Ouça este conteúdo
“Por mais que antecipadamente se falasse do Guarany, por mais que se exaltasse a obra do inspirado talento de Carlos Gomes, estamos que, caso raras vezes visto, para quantos assistiram anteontem à primeira representação, a realidade foi além da expectativa. Entre as fases de admiração que nos entreatos se cruzaram, as mais calorosas partiram exatamente daqueles que mais incrédulos se haviam mostrado antes.” (Jornal do Comércio, sobre a estreia brasileira da ópera, em 4 de dezembro de 1870)
Em 25 de agosto de 2012, a oportunidade de realizar um sonho foi quase transformada em pesadelo. Fui ao Theatro Municipal de SP assistir à montagem da monumental ópera Götterdämmerung – O Crepúsculo dos deuses, de Richard Wagner, última parte da tetralogia O Anel dos Nibelungos. Como o caríssimo leitor já deve saber, sou um grande admirador do compositor alemão (já tratei disso aqui, nesta Gazeta do Povo), especialmente dessa tetralogia, e poder assisti-la ao vivo depois de tantos anos ouvindo e vendo pelo YouTube, incansáveis vezes, em inúmeras versões, me deixou por demais entusiasmado.
Qual não foi minha surpresa quando, ao iniciar a ópera – disse eu numa crítica que escrevi após a hecatombe –, recebi um choque: “estamos no Brasil. Por isso, as nornas vestem-se como divindades afro-brasileiras; suas roupas são permeadas de fios de palha-da-costa e, no braço, trazem contas e conchas típicas da indumentária dos cultos afro. A bonita parede de tecidos lembra um emaranhado de retalhos feito com material reciclável (mas pode ter sido impressão minha). Siegfried e Waltraute (vermelha tal qual a orixá Iansã, do candomblé) usam fitinhas do Senhor do Bonfim em suas roupas. E o cavalo de Brünhilde, Grane, não é um cavalo... é um boi (do boi-bumbá do folclore brasileiro), saltitante em cima de uma plataforma com seus chifres assaz salientes!” E o que se seguiu foram seis horas de uma ópera arrebatadora com uma montagem absolutamente desastrosa, a fim de satisfazer à sanha de seu diretor de arte, que disse: “Fazer como Wagner fez não me interessa. Quero encenar uma ópera antropofágica, tropicalista, que comunique com o público daqui”. Ou seja, reduziu toda a mitologia nórdica a seus caprichos pós-modernistas.
O militante indígena – mais um que é chamado de filósofo por aqui – convidado para assumir a concepção geral da montagem estava mais empenhado em cobrar uma suposta dívida histórica do que em fazer arte
Pois bem. Eis que, recentemente, surgiu outra oportunidade única: assistir à montagem de O Guarani, do nosso glorioso Carlos Gomes, no mesmo Municipal, sob a batuta do excepcional maestro Roberto Minczuk, a quem tenho a honra de chamar de amigo. Mais do que isso: assisti-la bem no dia 13 de maio, data em que comemoramos o maior acontecimento social da história brasileira: a Abolição da Escravidão. Ou seja, ver a ópera de um notável mulato e abolicionista bem no dia em que a abolição fez 135 anos me deixou emocionado de antemão.
Entretanto, ao se aproximar o dia da apresentação, as notícias da montagem começam a chegar e uma, em especial, me chamou a atenção: “Ailton Krenak quer corrigir ‘dano cultural’ com O Guarani”. Ou seja, o militante indígena – mais um que é chamado de filósofo por aqui – convidado para assumir a concepção geral da montagem estava mais empenhado em cobrar uma suposta dívida histórica do que em fazer arte. Ele ainda afirmou: “Peri é uma caricatura de índio ridícula, a que estamos sujeitos há 150 anos [...]. Os povos originários se sentem ofendidos pela narrativa da ópera. E ela traz um dano cultural enorme por ter sido perpetuada acriticamente por tanto tempo”. E arremata, numa ignorância absoluta do que é imaginação, mito, romantismo, indianismo... enfim, arte: “O Guarani... Não sei se o verbo existe, mas a obra ‘despessoa’ o sujeito e o transforma em uma figura mítica. E uma pessoa mitológica não precisa de comida, de terra, de vacina”.
