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“Somente as reformas feitas em obediência ao princípio da continuidade conduzirão a resultados positivos − as inspiradas no espírito de descontinuidade e rupturas terminarão em desastres irreparáveis.” (João Camilo de Oliveira Torres)
O conservadorismo, que, apesar de estar na boca do povo e no debate político, mal conseguiu se consolidar conceitualmente no Brasil nos últimos anos – aliás, falei sobre isso no já longínquo 2018, num dos primeiros artigos dessa coluna, e venho falando reiteradamente – , passa, por causa das intempéries políticas dos últimos tempos, por desafios enormes para se consolidar como uma posição política real, absolutamente legítima, oriunda de uma visão de mundo cuja disposição se encontra de modo muito profundo, nas pessoas comuns; parafraseando Chesterton, ser razoável é uma necessidade humana de sobrevivência, e a prudência é a virtude conservadora por excelência.
Defender conceitualmente o conservadorismo sem cair em armadilhas ideológicas, tais como associá-lo a pautas morais ou religiosas, dá um certo trabalho, uma vez que os próprios ditos conservadores que disputam as franjas do poder político eleitoral na atualidade se valem desse discurso simplificador (e simplista) a fim de angariar votos por meio de um moralismo manipulativo.
Mas a arte e a imaginação sempre e podem nos ajudar quando os conceitos se confundem. A série britânica Downton Abbey, de Julian Fellowes, é um excelente exemplo para quem quer ver o conservadorismo na prática, na vida das pessoas – tanto das pessoas simples, quanto dos nobres –, tendo a política partidária como um pano de fundo secundário. Mas, recentemente, tive outro exemplo que considero absolutamente paradigmático nesse sentido, não de uma série, mas um filme arrebatador, que nos toma pela mão e nos leva a uma profunda meditação sobre um dos princípios conservadores mais importantes: de que, nas palavras de Russell Kirk no seu A Política da Prudência, a “permanência e a mudança devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade vigorosa”. Falo do filme O mal não existe (2023), do diretor japonês Ryûsuke Hamaguchi.
“O mal não existe” é um filme arrebatador, que nos toma pela mão e nos leva a uma profunda meditação sobre a mudança e a prudência
Hamaguchi, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, com o excepcional Drive my car, agora retorna com um filme bem diferente de seu longa anterior, mas que nos conta uma história igualmente poderosa, que mistura drama e mistério de um modo belo e meditativo. Filmado numa bucólica região montanhosa nos arredores de Tóquio, O mal não existe se passa na ficcional vila de Mizubiki, que não só tem encantos, mas faz parte da vida dos moradores, que são absolutamente integrados com a natureza. Takumi Yasumura é uma espécie de faz-tudo do local: corta madeira, pega água no cristalino riacho para abastecer o vilarejo, faz pequenos reparos na região e tenta dar conta de cuidar sozinho de sua pequena filha, Hana, de 8 anos, sem a presença da esposa que, ao que parece, morreu recentemente. Ou seja, há um luto não declarado ali, que pesa sobre a relação entre pai e filha. Yasumura tem uma vida carregada de rotinas que ele cumpre religiosamente, com exceção de buscar a filha na escola, que ele esquece com frequência por ser, provavelmente, uma rotina nova. A tomada inicial, que nos mostra, lenta e contemplativamente, a sua rotina, é belíssima e cheia de sinais.
Entretanto, aquela vida paradisíaca se vê ameaçada com a chegada de um projeto de glamping – um tipo de camping chique, glamoroso – que uma empresa pretende construir próximo ao vilarejo. Diante da perplexidade de todos com esse invasor, a empresa envia dois representantes para fazer uma apresentação do projeto e responder aos questionamentos dos moradores. A sequência da reunião, que dura uns 20 minutos, é a mais característica do princípio conservador citado por mim acima. Um dos moradores questiona o projeto da fossa séptica, que será construída com capacidade de atender 50 pessoas, num camping projetado para receber, em ocupação máxima, 64. Ele inicia dizendo: “muita coisa aí não faz sentido”. E também questiona a localização da fossa: “Se vocês drenarem a partir desse ponto, os poços abaixo serão poluídos [...]. Os poços se conectam com os lençóis freáticos, que são a fonte de água para a gente e para as comunidades que vivem na região abaixo”.
