“A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos. Ora, os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são os mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão da sua própria natureza e não acidentalmente”. (Aristóteles, Ética à Nicômaco)
No final de A Sociedade do Anel – primeiro volume da espetacular saga O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien –, me comove sobremaneira o nascimento da verdadeira amizade entre Frodo Bolseiro e seu companheiro de jornada, Samwise Gamgi. Sam, inicialmente o ingênuo jardineiro de Frodo, ao ser flagrado por Gandalf ouvindo sua conversa sobre a necessidade de destruir o Um Anel na Montanha da Perdição, é recrutado para assumir a missão junto a seu senhor. Sam vibra, pois tudo o que deseja é “ver Elfos”. Porém, no desenrolar da história, Sam vai se tornando cada vez mais necessário a Frodo, cada vez mais indispensável, e entre eles surge uma das amizades mais comoventes da literatura.
Após Boromir cair em tentação e tentar tomar o Anel de Frodo, este decide abandonar os companheiros e seguir sozinho, pois “a maldade do Anel já está operando até mesmo na Comitiva, e o Anel deve abandoná-los antes que lhes cause mais danos”. Coloca o Anel no dedo e segue rumo ao Grande Rio. Quando a Comitiva sente a sua falta e Boromir confessa o seu mal, todos saem à procura do portador do Anel; Sam tem um sobressalto e se dá conta de que ele fugira para o rio. Desde a colina correndo ao encontro de seu senhor. Chegando à margem do rio, vê um barco já um pouco distante, aparentemente sozinho (Frodo estava com o Anel no dedo); Sam grita desesperadamente – “Estou indo, Sr. Frodo! Estou indo!” – e, mesmo sem saber nadar, se joga na água, numa demonstração de coragem (voltarei a essa virtude cardeal em artigo futuro) e lealdade sublimes. Quase se afoga e é salvo por Frodo. O diálogo é comovente:
– Ó, Sr. Frodo, isso é duro! – disse Sam tremendo. – Isso é duro, tentar ir embora sem mim e tudo mais. Se eu não tivesse adivinhado certo, onde o senhor estaria agora?
– A caminho e a salvo.
– A salvo! – disse Sam. – Completamente sozinho sem mim para ajudá-lo? Eu não aguentaria, seria a morte para mim.
– Seria a morte para você ir comigo, Sam – disse Frodo. – E eu não aguentaria isso.
– Não seria uma morte tão certa quanto a de ser deixado para trás disse Sam.
– Mas estou indo para Mordor.
– Sei muito bem disso, Sr. Frodo. Claro que o senhor vai. E eu vou também.
– Agora, Sam – disse Frodo –, não me atrase! Os outros estarão de volta num minuto. Se me pegarem aqui, terei de discutir e explicar, e nunca terei a coragem ou a oportunidade de escapar. Mas preciso partir imediatamente. É o único jeito.
– Claro que é – disse Sam. – Mas não sozinho. Também vou, ou nenhum de nós vai. Vou fazer buracos em todos os barcos primeiro.
Frodo riu de verdade. Um calor e uma alegria súbitos encheram-lhe o coração. – Deixe um inteiro! – disse ele. – Vamos precisar dele. (Martins Fontes, p. 433)
Na adaptação cinematográfica de Peter Jackson, essa tomada é de arrancar lágrimas!
Esse é o momento, julgo eu, em que ocorre aquilo que Aristóteles chama de “disposição do caráter” (Ética à Nicômaco, UnB, 1157b). Frodo e Sam são duas almas virtuosas que se dispõe um ao outro, passando de uma relação de mera dependência (que Aristóteles chama de amizade por interesse) para uma admiração mútua pelo caráter virtuoso de ambos. A simplicidade servil de Sam, somada à inteligência corajosa de Frodo vão se alternando e complementando mutuamente, tornando a Demanda do Anel menos tortuosa. E a intuição de Gandalf, que na escolha da Comitiva havia dito a Elrond que era “melhor confiar na grande amizade entre os Hobbits do que na grande sabedoria” (p. 293), começa a se cumprir nesse evento.
A amizade era um dom valioso para Tolkien, e isso é maravilhosamente demonstrado em O Senhor dos Anéis. Mas também personificado em sua própria vida, na amizade com aquele que seria seu grande companheiro, não só de afinidade e de virtude, mas o grande incentivador de sua obra: Clive Staples Lewis – C. S. Lewis ou simplesmente Jack. Tolkien revela, em carta enviada à Tolkien Society of America:
“A dívida impagável que tenho para com ele não foi ‘influência’ como é comumente compreendida, mas puro encorajamento. Por muito tempo ele foi meu único público. Apenas a partir dele tive noção de que meu “material” poderia ser mais do que um passatempo particular. Se não fosse por seu interesse e avidez incessante por mais, eu jamais teria concluído O Senhor dos Anéis”. (As cartas de J. R. R. Tolkien, Martins Fontes)
Os dois foram um para o outro uma fonte quase inesgotável de influências e incentivo. Colin Duriez, em O dom da amizade (Nova Fronteira), diz que “Lewis gradativamente assumiu muitas das preocupações de Tolkien, tais como a escrita séria de fantasia e contos de fadas, e compartilhava seu amor apaixonado pela linguagem” (p. 52). Nas reuniões da confraria que girava em torno deles – Os Inklings – ou no apartamento de Lewis, no Magdalen College, às quintas-feiras pela manhã, foram gestadas boa parte de suas obras. Lewis caracteriza bem o aspecto exclusivo da amizade em seu ensaio Os quatro amores (Martins Fontes). Mesmo considerando a amizade o menos necessário e natural dos amores, ela se manifesta de maneira privada, “no momento em que dois homens se tornam amigos, de certo modo eles se afastam da multidão” (p. 83), tratando-se de “uma relação entre homens no seu mais alto grau de individualidade” (p. 85).
Lewis foi o maior entusiasta da obra de Tolkien, e este, talvez, o maior crítico de Lewis, pois não gostava nem do modo como Lewis escrevia fantasia – achava excessivamente alegórico, não obstante a defesa de Lewis e sua teoria da “suposição” – e nem de seus escritos teológicos, dizendo que a teologia deveria ser deixada ao encargo dos teólogos profissionais. Por outro lado, gostou muito da Trilogia Cósmica – exceto de Aquela força medonha, por acha-lo excessivamente influenciado por Charles Williams –, de O grande abismo e de Cartas de um diabo a seu aprendiz. Foram, de fato, inseparáveis, até que a aproximação entre Lewis e Charles Williams, e, posteriormente, seu casamento do Joy Davidman (em 1956), de certo modo os afastou; mas jamais deixaram de se admirar e ajudar, mantendo a máxima de Aristóteles: “a amizade [verdadeira] durará enquanto as pessoas forem boas, e ser bom é uma coisa duradoura” (1156b). Tolkien e Lewis compartilhavam, segundo diz acertadamente Owen Barfield, da mesma Weltanschauung (visão de mundo). Foi Tolkien, também, que encorajou Lewis a reconsiderar sua recusa anterior e aceitar a cátedra de Inglês em Cambridge, em 1954.
Lewis tem uma descrição bastante admirável da amizade, que resume perfeitamente esse amor – vale a longa citação:
“Ninguém nos conhece tão bem quanto nosso ‘camarada’. Cada passo a Jornada em comum é um teste de sua fibra – e nós compreendemos perfeitamente esses testes, porque nós também estamos passando por eles. Assim, cada vez que ele é aprovado, nossa confiança, respeito e admiração crescem como um Amor Apreciativo de um tipo singularmente sólido e bem informado […] Numa Amizade perfeita, esse Amor Apreciativo é muitas vezes, na minha opinião, tão grande e tão solidamente alicerçado que cada membro do círculo se sente, em seu íntimo, humilde diante dos demais. Às vezes ele se pergunta o que está fazendo ali, entre pessoas melhores que ele. Estar na companhia deles é uma sorte que não merece. Especialmente quando o grupo inteiro está junto, com cada um despertando tudo o que há de melhor, de mais sábio ou de mais engraçado em todos os outros. São aquelas reuniões especiais – quando quatro ou cinco de nós nos reunimos na estalagem, depois de um dia cansativo; quando calçamos nossas pantufas e estendemos os pés na direção do fogo, cada um com sua bebida no braço da poltrona; quando o mundo inteiro, e algo além do mundo, se abre para nossas mentes enquanto conversamos; e quando ninguém tem nada para exigir ou cobrar de ninguém, mas estamos todos livres e iguais, como se tivéssemos nos conhecido há uma hora, e ao mesmo tempo uma Afeição, amadurecida pelos anos, nos envolve. É o melhor presente que a vida – a vida natural – tem para nos dar. Quem poderia merecê-lo?” (p. 101-102)
Creio que esse pequeno excerto descreve a essência da amizade. Lewis conseguiu traduzir, em palavras, com maestria, o que ela tem de mais sagrado: a comunhão. Nela se manifesta plenamente o dom da amizade. Porém, arrisco dizer que só quem já teve essa experiência é capaz de compreender a profundidade do que Lewis escreveu. E não há nada esotérico nisso.
Tolkien, também, foi um dos responsáveis por levar Lewis de volta à fé da infância. Numa conversa entre eles e Hugo Dyson (outro Inkling), foi que Lewis foi levado a cogitar a possibilidade do nascimento de Cristo ser a convergência de todas as mitologias que ele tanto amava. Cristo é o mito que se tornou fato. Ele tenta explicar isso numa carta a seu amigo de infância, Arthur Greeves, em 1931:
“[…] o que Dyson e Tolkien me mostraram foi o seguinte: se eu encontrasse a ideia de sacrifício em uma história pagã, não me importaria em nada: novamente, se eu encontrasse a ideia de um deus sacrificando a si mesmo […], eu teria gostado muito e sido misteriosamente tocado por ela: novamente, que a ideia do deus que estava morrendo e revivendo (Balder, Adonis, Bacchus) também me comovia desde que a encontrasse em qualquer lugar, exceto nos Evangelhos. A razão era que, nas histórias pagãs, eu estava preparado para sentir o mito como algo profundo e sugestivo, cheio de significados além do meu alcance, mesmo que eu não pudesse dizer, em prosa fria, ‘o que significava’. Agora, a história de Cristo é simplesmente um verdadeiro mito: um mito trabalhando em nós da mesma maneira que os outros, mas com essa tremenda diferença, que realmente aconteceu”. (Letters of C. S. Lewis, vol I, tradução nossa)
A profundidade da amizade entre eles foi capaz de auxiliá-lo, após décadas de um ateísmo quase militante, no retorno ao cristianismo – embora tenha optado pelo protestantismo, e não pelo catolicismo de Tolkien. Só uma amizade profunda, segundo Lewis, “o mais feliz e mais plenamente humano dos amores – coroa da vida e escola de virtudes”, é capaz disso.
Outra característica das verdadeiras amizades é que elas jamais arrefecem. Um testemunho pessoal tratará de provar o que digo: dias atrás reencontrei amigos que não via há muitos anos. Foi como se nunca nos tivéssemos separado: o carinho, a consideração, o respeito… enfim, a chama da amizade reascendeu imediatamente. Com um acréscimo: um grande baú de memórias que, ao ser aberto, trouxe muitas lembranças revigorantes. Uma verdadeira bênção!
Porém, uma das constatações de Lewis quando escreveu Os quatro amores, ainda no final da década de 1950, é que o mundo moderno ignora o valor da verdadeira Amizade. E tenho certeza que, de lá para cá, piorou muito. Se minha geração ainda pode guardar no peito o valor das verdadeiras amizades, a geração atual vive num verdadeiro deserto de amigos. Muito provavelmente por um motivo muito simples, que confirma a tese de Aristóteles de dois mil e trezentos anos atrás: de que se não há virtude, não pode haver verdadeira amizade. Assim como a virtude deixou de ser uma aspiração, as amizades se resumem à mera utilidade – o prazer e à necessidade. Sem contar as amizades que a ganância, o egoísmo e as ideologias destroem. O Um Anel da modernidade está sempre em disputa, e não é fácil resistir aos seus encantos.
Que não sejamos como Gollum, cuja alma mesquinha sucumbiu ao mal irreversível e fratricida; tampouco como Boromir, que, tentado pelo desejo de fazer o bem, foi dominado pelo poder do Anel e pagou um alto preço por isso. O Brasil precisa de verdadeiros amigos!