Ou seja, fazer como Carlos Gomes fez não importa, pois, o militante pós-moderno só enxerga o concreto, não tem imaginação, não consegue produzir abstrações, metáforas; a arte só existe se tiver um objetivo materialista e se for direcionada à crítica ou mudança social. Ou seja, a arte só pode existir enquanto ideologia (e, se tiver dúvidas sobre o que estou querendo dizer quando uso o termo ideologia, clique aqui). E dizer isso de um indígena, cujo povo tem uma mitologia riquíssima, não deixa de ser culturalmente frustrante. Como eu disse naquela ocasião: “Toda leitura contextualizada de um mito, visto como acontecimento primordial, protagonizado por deuses e/ou heróis, deve – se não quiser esbarrar naquilo que Mircea Eliade chama de erosão, que destitui o mito de seu caráter original, por meio de uma ‘psicologia simplista e de um racionalismo elementar’ – guardar suas raízes abertas para o Fundamento [...]. Toda intenção de demonstrar, de maneira puramente social, um mito (um rito ou uma religião) é desastrosa”.
Carlos Gomes se baseou no romance indianista de José de Alencar, pois desejava criar uma obra brasileira, com temas brasileiros, mas ligada ao romantismo, que casava bem com o melodrama italiano de sua época. O romantismo é, segundo Fernando Fraga e Blas Matamoro, em A Ópera, “uma exaltação do sentimento como uma forma de conhecimento (não somente racional ou intelectual), e também dos valores nacionais: a língua, a paisagem, os usos e costumes, as tradições, as festas, as danças, os cantos de cada nação: seu folclore, as expressões de seu volk, de seu povo”. Nesse ponto, a base de Carlos Gomes, José de Alencar, é um modelo exemplar, pois, segundo o professor Massaud Moisés, o celebrado romancista criou um personagem indígena com as seguintes características:
“Ser mítico, o indígena alencariano é pleno de qualidades, em flagrante contraste com os brancos, não raro primários e viciosos. Para os silvícolas vão todas as simpatias; aos brancos fica reservada sempre a pior parte no concerto geral: batem-se em lutas fratricidas ou desconhecem os bons sentimentos dos nativos. A explicação para o idealizado retrato do índio reside na possível influência do pensamento rousseauniano, filtrado pela poesia de Gonçalves Dias, conjugada a outros fatores: Alencar não conhecia de visu os heróis das suas narrativas; quando muito, convivera na infância com pessoas que lhe poderiam ter contado lendas a respeito. O mais, aprendera nos livros. E a imaginação fizera o resto.”
É preciso estar adoecido de ideologia para ver nessa representação do indígena uma “caricatura de índio ridícula”, como afirmou Krenak; e ainda dizer que “os povos indígenas se sentem ofendidos”, como se os indígenas estivessem muito preocupados, discutindo a ópera de Carlos Gomes em suas comunidades. A representação pode ser idealizada, como o bom selvagem rousseauniano, medievalesca e cristianizada, mas está longe de ser uma imagem pejorativa, como nos confirma o eminente crítico literário.
É preciso estar adoecido de ideologia para ver na representação do indígena feita por José de Alencar e Carlos Gomes uma “caricatura de índio ridícula”, como afirmou Krenak
Em relação à montagem propriamente dita, foi menos traumática do que a de Wagner, embora tenha ficado extremamente confusa. Krenak e sua turma criaram uma sobreposição da história principal, com cargas pesadíssimas de discurso político, representatividade e evitando a famigerada apropriação cultural. Os cantores não se vestiram como indígenas, mas com roupas estranhíssimas para seus papéis, e os protagonistas, nos papéis de Peri e Ceci, foram acompanhados de duplos indígenas (ainda que a personagem Ceci não seja indígena), que muitas vezes agem de modo diverso dos cantores/atores, criando grande confusão na atenção que o desenvolvimento da trama exige. O duplo de Ceci é, segundo Cibele Forjaz, a diretora cênica uspiana, no libreto da ópera, “outra entidade feminina, Ywy-Eté (a Terra Verdadeira)”, criando uma narrativa cênica completamente diferente do papel principal. O cacique aimoré é transformado num antropólogo, um “tradutor entre mundos”, segundo Forjaz. Demorei um tempão para entender que aquele sujeito de roupa social representava um personagem indígena. Vai entender.
E como se não bastasse tudo isso, a ópera é interrompida várias vezes pela Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyreʼy Kuery, com intervenções musicais de sua cultura – e que, me perdoem os entusiastas, têm muito pouco de orquestra e de coro no sentido profissional do termo –, e mensagens políticas, em texto e vídeo, sendo projetadas em telas ao longo de toda a ópera, o que também causa um grande conflito de atenção na audiência. Ao fim da ópera – e essa para mim foi a pior intervenção krenakiana –, a tal orquestra e coro indígena entram cantando, sob o comando da artista indígena que faz o duplo de Ceci, uma música estridente em sua língua nativa, abrindo uma faixa, ao término, com uma mensagem política sobre demarcação de terra. Ou seja, o apogeu da ópera, o seu finale, recebe um anticlímax absolutamente desnecessário e vilipendioso do ponto de vista artístico.
Num país em que as montagens operísticas são raríssimas, não dar ao público a oportunidade de ver uma montagem tradicional é desprezar o público que consome ópera para agradar seus pares ideológicos
Não tenho nada contra os indígenas reivindicarem seus direitos ou terem espaço para representarem sua arte, construírem e reivindicarem suas narrativas e sua cultura. Mas fazer isso numa ópera consagrada, porque o enredo de uma ópera do século 19 apresenta “um pensamento” – como afirma Forjaz em tom professoral e inquisitório – “que poderia até ter algum sentido em 1870, na construção de um nacionalismo romântico, mas que não tem o menor cabimento no século 21”, é de uma selvageria que pode fazer sucesso entre acadêmicos e militantes desconstrucionistas hodiernos, mas não entre um público que, quase não tendo oportunidade de desfrutar de uma ópera ao vivo, é obrigado a ver lançadas sobre si, impositivamente, as visões políticas dos artistas e interventores contemporâneos. Não que eu seja contra montagens modernas; há inúmeras sendo realizadas mundo afora. O problema é que, num país em que as montagens operísticas são raríssimas, não dar ao público que aprecia esse tipo de arte a oportunidade de ver uma montagem tradicional é desprezá-lo para agradar seus pares ideológicos.
Mas não quero terminar esse artigo de modo dramático, pois há coisas maravilhosas a serem evidenciadas nessa montagem. Primeiro: a Orquestra Sinfônica do Municipal, o Coro Lírico Municipal, o maestro Minczuk – que, não me canso de afirmar, é o maior maestro brasileiro em atividade – e os solistas fizeram um trabalho absolutamente magistral. A música estava sublime! Os desenhos do cenário, feitos pelo artista indígena Denilson Baniwa, também são dignos de aplausos, de traços delicados, modernos e expressivos. Destaque para a floresta ultracolorida feita de redes de descanso, na qual o coro e bailarinos se misturam numa performance hipnotizante.
O saldo, a meu ver, foi mais positivo do que negativo, pois, para além dessa sobreposição e da confusão causada pela insistente militância política, a ópera está toda lá, em todo o seu esplendor, fazendo jus ao legado majestoso – e pouco reverenciado, mas sobre isso falarei em outra oportunidade – de nosso maior compositor, Antônio Carlos Gomes.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos