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“Geralmente os medíocres triunfavam, pois o sentimento de suas limitações intelectuais e o temor da inteligência do adversário, aliados ao receio de serem vencidos em debates com opositores mais hábeis no falar, os levavam direta e ousadamente à ação.” (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso)
Nas eleições de 2010 um candidato inusitado se apresentava ao eleitor com um slogan não menos sui generis: Francisco Everardo Oliveira Silva, mais conhecido por seu nome artístico, Tiririca, usou como mote de campanha a frase “Pior do que tá não fica, vote Tiririca” e, num de seus vídeos, o palhaço dizia: “O que é que faz um deputado?” E, após um risinho, respondia: “Na realidade, eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”. Foi eleito por São Paulo com 1.348.295 votos.
O parlamentar – do francês parlar, “falar” – passou quatro anos sem fazer um discurso na tribuna do parlamento. Ainda no primeiro mandato, apresentou oito projetos, seis deles voltados a artistas de circo, mas não aprovou nenhum. Mas, contrariando aquilo que os analistas viam, em 2010, como voto de protesto, Tiririca foi reeleito em 2014, ainda com um número expressivo de votos: 1.016.796. Passou todo o segundo mandato igualmente sem discursar – ou seja, sem fazer política, sem defender suas ideias – e continuou sem aprovar nenhum projeto. Em 6 de dezembro de 2017 fez seu primeiro (e último, segundo ele) discurso na Câmara. Um discurso contundente, em que se dizia muito decepcionado com a política, que abandonaria a vida pública, e conclamava seus colegas a olharem mais para o povo. Disse o deputado: “Vamos olhar pro nosso povo. O povo que eu falo é aquele povo que necessita de saúde, que eu tenho certeza que nenhum de vocês passou por isso. A gente sabe que todos nós ganhamos bem pra trabalhar... nem todos trabalham; são 513 deputados, só oito mais assíduos, eu sou um dos oito, um palhaço de circo, de profissão. Nunca brinquei aqui dentro, votei de acordo com o povo”.
Espanta-me que a disputa eleitoral seja pautada não em propostas objetivas para enfrentar os gravíssimos problemas que nos assolam, mas que estejamos presos a uma espiral de insanidade quase absoluta
Entretanto, no ano seguinte, jogando no ralo o que havia dito meses antes – e dando um tapa na cara daqueles que se empolgaram com o discurso –, Tiririca se candidatou novamente e foi reeleito com estupeficantes 453.855 votos. Agora, em 2022, por incrível que pareça, foi novamente reeleito, mas como o deputado menos votado, com 71.754 votos. Será por ter sido o deputado que mais votou contra o “governo” Bolsonaro em seu partido? Não sabemos, mas, aparentemente, a carreira política de Tiririca, após quatro mandatos, está chegando ao fim. Apesar de não ser um deputado dos mais gastões, de não ter uma grande quantidade de assessores, de não usar apartamento funcional e não ter se envolvido em nenhum esquema de corrupção, não podemos dizer que Tiririca é um deputado necessário; o dinheiro público que consumiu até agora (e consumirá até 2026) não será pouco. O leitor pode fazer as contas, se quiser passar nervoso.
A cada eleição, o horário eleitoral brasileiro vem se tornando uma atração de humor. Candidatos bizarros fazem um enorme sucesso – não só aqui, mas no exterior –, o que nos faz duvidar de nossa capacidade de compreender a importância e seriedade da representação política num sistema democrático. Nesse sentido, Platão estava certo em considerar o melhor sistema de governo como aquele em que os governantes eram os que tinham melhor preparo para a tarefa, e que a sociedade só seria virtuosa quando “a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos” chegasse ao poder, “ou de começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes da cidade”.
Mas essa não parece ser a nossa preocupação, nem dos eleitores e muito menos dos políticos, que parecem ver na política somente uma possibilidade de se dar bem na vida e fazer um pé-de-meia com o dinheiro facílimo que passam a ganhar sem ao menos precisar trabalhar – um parlamentar custa aos cofres públicos 528 vezes a renda média do brasileiro: cerca de R$ 23,8 milhões por ano, num Congresso que nos custa em torno de R$ 14 bilhões por ano.
Isso em um país com 100 milhões de pessoas sem saneamento básico, mais de 41 mil assassinatos anuais e uma educação que está em último lugar em competitividade; onde 95% dos alunos saem do ensino médio sem conhecimento adequado de Matemática e onde 38% dos universitários são analfabetos funcionais; que tem 70 mil crianças morando na rua e que ainda precisa, em 2022, discutir a fome e a chamada insegurança alimentar – ainda que haja controvérsia nos dados – na casa dos milhões. E que, para não deixar de citar um dado que me interessa particularmente, tem uma média anual de 4,96 livros comprados por habitante. Porém, apenas 2,43 desses livros são lidos até o fim.
Por isso espanta-me o debate político brasileiro. Espanta-me que a disputa eleitoral seja pautada não em propostas objetivas para enfrentar os gravíssimos problemas que nos assolam, mas que estejamos presos a uma espiral de insanidade quase absoluta, cujas prioridades – não dos políticos, cuja única prioridade é a eleição – são pautas ideológicas e interesses políticos travestidos de preocupações morais. O país que elegeu sucessivas vezes o palhaço Tiririca e acabou de eleger o parlamento mais incontestavelmente grotesco de todos os tempos. O país que um dia teve José Bonifácio, Rui Barbosa e Antônio Pereira Rebouças, agora tem esses aí que não preciso nomear.
Não, caro leitor, a situação não é de normalidade. E, como disse o filósofo Eric Voegelin, citado na epígrafe do meu artigo da semana passada: “ninguém é obrigado a tomar parte na desordem espiritual de uma sociedade. Pelo contrário, todos são obrigados a evitar essa sandice e viverem sua vida em ordem”. Portanto, sigo nesse exercício de isentão com muito gosto. Um isentão que, curiosamente, trabalha, cuida de sua família, ensina, escreve, pensa, dialoga, crê, ora, cultiva o espírito; enfim, que procura viver sua vida em ordem. E sigo caminhando no firme fundamento das coisas que espero e na certeza das que não vejo (Hebreus 11,1). Amém.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos