“Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço.” (São Paulo aos romanos, 7,15)
Considero-me um sujeito de firmes convicções. Dona Benê, minha amada mãe, sempre me disse – naquele tom profético que só as mães têm: “você é muito radical”. E é verdade, confesso ser um tanto intransigente quando estou a defender o que creio ser o correto. Isso me traz vantagens e desvantagens, evidentemente. Uma vantagem é que não sou um homem de ânimo dobre e sou absolutamente sincero naquilo que afirmo. Isso porque procuro fundamentar o mais que posso minhas convicções; e é por isso, também, que para alguém como eu a ideia de que a verdade não existe (ou é relativa) é um sério problema. A desvantagem principal é que sou humano, e os seres humanos mais erram do que acertam. Por isso, o esforço para estar certo – ou, pelo menos, ser correto – exige esforço redobrado. Por vezes, portanto, sou vítima de minhas próprias convicções. Cristão que sou, procuro submeter minhas ideias à Verdade (com “V” maiúsculo) que emana da Tradição e do texto bíblico.
Se não crês, caríssimo leitor, como eu – e não é um nietzschiano que julga poder criar uma moral independente, ou um sartreano que não crê em moral alguma –, pode, ao menos, conduzir sua vida com base nas virtudes cardeais (sobre as quais tenho tratado em meus artigos aqui na Gazeta do Povo).
O fato, leitor amigo, é que somos desajustados – para usar o epíteto que Flannery O’Connor deu ao vilão de seu espantoso Um homem bom é difícil de encontrar. Há algo em nós que insiste em contrariar aquilo que seria o razoável; o mal que não queremos – ou não deveríamos querer – está sempre diante de nós, como diz o apóstolo Paulo (a epígrafe bíblica deste artigo). Fazer o bem é custoso, difícil; exige de nós um senso de nossas limitações que não parece comum. Há uma semente de maldade em cada um de nós que, ao que parece, não pode ser extirpada.
Flannery O’Connor demonstrou, em toda a sua espetacular obra, de maneira extremamente crua e visceral, a maneira como o mal está presente em nós. Porém, em minha modesta opinião, foi Robert Bresson, o grande cineasta francês – de quem Andrei Tarkovski afirmou ter sido “o único homem da história do cinema a conseguir uma aliança perfeita entre o resultado final da obra e um conceito teórico formulado de antemão” –, que conseguiu, com uma sutileza e um ascetismo que desconcertam, traduzir a maldade humana com inigualável maestria.
“Qual é o gênero de Bresson? Ele não tem nenhum. Bresson é Bresson. Ele é, em si mesmo, um gênero”, disse Tarkovski. Ou seja, Bresson foi um diretor absolutamente original, cujos resultados, na tela, nem sempre foram compreendidos pelos críticos e nem pelo público. Seus filmes – com exceção, talvez, de O diário de um padre (adaptação do excepcional livro homônimo de Georges Bernanos) e As damas do Bois de Boulogne – são pouco acessíveis; não por algum tipo de excesso, mas, ao contrário, por sua aparente simplicidade, pelo modo minimalista e contido com o qual Bresson trabalhava e conduzia suas histórias. Ele, por exemplo, não usava atores profissionais, mas amadores aos quais chamava de modelos. Fazia isso a fim de conduzi-los a uma total antidramaticidade. “Controlar a precisão”, como ele diz em seu único livro, Notas sobre o cinematógrafo (Iluminuras). Bresson defendia que o cinema não poderia ser um mero “teatro filmado”, mas uma arte com linguagem própria, única. Trabalhava à exaustão por um modo de transmitir ao espectador não um conjunto de ações, mas uma experiência de sutilezas, onde tudo ocorre como se nada ocorresse.
