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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Religião e política

O (outro) evangelho de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro (PL) durante uma motociata. (Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República)

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“No passado surgiram falsos profetas no meio do povo, como também surgirão entre vocês falsos mestres. Estes introduzirão secretamente heresias destruidoras, chegando a negar o Soberano que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. Muitos seguirão os caminhos vergonhosos desses homens e, por causa deles, será difamado o caminho da verdade.” (2 Pedro 2,1-2)

Converti-me ao cristianismo evangélico em janeiro do ano 2000. Após um certo cansaço de uma vida bem agitada e um acidente de carro, decidi que precisava dar um tempo. Parei de beber e, à época, bem mais gordo, também determinei-me a uma dieta que me fez perder mais de 20 quilos. Em seguida, passei a frequentar uma igreja em que já estavam amigos de infância, convertidos anos antes de mim. Uma igreja pequena, de bairro, pentecostal, mas não denominacional, cujos líderes eram muito estudiosos, o que foi ótimo para mim, pois já era um leitor voraz e um questionador nato.

Um dos primeiros temas pelos quais me interessei foi a apologética ou defesa da fé. O início dos anos 2000 foi pródigo em igrejas e teologias questionáveis em relação a certa ortodoxia que, apesar das muitas igrejas e da falta de um centro doutrinário como na Igreja Católica, sempre existiu no meio evangélico. A tradição protestante sempre se preocupou em encontrar sua identidade teológica e doutrinária e, não à toa, as Teologias Sistemáticas e as Escolas Bíblicas Dominicais sempre fizeram sucesso entre os herdeiros de Lutero, Calvino etc. Mas nunca foi fácil manter uma unidade mínima diante dessa abertura interpretativa que o protestantismo inaugurou. Lutero mesmo, em que pesem todas as controvérsias que envolvem seu nome e suas ações, pregou muitos sermões e escreveu muitos documentos alertando para os perigos das interpretações espúrias e sem fundamentos das Escrituras.

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No prefácio de seu fundamental Catecismo Maior, Lutero inicia dizendo que “não é por razões somenos que inculcamos o Catecismo com tanto empenho e queremos e solicitamos que seja inculcado. Pois vemos que, infelizmente, grande número de pregadores e pastores são muito negligentes a esse respeito, e desprezam seu ofício e essa instrução”. E em sua admoestação para que as cidades mantivessem as escolas públicas de educação cristã, defende o ensino de hebraico e grego – as línguas originais em que a Bíblia foi escrita, asseverando que “não conseguiremos preservar o Evangelho corretamente sem as línguas”. E completa:

“É algo bem diferente o caso de um simples pregador da fé e de um intérprete da Escritura ou, como diz São Paulo, de um profeta. Um simples pregador dispõe (é verdade), com base em traduções, de suficientes enunciados e textos claros para entender e ensinar a Cristo, viver uma vida piedosa e pregar a outros. No entanto, para interpretar a Escritura e tratá-la autonomamente e para combater aqueles que citam a Escritura erroneamente – para isso não tem formação; sem línguas isso não é possível. Mas na cristandade sempre se precisa destes profetas que estudam a Escritura e a interpretam e que também sejam aptos para o debate; para tanto não basta uma vida piedosa e o ensino correto.”

Mas desde então esse tem sido o maior desafio do cristianismo evangélico, e é por isso que a apologética se tornou uma atividade importantíssima dentro dessa tradição. Lutero sabia dessa fragilidade, mas pensou ser melhor que todos tivessem acesso ao texto do que mantê-lo em latim e sob o domínio exclusivo do clero. E vale dizer que a defesa da fé e da ortodoxia cristã não ocorre num vácuo interpretativo dos teólogos e apologetas, mas dentro da própria tradição cristã e seus fundamentos doutrinários transmitidos de geração em geração por teólogos reconhecidos ao longo do tempo.

Dizer que o evangelho pregado pelo (des)governo de turno é outro evangelho é não só constatar um fato, mas é dever de todo cristão sério

Entre os livros de apologética que li estão dois que ainda guardo, ainda que atualmente discorde do tom, digamos, fundamentalista dos textos. O primeiro é do pastor e teólogo Paulo Romeiro, notório apologista que foi presidente do Instituto Cristão de Pesquisas (ICP) e fundador da Agência de Informações Religiosas (Agir), duas entidades voltadas à defesa da fé. Em seu livro mais famoso, Supercrentes – O evangelho de Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os profetas da prosperidade, Romeiro investe pesadamente contra a chamada confissão positiva, que nada mais é que “teologia da fórmula da fé ou doutrina da prosperidade promulgada por vários televangelistas contemporâneos, sob a liderança e a inspiração de Essek William Kenyon. A expressão ʻconfissão positivaʼ pode ser legitimamente interpretada de várias maneiras. O mais significativo de tudo é que a expressão ʻconfissão positivaʼ se refere literalmente a trazer à existência o que declaramos com nossa boca, uma vez que a fé é uma confissão”. Ou seja, a famigerada característica de pregadores neopentecostais determinarem coisas a Deus e arrogarem ao crente comum o poder de fazer Deus agir em seu favor. Romeiro, então, à luz da Bíblia, vai desmontando os fundamentos dessa teologia, condenada desde dos tempos do chamado gnosticismo primitivo.

Outro livro que li com atenção à época foi também escrito por Paulo Romeiro, em parceria com o pastor e teólogo Natanael Rinaldi, chamado Desmascarando as seitas. Nessa obra, pouco mais volumosa que o Supercrentes, os apologistas tratam mais propriamente daquelas religiões que são consideradas por muitos como sectárias do cristianismo – como os Adventistas do Sétimo Dia ou as Testemunhas de Jeová. Não obstante, novamente, eu na atualidade discordar de parte do que é dito no livro, serviu para que, no início de minha caminhada cristã, eu fosse alertado para essas questões e me mantivesse vigilante, ciente de que viver fundamentado no cristianismo bíblico é um desafio constante, e que a advertência paulina a Timóteo – “pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2 Timóteo 4,3-4) – segue atualíssima.

Leituras posteriores, de autores como Dietrich Bonhoeffer, Karl Barth, C.S. Lewis, Francis Schaeffer e os clássicos Agostinho e Tomás de Aquino, bem como estar inserido em comunidades e cultivar amizades que tinham o ensino ortodoxo em alta conta, aprofundaram minha fé e abriram caminho para minha formação filosófica.

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Por isso, quando o (des)governo de turno se apropriou da sagrada causa do Evangelho, com o “presidente” (sim, entre aspas) repetindo versículos como se fossem jargões e se aliando àqueles mesmos pastores que, lá no início de minha conversão, já figuravam no rol dos heresiarcas e apóstatas, tive mais uma confirmação de que o propósito desse senhor, que envergonha o nome de Cristo em palavras e atos, que aceita associar o nome de Cristo a motociatas em seu apoio, que se considera um instrumento de Deus e que em sua campanha já demonstrava seu autoritarismo travestido de religiosidade (dizendo que o Brasil seria um Estado cristão), não é governar o país, mas um projeto de poder baseado na imanentização do eschaton cristão – já tratado por mim nesta Gazeta do Povo, numa série sobre religião e política; é a pretensa salvação aqui mesmo, neste mundo caído. E sentir-se, de fato, pelo nome do meio que ostenta, o messias do Brasil. Por isso recebe o apoio incondicional dos baluartes do neopentecostalismo – vertente evangélica celeiro da confissão positiva e da teologia da prosperidade – como Edir Macedo, Estevam Hernandes, Renê Terra Nova, Marco Feliciano, Silas Malafaia et caterva. Tais pastores são conhecidos pela manipulação emocional de seus fiéis e pelo discurso de dar ordens a Deus, característica encontrada também no (des)governo Bolsonaro; bem como pela sua relação com governantes a fim de obter benesses para seus negócios.

Isso ficou, mais uma vez, claro para mim no discurso delirante feito pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no evento de lançamento da campanha à reeleição de seu marido. Com o tom e o linguajar sentimental característicos da confissão positiva, Michelle foi pregando aos fiéis do bolsonarismo seu “disangelho” (como diria Nietzsche), dizendo que seu marido é “um escolhido de Deus” e que “a reeleição é por um propósito de libertação, um propósito de cura para nosso Brasil”, e que a luta é “contra principados e potestades”. Em seguida, o próprio Bolsonaro disse que se tratava de uma “luta do bem contra o mal”, destilando seu maniqueísmo – outra heresia milenar combatida desde Agostinho. Como diz o pastor e teólogo Yago Martins, em seu ensaio A religião do bolsonarismo, “esse discurso de bem contra o mal, Bolsonaro passou a usar o linguajar da batalha espiritual que é tão comum nas igrejas neopentecostais. A esquerda é então encarnada como um mal demoníaco, inimigo da fé e do bem. Vencê-la seria vencer para Deus, manifestar a vontade do Senhor no mundo, impedir as hostes do diabo”.

Por isso dizer que o evangelho pregado pelo (des)governo de turno é outro evangelho é não só constatar um fato, mas é dever de todo cristão sério que não se deixou seduzir nem pelo caráter falsamente religioso de seu mandatário nem pelo discurso do Centrão.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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