Jesus, todavia, disse: “Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reino dos Céus.” (Mateus 19,14)
As palavras acima, ditas por Jesus a seus discípulos, são eternas e não são retóricas. Em ocasião anterior ele já havia dito, ao ser perguntado sobre quem era “o maior do Reino dos Céus”, que “aquele, portanto, que se tornar pequenino [humilde] como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus” (18,4). A pequenez, a humildade, aqui, não tem o sentido de se fazer menor – pois esse é um atributo próprio dos adultos –, mas, como bem observa o teólogo Fritz Rienecker, de confiança e dependência; as crianças confiam naqueles que amam e deles dependem. Essa relação só começa a se desfazer na adolescência, para dar lugar ao amor deliberado e ao confronto com esse próprio amor, alimentado pelo desejo cada vez maior por liberdade e, também, por um certo grau de transgressão – em maior ou menor grau, a depender da educação recebida.
O educador Dom Lourenço de Almeida Prado chama esse “conflito de gerações” simplesmente de educação, a cooperação mútua entre o adulto que começa a desabrochar da adolescência e o adulto já pleno e experiente, dizendo que “o amadurecimento é, acima de tudo, um processo interior de conquista de liberdade”. E completa Dom Lourenço: “Prefiro não chamar de conflito. O conflito pode ocorrer como em qualquer forma de relações humanas, mas o que há de básico, quase direi de natural e biológico, é uma expressão normal da complementaridade social”.
É nos afetos que mora a tranquilidade da criança, é sentir-se amada e respeitada em seus limites
No entanto, por vezes a realidade da criança, ainda imatura, pode ser supreendida por algum infortúnio, e sua inocência ter de se transfigurar num amadurecimento precoce e cheio de contradições antecipadas. É nessa hora, conforme tratei no artigo da semana passada, que a imaginação transforma-se num recurso poderoso de assimilação da própria realidade conturbada. Mas é mesmo nos afetos que mora a tranquilidade da criança, é sentir-se amada e respeitada em seus limites. E é na complementaridade que reside a passagem da infância para a adolescência, e da adolescência para a vida adulta.
Escrevo no Dia das Crianças, por isso lembrei-me de um filme que sempre me vem à memória quando penso em crianças: Minha vida de cachorro, de 1985, escrito e dirigido por Lasse Hallström – do também espetacular Chegadas e Partidas. Trata-se de um dos filmes mais belos e sensíveis sobre a infância que já assisti. Não é um filme infantil, mas um filme sobre crianças e exatamente como destaquei acima: crianças entrando na adolescência, tendo de lidar com os conflitos físicos e psicológicos próprios da idade, somados ao sofrimento causado pelas circunstâncias.
O filme conta a história de Ingemar Johansson, um garoto – interpretado por Anton Glanzelius – cuja mãe, gravemente doente e acamada, precisa de repouso. O problema é que Ingemar e seu irmão (um pouco mais velho do que ele), no esforço por requerer a atenção e o afeto da mãe – o que é quase impossível, dada sua delicada condição –, não dão paz à jovem senhora e, por isso, são despachados para a casa de parentes por uns dias. O pai, que “anda lá pelo Equador, exportando bananas”, não pode ajudar. Ingemar, então, é enviado ao seu tio Gunnar, irmão de sua mãe, homem divertido e bastante afetuoso que mora num vilarejo semirrural no interior. E é lá que Ingemar terá experiências marcantes, que farão um contraste com a tristeza profunda – profunda e reprimida a ponto de causar-lhe reações físicas – pela vida de sua mãe. O ambiente da vila é curiosíssimo: há uma fábrica de vidros que emprega a maioria dos habitantes – inclusive as crianças; há artistas circenses, inventores, comerciantes, mecânicos, escultores etc. Mas, no fim, todos parecem viver uns para os outros, no bom e no mau sentido; o clima fraterno do lugar cativa Ingemar.
O garoto Glanzelius consegue um feito extraordinário em sua interpretação de Ingemar. Como diz o crítico Michael Atkinson, no site da Criterion Collection, o garoto “é um milagre comportamental: você vê suas boas intenções, negação, ideias bizarras, esforços obstinados para raciocinar a vida e impulsos em direção a uma vingança anárquica; tudo ricocheteando, uns nos outros, como bolas de pingue-pongue de loteria e, eventualmente, controlando suas ações”. Ingemar vai narrando, em off, infortúnios alheios – com uma certa predileção por Laika, a cadela soviética enviada ao espaço no foguete Sputnik 2, e que, à época, pensavam ter sido deixada em órbita até morrer de fome –, e os comparando com sua situação pessoal: “teria sido pior se...”. Gunnar, sua esposa e sua sogra fazem de tudo para que o garoto sinta-se em casa, enquanto o senhor Arvidsson, o sogro doente que fica deitado o tempo todo, sozinho, no porão, o entretém com um passatempo curioso: pede que ele leia anúncios de lingerie de um catálogo que mantém escondido debaixo do colchão. Todas essas coisas e pessoas pitorescas, sobretudo os amigos Saga (a menina que luta boxe e não quer que os seios cresçam para não ser expulsa do time de futebol), Manne (o menino de cabelo “verde”) e a “coroa” Berit (sua paixonite) distraem Ingemar de seu sofrimento.
Mas o que mais impressiona – e com isso voltamos ao tema central deste artigo – é que o sofrimento que confronta a infância de Ingemar, e a empurra, cada vez mais, para um amadurecimento precoce, é real. Ele não sofre por abstrações que lhe chegam pelas redes sociais (que nem existiam), e não pertence à geração assustada. É tudo concretamente real, e ele se vê obrigado a enfrentar; não é possível esconder ou resistir por muito tempo, tampouco jogar a culpa em terceiros. Sua mãe está doente de morte e parece lhe rejeitar; seu pai está longe; e, de repente, se viu afastado do irmão e de sua melhor amiga, com quem se “casou”, debaixo do trilho do trem, mediante um “pacto de sangue”. É lançado na incerteza de seu futuro, nas mãos de uma família que mal conhece, num lugar sem amigos. Sua confiança e dependência são fortemente abaladas.
O fim da infância tem sido abreviado por uma série de dispositivos culturais, familiares e ideológicos que fazem a criança – e o adolescente, que agora tarda a amadurecer – perder as referências que norteariam sua transição
No entanto, Ingemar ainda permanece humilde como uma criança, e rapidamente se adapta mediante o reconhecimento da humana, demasiada humana comunidade que o acolhe. São gente como ele, frágeis e falhos como ele, contraditórios e carentes como ele. Não há disfarces, não há avatares nem nicknames, há gente de carne e osso, que ama de verdade, se diverte de verdade e falha de verdade. Ainda há limites etários e normas sociais que mantêm as coisas mais ou menos em ordem.
Atualmente, o fim da infância tem sido abreviado por uma série de dispositivos culturais, familiares e ideológicos que fazem a criança – e o adolescente, que agora tarda a amadurecer – perder as referências que norteariam sua transição. Dom Lourenço de Almeida Prado, que comandou por mais de 45 anos o Colégio São Bento, no Rio, era um profundo conhecedor da juventude, bem como das “novidades” que a ameaçavam, e faz uma observação bastante pertinente:
O mundo moderno é perturbado pelo equívoco igualitarista. Presumindo ter atingido plena maturidade no conhecimento da natureza humana e a percepção mais exata de que os homens são iguais, extrapolam desta afirmação quando desconhecem o que querem desconhecer, que “os homens são também diferentes”. Iguais e diferentes, eis uma aparente contradição que é, na verdade, a expressão de harmonia fundamental, isto é, das raízes profundas da harmonia.
Esse desejo por igualdade absoluta é ampliado, dentre outras coisas, por uma novidade moderna: essa criança e esse jovem são “pobres testemunhas oculares da história”, que sofrem, como diz Dom Lourenço, de um “sufoco de informações, em detrimento da reflexão. Vê muito, tem pouco tempo para pensar”. E veja, caríssimo leitor, o nobre educador escreveu isso em 1985, mesmo ano de lançamento do filme Minha vida de cachorro, quando a internet era somente um sonho de filmes de ficção científica. Os efeitos do agravamento dessa situação, na era das redes sociais, já lotam os consultórios de psicologia, aumentaram vertiginosamente o consumo de calmantes (mais de 40% em cinco anos, de 2009 a 2013, totalizando 17 milhões de caixinhas de psicotrópicos vendidas) e o número de suicídios entre jovens. Quase não há mais vilarejos isolados, nem crianças inocentes. A “humildade” infantil foi substituída pela arrogância juvenil, que se inicia cada vez mais precocemente e transborda para a vida adulta, nos eternos moleques birrentos da geração assustada.
Caso não despertemos para essa triste realidade, e não tomemos providências a fim de reconstruirmos os laços que nos unem enquanto seres humanos, enquanto sociedade – mas, pelo contrário, insistirmos em reconfigurar nossa natureza para moldá-la de acordo com preceitos livrescos que não condizem com as evidências e com a experiência histórica –, corremos o sério risco de perpetuarmos a imaturidade que nos fará sucumbir, definitivamente, reféns de nós mesmos.
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