Seu filme mais emblemático, no sentido de expor a maldade humana, é A grande testemunha – título traduzido e muito mal-adaptado para o nome original Au hasard Balthazar, algo como “Ao acaso, Balthazar”. O mal, a vileza, a crueldade das personagens desse filme são exacerbadas não porque, de fato, encena-se a maldade crua, mas por serem contrastadas com a inocência absoluta, inerte, passiva de um burro de carga. A história desse animal – perfeito modelo bressoniano, posto ser (quase) todo inexpressão e passividade –, desde sua infância até sua morte (martírio?), desnuda a terrível maldade dos homens que o cercam com trabalhos forçados, torturas e escárnio. Balthazar resiste. Rejeitam-no, tocam-lhe fogo na cauda, submetem-no a cargas excessivas. Um zurro inconformado, por vezes, desfaz seu completo silêncio diante do sofrimento. A única que lhe dá amor é sua primeira dona, Marie (nome sugestivo), que lhe acompanha a via dolorosa até quase o fim. Jean-Luc Godard disse: “Esse filme é realmente o mundo em uma hora e meia, o mundo desde a infância até a morte”.
Balthazar, criatura que é, como diz o próprio Bresson, “toda santidade e humildade”, caminha impassível; seu leitmotiv, o segundo movimento da Sonata n.o 20, de Schubert, dá o tom de seu destino. Marie lhe acompanha, também sofrendo – não só por ele, mas por ela própria e suas desventuras –, até ser tragada por sua submissão à imprudência.
O mal é personificado, principalmente, pelo personagem Gérard, um jovem terrível que comanda uma gangue de delinquentes, causando atrocidades por onde passam. Há um bêbado, de nome Arnold, personagem errático – um “vagabundo dogmático, dotado de uma espécie de grandeza dostoievskiana”, diz Jean Sémolué em Bresson ou O ato puro das metamorfoses (É Realizações) –, que equilibra a maldade de Gérard e seu bando. E tudo acontece sob a mais consternadora imobilidade. Bresson age, como ele mesmo afirmou, “onde não há tudo, mas onde cada palavra, cada olhar, cada gesto tem fundamentos”. E temos o sublime.
Tal é o quadro de A grande testemunha. Curiosamente, deveríamos nos identificar com o pobre burro Balthazar; mas é Gérard que grita dentro de nós. É o jovem maldoso que atrai nossa atenção por repulsa e afinidade, ao mesmo tempo, paradoxalmente, como diz o apóstolo dos gentios. Porque em nós reside aquele desajuste com a vida, com a realidade, que a tradição judaico-cristã nomeia como pecado – mais especificamente como Pecado Original. Caso não creias nesse conceito, estimado leitor, peço que me acompanhes por um instante, pois tentarei demonstrar, com alguns poucos exemplos (da psicologia, da história e da filosofia) que não podemos dele prescindir.
Sigmund Freud, no ensaio Reflexões para os tempos de guerra e morte (volume XIV das Obras Completas, Imago), diz que “o obscuro sentimento de culpa ao qual a humanidade tem estado sujeita desde épocas pré-históricas e que, em algumas religiões, foi condensado na doutrina da culpa primeva, do pecado original, é provavelmente o resultado de uma culpa de homicídio em que teria incorrido o homem pré-histórico”. Posteriormente, em sua conhecida obra Moisés e o Monoteísmo (volume XXII das Obras Completas, Imago), Freud volta ao tema e afirma a ideia do pecado original como sendo uma criação do apóstolo Paulo, pois os judeus sentiam
“uma má consciência por ter pecado contra Deus e por não ter deixado de pecar. Esse sentimento de culpa, que foi ininterruptamente mantido desperto pelos Profetas, e que cedo constituiu parte essencial do sistema religioso, possuía ainda outra motivação superficial que habilmente disfarçava sua verdadeira origem. As coisas estavam indo mal para o povo; as esperanças que repousavam no favor de Deus não eram comprimidas; não era fácil manter a ilusão, amada acima de tudo o mais, de ser o povo escolhido de Deus. Se queriam evitar renunciar a essa felicidade, um sentimento de culpa devido à sua própria pecaminosidade oferecia um meio bem-vindo de exculpar Deus: não mereciam mais do que serem punidos por ele, visto não terem obedecido a seus mandamentos […] Independentemente de todas as aproximações e preparações do mundo circunvizinho, foi afinal de contas no espírito de um judeu, Saulo de Tarso (que, como cidadão romano, chamava-se Paulo), que a compreensão pela primeira vez emergiu: ‘a razão por que somos tão infelizes é que matamos Deus, o pai’. E é inteiramente compreensível que ele só pudesse apreender esse fragmento de verdade no disfarce delirante da boa notícia: ‘estamos libertos de toda culpa, uma vez que um de nós sacrificou a vida para absolver-nos.’”. (p. 148-149).
Mas aquilo que, para Freud, parece uma mera engenhosidade do espírito judaico, paira sobre nós de maneira contundente.
O eminente historiador Jean Delumeau, em sua obra clássica Sin and Fear – The Emergence of a Western Guilt Culture – 13th – 18th Centuries, advoga que a cultura da culpa formou o Ocidente. Ele próprio admitia, em si, a presença do pecado original, pois, disse ele (inclusive citando Freud), “eu sinto a sua presença em mim. Além disso, eu não posso ver como se pode eliminar a ideia de um Pecado Original, cujas cicatrizes ainda podemos suportar. Freud sentiu isso e tentou explicar, enquanto Bergson e Gouhier observaram que ‘tudo se passa como se houvesse um defeito original no homem’” (p. 04). E conclui que, no mundo medieval, a ideia da imperfeição humana suprimiu o sentimento de soberba no homem (p. 05).
Por fim, G. K. Chesterton afirma, em Ortodoxia (Mundo Cristão), que a doutrina do pecado original é a única que “pode realmente ser provada”, pois podemos vê-la nas ruas. E faz troça dos teólogos modernos, dizendo:
“Se for verdade (como certamente é) que o homem pode sentir uma felicidade extraordinária em esfolar um gato, então o filósofo religioso só pode fazer uma dentre duas deduções. Ou ele deve negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus; ou deve negar a presente união entre Deus e o homem, como fazem todos os cristãos. Os novos teólogos parecem pensar que uma solução altamente racionalista é negar o gato”. (p. 27)
Posteriormente, corrobora, dizendo:
“O cristianismo pronunciou-se de novo e disse: ‘Eu sempre afirmei que os homens eram naturalmente reincidentes no erro; que a virtude humana por sua própria natureza tendia a enferrujar e corromper-se; eu sempre afirmei que os seres humanos como tais cometem erros, especialmente os seres humanos felizes, especialmente os seres humanos prósperos e orgulhosos. Essa revolução eterna, essa suspeita sustentada ao longo dos séculos, você (sendo um vago moderno) a chama de doutrina do progresso. Se você fosse um filósofo, você a chamaria, como eu, de doutrina do pecado original. Você pode chamá-la de avanço cósmico tanto quanto você quiser; eu a chamo o que ela é — a Queda’”. (p. 192)
Diante disso, caríssimo leitor, temos em nossa tradição ocidental uma explicação bastante convincente, pelos menos para mim, de nossos descaminhos, de nossa má conduta, de nossa tendência a perdermos a consciência do fundamento da realidade. Da necessidade de pessoas como eu – radicais, nas palavras de dona Benê – mediarem suas certezas através de uma boa dose de reflexão e humildade. E todo aquele que deseja mudar o mundo, torná-lo melhor, ou mesmo ao ver-se diante do que considera a única solução para os problemas que vivemos, deve ponderar seu ímpeto de moldar a realidade aos seus pressupostos. Assim, sentando-se “sobre o ombro de gigantes” e vislumbrando o mundo de uma perspectiva mais abrangente e historicamente fundamentada pelas experiências do passado evitar, caso não acerte, a possibilidade de provocar danos que fugirão à sua capacidade de solução.
É difícil conter o Gérard que há em nós, mas é necessário.