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“[...] No entanto, no meio da travessia, a rã é atingida no dorso por uma impiedosa ferroada. Entremeando dor e revolta, trava o derradeiro diálogo: – Quanta maldade! – exclama a rã, contorcendo-se. Não vês que morreremos os dois? – Sim, responde o escorpião, mas essa é a minha natureza!”. (A rã e o escorpião)
Pois é, acabou – ou quase. Após quatro anos de solavancos, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil por uma margem muito pequena de votos (pouco mais de 2 milhões). Lula, que havia sido preso, condenado em três instâncias da Justiça, viu, nesses últimos anos, seu antípoda se tornar presidente – o pior da história –, seu algoz se tornar ministro e, depois, tendo saído do governo criticando durissimamente o retrocesso no combate à corrupção, se tornar político e voltar a ser aliado do Derrotado. Lula também viu seu partido ressurgir das cinzas e suas condenações serem anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, com voto de ministro indicado pelo Derrotado. É o maior plot twist da história política brasileira.
O fato é que a partir de 1.º de janeiro de 2023, Lula terá uma tarefa duríssima pela frente: pacificar o país e colocá-lo num trilho virtuoso – coisas das quais duvido muito, não por sua vontade, mas por tudo o que vem (ou pode vir) a reboque de seu governo. Fora a crise econômica pós-pandemia, o fundo eleitoral de mais de R$ 5 bilhões, e os mais de R$ 68 bilhões do Pacote de Bondades, oriundos da PEC Kamikaze, gastos pelo governo para tentar a reeleição; fora o orçamento secreto e uma base parlamentar, pelo menos aparentemente, de oposição a seu governo, Lula e seu partido representam uma ideologia de perfil notoriamente autoritário – quando não totalitário –, e têm como base de sustentação não só teorias socialistas, comunistas e de Estado agigantado, como também o identitarismo e as teorias de manipulação do ressentimento.
Lula terá uma tarefa duríssima pela frente: pacificar o país e colocá-lo num trilho virtuoso – coisas das quais duvido muito, não por sua vontade, mas por tudo o que vem (ou pode vir) a reboque de seu governo
A esquerda está sendo desafiada a mostrar-se democrática como jamais foi, pois essencialmente não é, e acredita que a democracia liberal privilegia os poderosos. Apesar de os governos de Lula não terem sido tecnicamente de esquerda (comunistas ou socialistas), mas assistencialistas e corruptos – nos quais, por exemplo, os bancos enriqueceram assustadoramente –, a permissividade para com o avanço de agendas extremistas e antidemocráticas é tão pernicioso quanto aquilo que o bolsonarismo tentou colocar em curso nos últimos anos. Eu, repito, não creio que um avanço democrático seja possível, ainda que Lula faça, o máximo que puder, um governo de conciliação e aberto ao diálogo com todos os setores da sociedade. Como escapar do sentimento de vingança que pode se apoderar de petistas? Como controlar as contas públicas com um projeto que prevê isenção de imposto para setores da sociedade, criação de ministérios, a rejeição das privatizações e do teto de gastos?
Conversando brevemente, por esses dias, com alguns alunos que comemoravam o “fim da violência bolsonarista”, eu lhes disse que, por serem jovenzinhos, certamente não acompanhavam política quando a esquerda agredia jornalistas, fazia manifestações violentas, protestava violentamente contra o impeachment e contra a eleição de seu oponente etc., e tentei lhes explicar que o Brasil tem uma tradição de autoritarismo à esquerda e à direita, e que construir uma democracia é menos sobre em qual candidato votar e mais sobre por que votamos neles.
Não obstante tudo isso, quem me acompanha em outras mídias sociais pode ter me ouvido dizer, mais de uma vez, que considerava a reeleição do Derrotado mais perniciosa para o país do que a eleição de Lula, mesmo sendo declaradamente conservador e nunca tendo votado no PT. Explicarei minha tese abaixo.
A natimorta nova direta brasileira tinha como defesa de seu discurso a constatação de que nossa sociedade é majoritariamente conservadora, e isso estimulava e reforçava o ressurgimento de uma intelectualidade e o resgate de uma tradição conservadora no país, que pudesse nos levar à construção de uma alternativa – sobretudo cultural – à esquerda que, havia décadas, reinava absoluta. A maior oposição política era o hoje inexpressivo PSDB – nada mais, nada menos que o partido da social-democracia, ou seja, que não tinha nada de conservador –, e na cultura não havia absolutamente nada que pudesse concorrer com a proliferação de produções culturais pós-modernas desconstrucionistas e de caráter duvidoso, que, inclusive, ofendiam a sociedade – brilhantemente representada por Dona Regina, a senhorinha de 70 anos que colocou os atores militantes globais em seu devido lugar.
O Derrotado cooptou politicamente um movimento cultural ainda incipiente, que buscava construir, com um esforço de aprofundamento teórico, as bases de um pensamento conservador não só com lastro na tradição estrangeira, mas nacional. Essa construção visava a educar a imaginação moral do povo brasileiro, a fim não só de reconhecer o seu conservadorismo, mas de fundamentá-lo na sólida tradição prudencial milenar. Tal captura abortou esse “projeto” e o transformou num projeto de poder. Qual o problema disso?
A derrota do projeto reacionário bolsonarista é a vitória do conservadorismo real, que agora, enquanto volta à sua posição de oposição à esquerda, terá oportunidade de se reconstruir
O senso comum conservador do brasileiro já havia se mostrado capaz de resistir ao avanço desenfreado de uma agenda multicultural e politicamente correta da esquerda pós-moderna, e Dona Regina, como eu disse, é o melhor exemplo disso. No entanto, esse conservadorismo inarticulado não teria (e não teve) capacidade de resistir a uma ameaça, digamos, interna, de um projeto político baseado num moralismo ingênuo e reacionário. É como se tivéssemos eleito a Dona Regina para a Presidência – só que corrupta. Se o conservadorismo é, segundo Michael Oakeshott, “preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna”, pensar um governo conservador sem o menor conhecimento e respeito à tradição conservadora – o Derrotado não a conhecia; e seus acólitos, se a conheciam, se inebriaram do poder –, só serviu para transformar o brasileiro num reacionário tosco e cooptar os religiosos (sobretudo os evangélicos) mediante o pânico moral. Com isso, o conservadorismo brasileiro naufragou e um reacionarismo fascistoide surgiu, exalando uma enormidade de preconceitos e desprezando pautas e problemas reais e importantes numa luta incorreta contra o politicamente correto.
Por isso, a derrota do projeto reacionário bolsonarista é a vitória do conservadorismo real, que agora, enquanto volta à sua posição de oposição à esquerda, terá oportunidade de se reconstruir, ainda que demore décadas, devidamente vacinado contra a Covid e contra o bolsonarismo. Resta agora às igrejas pedirem perdão a Deus pela apostasia, e aos oportunistas voltar à sua irrelevância ou ficarem lá, disputando os espaços de poder no patrimonialismo brasileiro, que é o que sempre quiseram.
Não se trata de comemorar o retorno de Lula e da esquerda ao poder, mas sim de saber que, muitas vezes, por uma questão meramente instrumental e pragmática, como diz o ditado, o inimigo do meu inimigo é meu amigo. E o maior inimigo do conservadorismo, ao menos no momento, não é o progressismo, mas o reacionarismo bolsonarista. Voltaremos a nos enfrentar no campo das ideias a partir de 2023, e que o debate democrático cresça longe dos radicalismos que há muito nos assolam e nos mantém na retaguarda do desenvolvimento.