“Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que signifique, nem mais nem menos”. (Humpty Dumpty, em Alice através do espelho)
Para aqueles que têm o mínimo de discernimento, não é difícil perceber que, de fato, os dias são maus. Até aos não religiosos, a advertência de Jesus, dizendo que “o mundo jaz no maligno” (I Jo 5,19) parece não mais ser estranha. Isso porque é absolutamente perceptível que quase todas as pessoas caminham ao sabor de seu vento particular, e quase todos ignoram a realidade, que substituíram por fabulações individualistas. Se os modernos não mais admitiam absolutos; atualmente sequer se permitem consensos. A tônica da realidade atual não é a diversidade – como alguns gostam de propagandear –, mas a dissociação completa. Tornamo-nos átomos soltos num espaço sufocante.
Tal característica é marcada por um comportamento não de independência, mas de rebeldia, de ódio à realidade; um modo de pensar e agir que não permite questionamentos ou mesmo contemporizações, é o reino em que o único absoluto permitido é, contraditoriamente, o relativo. Não há, na maior parte dos casos em que duas almas se encontram atualmente, uma tentativa de uni-las, mas sim de distinguirem-se o mais possível e marcarem sua posição num ponto maximamente equidistante a fim de não serem importunados. Juntos, porém, o mais separados possível. A internet, que representa o ápice dessa total esquizofrenia relacional, têm aprisionado as pessoas numa sensação de unidade artificial, cuja volume engana e assusta. Como diz Rue Bennett, protagonista da aterradora série Euphoria: “Isso é o estranho da internet: são dez pessoas e parece que é todo mundo”. E muitos estão sucumbindo, isolados, diante dessa errônea impressão de coletividade.
Como diz Rue Bennett, protagonista da aterradora série Euphoria: “Isso é o estranho da internet: são dez pessoas e parece que é todo mundo”
Tal situação não seria tão desesperadora se não fosse a recente negação daquilo que é básico dentro de uma concepção de mundo e da formulação de juízos a respeito da realidade: os fatos. E tal brevíssima reflexão me veio à mente – e já quero, ainda que muito preliminarmente, dividi-la contigo, amigo leitor – quando iniciei a leitura de Convite à Filosofia e à História da Filosofia, do grande Mário Ferreira dos Santos, um dos maiores filósofos brasileiros de todos os tempo, que a É Realizações acabou de republicar como parte integrante das obras completas do mestre paulista.
Caso o atento leitor não saiba, Mário Ferreira dos Santos nasceu em Tietê, no interior de SP, em 03 de janeiro de 1907. Viveu seus anos de formação em Porto Alegre (RS), onde graduou-se em Direito, e escreveu para alguns jornais e trabalhou como tradutor. Mudou-se para São Paulo em 1945 e fundou a própria editora a fim de publicar seus livros. Além de ter traduzido obras de filósofos ilustres como Aristóteles, Tomás de Aquino, Immanuel Kant e Nietzsche, escreveu mais de 50 obras, dentre elas, a Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais. Foi um outsider, um autodidata que, sendo ignorado pela Academia, preocupou-se em produzir e lecionar para pessoas comuns interessadas em Filosofia. Morreu em 11 de abril de 1968, e hoje, pelo esforço de Olavo de Carvalho e da É Realizações, sua obra vem sendo descoberta por um número considerável de interessados.
Pois bem. Não precisei de mais que dez páginas para confirmar e me impressionar, primeiro, com a didática incrível de Mário Ferreira; e, segundo, que não foi ato fortuito iniciar a sequência de temas desenvolvidos na obra pela definição do que são os fatos. O filósofo é preciso:
Embora todos saibam o que é um fato, não é fácil dizer o que é, em que consiste realmente. Fato é o que se nos apresenta aqui e agora, num lugar, num momento determinado; quer dizer, condicionado pelas noções de espaço e tempo. Estar no tempo e no espaço é o que se chama existir. Nós não atribuímos, não emprestamos existência ao fato; ele possui existência. Quando os fatos existem no espaço, eles são chamados corpos. Há outros que existem no tempo e são, por exemplo, os fatos psíquicos, os estados de alma, etc. Os fatos atuais constituem a nossa própria existência e o âmbito no qual vivemos e atuamos. Os fatos transcorridos constituem os elementos da biografia ou da história.
Ou seja, os fatos existem e são por nós intuídos; e a intuição é a “capacidade de darmos conta dos fatos espaciais e temporais”. Não há como dar conta do real se não discernirmos o que são os fatos e sua importância na formulação de juízos. Os fatos, diz Mário Ferreira, apesar de lhes atribuirmos unidade e estabilidade, são diversos e mutáveis, sua estabilidade é relativa, pois “eles surgem e desaparecem num constante ʻvir a serʼ”. Por isso, a fim de dominarmos os fatos, utilizamos como instrumento os conceitos: “uma série indefinida de fatos semelhantes, que nos parecem idênticos – embora na realidade não existam fatos idênticos – e que são coexistentes, damos-lhe uma denominação comum: é o conceito”.
Nesse ponto inicial já é possível acompanharmos Mário Ferreira em sua conclusão inicial: os fatos são uma realidade intuitiva, e os conceitos são construções abstratas de nossa razão a fim de ordenar os fatos. A gênese dos conceitos, segundo nosso filósofo, é: “se a realidade do mundo que nos cerca fosse uniforme e homogênea, se tudo nos parecesse igual, sem qualquer nota de distinção, de diferenciação, não poderíamos nunca chegar a conhecer os fatos, porque o acontecer seria apenas um grande fato. Mas sucede que a realidade aparece-nos heterogeneamente, diversa, diferente e diversificada.” E é a partir dessa capacidade de comparar e discernir os fatos é que compreendemos a realidade.
Agora, pense comigo, amigo leitor: qualquer debate, acerca de absolutamente qualquer assunto que se pretenda tratar, é possível sem a consciência do que são esses aspectos preliminares da realidade? Discernir fatos e construir conceitos é o mínimo necessário para qualquer interação que vise a defesa de um ponto de vista ou mesmo de uma unidade intelectual coletiva. E diante da realidade desconcertante que vivemos, na qual as pessoas têm ódio aos fatos e se permitem, à maneira de Humpty Dumpty, criar uma segunda realidade que lhes ofereça o conforto abrigado do confronto, como será possível chamarmos à superfície aqueles que se abrigaram no fundo de suas cavernas particulares? Sigamos a buscar respostas na obra de Mário Ferreira dos Santos.
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