição que empresto de Michael Oakeshott, em seu estupendo A política da fé e a política do ceticismo (É Realizações), que diz:

O cético na política observa que os homens vivem em proximidade uns com os outros e, ao perseguirem várias atividades, podem entrar em conflito. Quando alcança certas dimensões, esse conflito não apenas torna a vida bárbara e intolerável, como pode extingui-la abruptamente. Portanto, a atividade de governar subsiste não porque é boa, mas porque é necessária. Sua função primordial consiste em diminuir a gravidade do conflito humano ao reduzir as ocasiões em que ocorre. Pode conferir um “bem” desde que seja executada de uma maneira que se harmonize com o tipo de conduta correntemente aprovada e não o prejudique.

A postura de Tobias Barreto, como eu gostaria de salientar citando alguns trechos desses artigos, são o retrato exato do que diz Oakeshott. Os textos giram em torno de sua postura crítica em relação à Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834, que, numa reação conservadora às mudanças liberais propostas, em 1840 revogou o direito legislativo das províncias. Mas vai além, muito além; são uma verdadeira aula de consciência política. Ele inicia: “Se ousadamente não crêssemos nos instintos generosos que ainda vicejam no coração popular, faltar-nos-ia, sem dúvida, o ânimo preciso para afrontar alguma coisa de penoso e arriscado que sempre se oferece ao escritor político. Mas, felizmente, no fundo de muita consciência honesta, como em ninho de ave selvagem, dormem tranquilas as nobres aspirações e vívidas tendências que hão de levar-nos a melhores e mais propícios dias”. Desse modo, alça o voo de sua retórica, que, a cada parágrafo, nos banha de uma lucidez impressionante. Como eu disse, é prudente a sua investida, pautada por um espírito sagaz que orienta, dizendo: “não queiramos tão facilmente penetrar o sentido das coisas que, aliás, vão escapando à nossa perspicácia”, pois “é no país moral”, e não no legal, “que se deve concentrar todo nosso estudo e todo nosso interesse”.

É contra as utopias e as mudanças atabalhoadas que ele se insurge, sabendo que o povo amava o seu imperador, e que, mesmo que não governasse de acordo com suas aspirações pessoais, merecia o seu antagonismo respeitoso. Numa cautela que evoca a mais bela política da prudência, ele adverte:

Há perigo em derramar, continuamente, sobre as chagas do corpo social, o suposto bálsamo dos devaneios utópicos. Não se passam impunemente as fronteiras do absoluto sem topar-se com o impossível. Não menos que a natureza, a sociedade está contida no círculo do relativo, isto é, do realizável. As facilidades da palavra nos têm habituado a facilidades de promessas, cujo cumprimento encerra, talvez, uma contradição.

E recomenda que não se brinque com os anseios da sociedade, pois “o povo, que se invoca sem cessar, pode um dia tomar a sério todas as nossas sugestões, e perguntar, como o apóstolo: Quid vis me facere? A situação seria bem difícil. Quem poderia lhe responder com a consciência do dever e a certeza do triunfo?”. E mesmo “a liberdade”, sob a imagem do sacrifício, deve ser dosada, pois é “como vinho simbólico do sangue redentor, que, embora sacrossanto, não deixa, todavia, de poder embriagar”.

O que podemos perceber – e aprender – com Tobias Barreto, é que, não obstante nossas ansiedades, que para além de nossos anseios, há um princípio de ordem que deve ser obedecido. Não é possível, sob o risco de rompermos o tecido social, impormos nossos desejos, ainda que sejam legítimos; “as reformas políticas”, diz João Camilo de Oliveira Torres, “devem levar em conta o fato de que em qualquer situação histórica há lados bons e maus”. Por isso, Tobias Barreto é muito realista em suas aspirações:

Os que cremos no triunfo inevitável do direito, não nos impacientemos com o seu vagaroso andar. Não aceitemos a resignação, virtude estéril que, em política, mal difere da humilhação; mas também, não esqueçamos o poder das circunstâncias. O povo brasileiro quer ser livre, mais livre do que permitem-no as instituições. Podê-lo-á conseguir? Eis a questão.

E ainda chama à responsabilidade aqueles que julgam possível depositar as esperanças num salvador da pátria: “todos temos o direito de volver um olhar indagador sobre o futuro, de chamar, por nossos votos, o astro que se demora abaixo do horizonte. Mas entre o futuro induzido e o futuro imaginado há uma imensa distância”. É nessas horas, nesses momento de fragilidade ambiciosa, que a hybris pode tomar conta de nossa alma e fazer brotar, do seio de nossas mazelas, o oportunismo. Diz Barreto:

Reina em nosso país uma doença perigosa; é a ambição de governar que ataca até os espíritos mesquinhos. Pequenos escritores de frivolidades literárias tornam-se, facilmente, homens de Estado. Pouco a pouco erige-se entre nós aquela espécie de governo que Mill chamou de pedantocracia, e que justamente consiste na intrusão de ambiciosos medíocres, que sob o vago título de capacidades iludem o público indiferente e pouco disposto a sondar-lhes o mérito e medir-lhes o tamanho.

Não é impressionante, caríssimo leitor? Não é verdade que, de posse de tais reflexões, escritas no já muito distante ano de 1870 – mas cuja atualidade nos assombra –, podemos retirar doses cavalares de sobriedade política? Bernardo de Chartres não estava certo quando disse que estamos assentados sobre os “ombros de gigantes”, de onde podemos ver mais longe? Se caímos, não é, na maioria das vezes, por abandonarmos essa torre de vigia que é o passado e resolvemos, tal qual ideólogos fanáticos pela novidade, deixar que a paixão nos conduza?

Sejamos prudentes, sejamos brasileiros que amam e querem o bem a seu país; sejamos, à maneira de Ortega y Gasset, nós e as nossas circunstâncias, pois, se não as salvamos, não nos salvamos a nós mesmos.

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