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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

O flagelo da educação (IV, final)

(Foto: Reprodução)

[...] a manobra destinada a modificar os valores articula-se assim: inicialmente, impedir a transmissão, especialmente por meio da família, dos valores tradicionais; face ao caos ético e social daí resultantes, torna-se imperativo o retorno a uma educação ética – controlada pelos Estados e pelas organizações internacionais, e não mais pela família. Pode-se, então, induzir e controlar a modificação dos valores. (Pascal Bernardin, Maquiavel Pedagogo)

Quem me acompanhou nesse brevíssimo diagnóstico até aqui, deve ter percebido que sequer toquei num ponto considerado essencial no debate sobre a educação no Brasil atual, aquilo que ficou conhecido como doutrinação ideológica em sala de aula. O movimento Escola Sem Partido (ESP), criado pelo advogado Miguel Nagib, trouxe luz a esse problema em escala nacional – o que considero extremamente positivo –, a ponto de ter fomentado, a partir de 2015, o surgimento de projetos de lei em vários estados e municípios, o que acirrou o debate e o fez até ser contestado pelo Ministério Público Federal e pela Advocacia Geral da União (AGU). A respeito da existência da doutrinação em sala de aula, Nagib esclareceu, em entrevista a esta Gazeta do Povo, que “muitos professores usam suas aulas para promover, de forma direta ou indireta, suas próprias preferências ideológicas, políticas, partidárias, morais e religiosas. Segundo pesquisa do Instituto Sensus, publicada em 2008, 80% dos professores da educação básica reconhecem que seu discurso em sala de aula é ‘politicamente engajado’. Essa pesquisa,€ ‘que é atualíssima em se tratando de um problema dessa natureza,€’ corrobora a percepção de grande parte das pessoas que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 30 anos”.

Apesar do movimento e dos projetos terem a simpatia do atual governo, perderam força por conta da falta de apoio direto do presidente Jair Bolsonaro – que tem óbvia predileção por escolas militares –, o que levou Nagib a anunciar que suspenderia a atuação do movimento, mas desistiu pouco tempo depois, dizendo ter recebido suporte financeiro de um apoiador.

Não tenho acompanhado a atuação do movimento e não sou simpático à ideia do ESP virar uma lei que faça as escolas e universidades afixarem um cartaz, em sala de aula, com os direitos dos alunos e deveres dos professores – ainda que o conteúdo do cartaz já conste na Constituição e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como salienta o site do programa. Creio que a interferência estatal provocará uma reação não calculada que poderá desembocar numa espécie de patrulhamento e animosidades no ambiente escolar. Também a ideia – que consta no Projeto de Lei da deputada Bia Kicis – de que os alunos possam filmar os professores, também me parece bizarra, pois, apesar de ser uma prática relativamente corrente que tem, inclusive, ajudado em muitas denúncias de doutrinação, sua institucionalização daria um poder aos alunos que só quem está no ambiente de sala de aula pode prever. Ou seja, tudo me parece muito policialesco e exagerado – ideológico, por assim dizer. E, caríssimo leitor, caso tenhas lido meus artigos anteriores desta série, sabes que essas medidas não melhorariam em nada a educação brasileira.

A burocracia da educação está absolutamente dominada de ideologias igualitárias de raiz marxista

No entanto, é justo reconhecer que a doutrinação ideológica é um problema real e precisa ser combatida, mas é muito menor do que alardeiam as redes sociais e os casos isolados. Minha impressão é que ela ocorre com mais frequência no ambiente universitário e nas escolas de elite. No ensino público, feliz e infelizmente, os alunos – dada a profundidade trágica dos problemas estruturais – estão se tornando, digamos, indoutrináveis. A maioria não compreende e não se interessa por nada, só pela pseudo-socialização que a escola proporciona. O analfabetismo funcional, que, penso eu, é bem maior do que anunciam as estatísticas, é uma via de mão dupla, pois, ao mesmo tempo que cria alunos incapazes de compreenderem a realidade (não saber decifrar a linguagem é não compreender a realidade), pode torná-los reprodutores de jargões – e as ideologias são repletas deles.

Outro fato incontestável é que a imensa maioria dos professores não pode ser composta por doutrinadores – no sentido ativo e consciente do termo –, pois não passa de reprodutora de um sistema ideológico que penetrou a educação há décadas e quase não é mais possível distingui-lo. O problema, muitas vezes, é de preguiça; dadas as condições cada vez mais desanimadoras, os professores passam a transmitir, estrita e mecanicamente, aquilo que está no material didático – onde está, de fato, o problema. A proposital falta de pluralidade e a superficialidade que perpassa praticamente toda a formação de um docente está condensada no material didático que, posteriormente, ele utilizará nas suas aulas. A visão maniqueísta do socialismo, a luta de classes – que divide o mundo em opressores e oprimidos –, apesar de extremamente ingênua, é sedutora, pois torna aquele que dela se alimenta e apropria, portador de uma pseudo boa nova, através daquilo que o filósofo Eric Voegelin chama de imanentização do eschaton cristão – a saber: a salvação aqui, neste mundo, através da eliminação das desigualdades. Ou seja, uma utopia inconsequente e, se levada às últimas consequências, assassina – como a história nos mostra.

Paulo Freire, o famigerado patrono da educação brasileira, não foi o primeiro, muito menos o único a transferir essa visão distorcida da realidade para a educação. Atualmente ele serve mais como um símbolo dessa tragédia do que como seu principal ideólogo. Sua ideia de educação libertadora, em contraposição ao que chamou de educação bancária – alcunha que, ao mesmo tempo, demoniza o capitalismo e a educação tradicional – nada mais é que a transferência da luta de classes para a relação professor-aluno. Diz ele, no panfleto A pedagogia do oprimido: “Na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão — a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro”. Já a educação problematizadora/libertadora:

A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como “projetos” –, como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.

Bonito, não é mesmo? Mas é ridículo. Hermético e quase incompreensível. Ideológico.

Um professor que não transmite conhecimentos, cuja ideia de mero facilitador, oriunda da Escola Nova e que já foi tratada no antigo anterior, sem qualquer papel moral na educação, é uma das grandes causas da desordem atual. Deu espaço ao ideólogo, que julga ser necessário despertar no aluno o chamado espírito crítico, que o libertará das garras da opressão. Esse é o fundamento da desordem que favorece as utopias ideológicas. E pensar que essa sandice está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que diz, em seu artigo 35, que o ensino médio tem como uma de suas finalidades: “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (grifo meu). No entanto, qual é a definição de pensamento/espírito crítico? A LDB não diz. Assim instaura o criticismo vazio, que a tudo critica sem nada compreender. Como diz magistralmente o filósofo romeno Constantin Noica, em seu Diário filosófico (É Realizações): “A absurdidade do espírito crítico é que quer preceder; portanto, ser independente de outra coisa. Quem contesta que você tem de ter espírito crítico? Mas interessa o resto, não ele. É como se tivesse inventado o freio antes do automóvel”. Como desenvolver o espírito crítico se a ideologia socialista arranca dos jovens o espírito – no sentido de uma consciência madura e racional –, perpetuando o estado juvenil de a tudo contestar?

Mas não desejo, aqui, aprofundar a análise da obra de Paulo Freire – trabalho que meu caro amigo Thomas Giulliano, historiador e professor competente, tem feito em seu canal no YouTube e em suas obras Desconstruindo Paulo Freire (org.) e Desconstruindo (mais ainda) Paulo Freire, ambas publicadas por sua editora História Expressa. Minha intenção, na verdade, é mostrar que o problema é geral e foi diagnosticado com profunda e aterradora competência, por duas educadoras francesas – Isabelle Stal e Françoise Thom –, ainda na década de 1980. O livro A escola dos bárbaros (Edusp) é um retrato cru e realista da educação contemporânea que, apesar de falar da realidade no país de Alexandre Dumas, revela proximidades exatas com a situação brasileira.

Elas iniciam dizendo que uma das grandes causas desse estado de coisas é o nascimento de pedagogia moderna – para usar o termo empregado por Inger Enkvist. Já na introdução, o  grande Alain Besançon diz que “para ensinar não há outro método senão o de penetrar, antes de mais nada, na disciplina que se quer transmitir, já que as formulações mais claras, mais fortes e mais simples são as que vêm por último, ao termo de um longo esforço. Ao contrário, a pedagogia, como hoje é considerada, está desligada do saber, pretende substituí-lo e ocupar o seu lugar”. E assevera: “A ‘pedagogia’ tem um aspecto social: atrai o intelectual proletaróide, prometendo-lhe uma revanche contra o competente e o sábio. Mas tira também sua força de uma paixão política, a igualdade”.

Mais à frente, as educadoras diagnosticam que “[...] a escola, afastada de seus objetivos tradicionais, transformou-se em um campo de experimentação aberto a todas as utopias”. E completam, especificando a qual utopia se referem:

O socialismo, como o entendemos, não se identifica com partidos, programas ou tradição histórica, nem é apanágio deste ou daquele país. É um fenômeno característico das modernas sociedades de massa, em que a proliferação dos direitos engendra um irresponsabilidade crescente das pessoas, em que a exigência igualitária insaciável em seu princípio, perverte e ideia de justiça em que o saber cessa de ser cultivado por si mesmo e se torna instrumento da vontade de poder.

É exatamente isso que ocorre em nome da “libertação” pregada por militantes travestidos de professores, como Paulo Freire; a submissão a todo tipo de tirania ideológica em nome de uma suposta crítica ao sistema. Nesse sentido, Stal e Thom também acusam duramente a pedagogia moderna:

A pedagogia não é uma ciência porque não tem objeto; um ensino de cada disciplina produz seus métodos, que são aperfeiçoados às apalpadelas, por ajustamentos sucessivos, e representam um compromisso entre o temperamento intelectual do professor, suas qualidades humanas e o público a que se dirige. Nunca será demais repetir que a condição necessária – senão suficiente – de uma boa pedagogia é o conhecimento profundo e o domínio intelectual da disciplina ensinada: em verdade, somente eles permitem a simplicidade e a elegância na exposição, a flexibilidade e a variedade dos tratamentos do assunto que fazem o verdadeiro pedagogo. Por aí se compreende a aberração dos projetos atuais, que querem incluir, na preparação dos grandes concursos, o estudo da pedagogia com o mesmo valor da disciplina considerada.

Portanto, como é possível perceber, essa ideologização da educação é algo que surgiu há tempos e penetrou, de maneira indelével e indistinta, em toda burocracia educacional, tornando praticamente impossível tratar da educação como um processo de aquisição de conhecimentos com o objetivo de preparar um indivíduo para a vida. Com a ajuda das pedagogias modernas, a sociologia marxista penetrou na educação e tornou o processo educativo uma batalha contra a sociedade que os ideólogos julgam opressora. E, como dizem Stal e Thom, “é difícil, para os professores de boa fé, evitar a atração desse nada, essa vertigem do vazio”. E há um elemento absolutamente nefasto nisso, pois a “educação tradicional pretendia controlar elementos tangíveis:  conduta, conhecimentos e resultados. Ela se não arrogava plenos poderes sobre o espírito e os sentimentos do aluno”. A pedagogia moderna trabalha com abstrações, produzindo, em vez de indivíduos maduros, eterno mimados coletivistas. E veja, prezado leitor, como dizem as educadoras, “não é o risco de doutrinação que é grave (os alunos tornam-se amorfos e sem reação), mas o vazio que se forma nos cérebros e a apatia que disso resulta. Desconhece-se o prazer da reflexão e da descoberta. O ensino não estimula o gosto e nem o pensamento”. Nisso, dizem, “a pedagogia e a ideologia são feitas uma para a outra: uma grita ‘mata!’ e a outra berra ‘rebenta!’... A pedagogia engendra o vazio e a ideologia o preenche com ruídos”. A burocracia da educação, portanto, está absolutamente dominada de ideologias igualitárias de raiz marxista; os professores, em sua maioria, são meros reprodutores desse sistema nefasto; sequer percebem a sordidez desse projeto que, há muito, foi implantado, aos modos gramscianos, via intelectuais orgânicos, a fim de garantir um projeto de poder político que colocasse a sociedade à mercê de ideólogos e seus projetos utópicos. Como explica Roger Scruton, em Pensadores da nova esquerda (É Realizações), o projeto de Gramsci, uma revisão da revolução do proletariado, não seria via revolta armada, mas pela substituição gradual de uma hegemonia por outra:

A política comunista envolverá a substituição sistemática da hegemonia dominante. Assim, a superestrutura será transformada de forma gradual, ao ponto em que a nova ordem social, cuja emergência foi permanentemente bloqueada pela velha hegemonia, pode finalmente de vir à tona sob seu próprio impulso. Este processo é chamado de “revolução passiva”, e pode ser realizado somente pela conjunção de duas forças: a exercida de cima pelos comunistas intelectuais, que gradualmente deslocam a hegemonia da burguesia, e aquela exercida de baixo pelas “massas”, que carregam em si mesmas a nova ordem social que cresce por seu trabalho. A transformação ocorre somente quando estas forças agem em harmonia, como um “bloco histórico”: e o papel do partido é produzir esta harmonia, ao unir os intelectuais às massas em uma só força disciplinada. Este partido é o “Príncipe moderno”, o único agente da mudança política verdadeira, que pode transformar a sociedade somente porque absorve em sua ação coletiva todas as menores ações da intelligentsia, e combina-se com a força das massas proletárias, dando força a uma e orientação a outra. […] Os intelectuais comunistas e as massas estão, acreditava ele, vinculados por uma simpatia instintiva; isto removeria a necessidade do governo coercitivo e colocaria em seu lugar, por consenso, um governo ideal.

Nesse ponto, Antonio Gramsci e Paulo Freire se encontram, como este mesmo diz, num diálogo com Moacir Gadotti e Sérgio Guimarães no livro Pedagogia: diálogo e conflito (Cortez): “Para mim, o caminho gramsciano é fascinante. É nessa perspectiva que me coloco. No fundo tudo isso tem a ver com o papel do chamado intelectual, que Gramsci estuda tão bem e tão amplamente. Para mim, se a classe trabalhadora não teoriza a sua prática é porque a burguesia a impede de fazê-la. Não porque ela seja naturalmente incompetente para tal. Por outro lado, o papel do intelectual revolucionário não é o de depositar na classe trabalhadora, que também é intelectual, os conteúdos da teoria revolucionária, mas o de, aprendendo com ela, ensinar a ela”. Porém, os professores, em sua maioria, que antes eram os intelectuais revolucionários, hoje são massa, e transmitem a ideologia passivamente sem ao menos distinguirem o processo, pois desconhecem tanto suas bases quanto o seu contraponto. Que professor do ensino básico, atualmente, conhece Gramsci? E quais, o conhecendo, são capazes de fazer uma apreciação crítica de sua obra? São formados numa única visão de mundo; todas as demais foram devidamente demonizadas por seus antecessores. São, eles sim, doutrinados. Mas isso não os absolve da culpa que lhes cabe, pois o papel do acadêmico que se prepara para a docência é ampliar os seus horizontes de conhecimento, buscando sempre analisar profundamente os conteúdos que lhe são transmitidos, sob a pena de se tornar um destruidor de inteligências – de vidas.

Atualmente, numa estrutura educacional absolutamente destruída como se encontra a atual, tal sistema funciona praticamente por inércia. Por isso, a doutrinação é grave, mas os problemas estruturais são infinitamente maiores.

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