Entretanto, a resposta evasiva do representante da empresa (que, aliás, não é um técnico, mas um promotor de vendas) deixa claro que se trata somente de redução de custos e que eles não têm nenhuma preocupação com a vida das pessoas, tampouco com o equilíbrio ecológico do local. E a sequência de indagações dos moradores vai colocando, cada vez mais, os promotores contra a parede, até que eles são convencidos de que devem trazer algum responsável, de fato, pela obra e pelo empreendimento. A reunião termina tensa. Mas um questionamento, em particular, vale ser ressaltado. Uma moradora diz:
“Sou Sachi Minemura. Tenho um restaurante de udon. Antes eu tinha um restaurante em Tóquio. Quando experimentei o soba daqui, vi que a água faz toda a diferença. Então me mudei para cá quatro anos atrás. Não sei se posso me chamar de local, pois não sou originalmente daqui. Estou do lado de cá, mas minha posição é similar à de vocês. No entanto, consigo administrar meu restaurante graças à ajuda da comunidade. Pessoalmente, as ações de vocês vão virar meu mundo de cabeça para baixo, vão roubar o meu propósito de estar aqui. Mas não estou aqui para falar de mim. Durante meu breve período aqui, aprendi como a água é importante para estas pessoas. Quando digo que uso a água da nascente no meu udon, elas elogiam, ficam orgulhosas e felizes. Vocês precisam entender que a própria essência deste vilarejo está em jogo. Por favor, procedam com cuidado e escutem a todos. Como moradora, peço que reconsiderem a localização da fossa séptica. Muito obrigada.”
Eis um belíssimo exemplo de como o equilíbrio entre a mudança e a permanência são fundamentais para a sobrevivência de uma comunidade. Nas palavras de Russell Kirk: “O conservador sabe que qualquer sociedade saudável é afetada por duas forças, que Samuel Taylor Coleridge chamou de permanência e progressão. A permanência de uma sociedade é o conjunto daqueles interesses e convicções duradouros que nos dão estabilidade e continuidade; sem essa permanência, as fontes do grande abismo se rompem, jogando a sociedade na anarquia. A progressão em sociedade consiste naquele espírito e conjunto de talentos que incitam a reforma e a melhora prudentes; sem tal progressão, o povo fica estagnado”. Os moradores não são contra a construção do glamping, assim como não foram contra o uso que a dona do restaurante faz das águas da nascente. Mas querem ter a certeza de que as mudanças trazidas por um empreendimento de maior porte não visem somente o lucro e ignorem completamente os cuidados necessários para a preservação do local.
Entretanto – e aqui quero ser cauteloso, a fim de não dar spoilers ao leitor, que pode assistir ao filme na plataforma MUBI –, de certo modo, o equilíbrio daquela pacata comunidade já foi quebrado e Yasumura, por sua relação tão umbilical com aquela natureza cheia de beleza e mistérios, é quem sente mais, até, talvez, pela fragilidade trazida pelo luto. O casal representante da empresa de glamping decide passar uns dias no vilarejo para tentar não só convencer as pessoas, mas para tentar compreender mais a fundo os medos e as demandas dos moradores, e ficam completamente fascinados pelo silencioso faz-tudo e sua rotina, que fazem dele quase um elemental, um ser que faz parte da natureza. Mas essa aproximação também terá seus custos. Os deuses do progresso têm fome.
O espectador que tiver paciência de enfrentar o tom contemplativo do filme, absorvendo a sutil tensão que perpassa toda a história, terá, no final arrebatador, motivos de sobra para longas reflexões
Os glampings são campings feitos para um público urbano que não quer ter as inconveniências que a natureza pode trazer; segundo o próprio diretor do filme, em entrevista a um site de viagens, “o glamping é uma experiência contraditória”, mas que, “ao mesmo tempo, é verdade que estas atividades trazem estímulo financeiro às comunidades locais. A recepção é bastante dividida. Cheguei até a supor que os habitantes locais sempre seriam contra ideias como essa, mas aprendi que esse não é o caso – se forem bem feitas e ponderadas, algo pode ser arranjado”. E complementa: “quando começamos a considerar os locais de filmagem, havia uma área com água mineral que queríamos usar. Os moradores locais nos disseram para não filmar lá e nós ouvimos. É muito simples, é moral não ir aonde não se deve ir”.
As locações de O mal não existe foram encontradas por ocasião de um trabalho de filmagem que Hamaguchi faria para uma amiga, a cantora e compositora Eiko Ishibashi, que, aliás, acabou por assinar a belíssima trilha sonora do longa. Vendo a beleza do local, decidiu fazer o filme, cujo título, um tanto enigmático, remete a outra sentença de Russell Kirk que nos ajuda não só a compreender o conceito de conservadorismo, mas a vê-lo aplicado, de modo preciso, no filme de Hamaguchi: “o conservador não deposita a confiança na mera benevolência”.
O mal não existe é um filme surpreendente, e o espectador que tiver paciência de enfrentar o tom contemplativo do filme, absorvendo a sutil tensão que perpassa toda a história, terá, no final arrebatador, motivos de sobra para longas reflexões.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos